Estúdios japoneses criaram curtas que experimentam com a mitologia fantasiosa de Star Wars, mas nem todos funcionam.
Abandonando a animação ocidental de séries como The Bad Batch e Clone Wars, a Disney+ lança hoje Star Wars Visions, uma compilação de 9 curtas feitos por estúdios japoneses. A mistura busca agradar não necessariamente fãs de anime, mas os de Star Wars e, se possível, quem gosta de ambos. Cada curta tem entre 14 e 23 minutos, disponíveis desde já no serviço de streaming.
Os episódios têm criações originais, mas também conseguem se aprofundar na mitologia da saga, além do que vemos nos filmes: há templos, planetas, naves, sabres alternativos e cristais kyber – estes últimos, em excesso. Em suma, há liberdade criativa para mudar “regras” do universo, coisa que às vezes não dá muito certo. Quando acontecer, no entanto, basta desligar a mente e ignorar o cânone.
Eu tinha incertezas se a mistura convenceria por completo, já que Star Wars é um grande produto ocidental. Batman Ninja é um dos maiores erros animados da DC (inclusive um dos curtas de Visions é do mesmo estúdio). Mas a maioria dos episódio funciona bem.
A jogada da Disney foi certeira, especialmente por lançarem todos os curtas de uma só vez, para maratonar e consumir como o público preferir. Caso fosse semanal, creio que as peculiaridades entre cada episódio ficariam mais evidentes, como vemos em What If, na mesma plataforma. Além disso, temos uma camada extra de imersão caso você coloque em japonês, ou português, se costuma assistir animes dublados em nosso idioma.
Confira abaixo uma breve resenha a cada curta, as respectivas notas e a sinopse oficial.
Um estranho nômade com um passado misterioso defende uma aldeia de bandidos poderosos.
George Lucas já admitiu que o cineasta Akira Kurosawa foi uma de suas maiores inspirações para criar Star Wars. “O visual, gráficos, enquadramento e a qualidade da imagem vão longe para contar uma história”, disse uma vez em entrevista, lembrando sobre aquela geração inspirada em cinema mudo. O filme A Fortaleza Escondida, de 1958, carrega suas similaridades à saga de fantasia de Lucas, com certas análises que exploram exageradamente a referência.
Em O Duelo temos a predominância de preto e branco (somente com luzes, sabres e faíscas coloridas). É como se fossem animações de fotografias dos filmes de Kurosawa — tamanha a beleza das imagens. A arte é rabiscada, dando volume aos personagens e, creio que não por acidente, simulando ainda mais a inconsistência e granulados dos longas de Kurosawa – e filmes antigos, no geral.
E temos a melhor história, dentre todos os episódios. Destaque especial para o breve duelo rio abaixo, como se fosse o final de A Vingança dos Sith, mas em vez de lava temos água. E esqueça Darth Maul e seu sabre duplo do filme A Ameaça Fantasma: neste episódio de Visions vemos um outro tipo de sabre vermelho, agora prático e criativo.
Uma banda que sonha alto deve salvar um de seus integrantes de Jabba, o Hutt e Bobba Fett.
Caçadores de recompensa ganham uma pegada mais infantil neste curta, protagonizado por personagens cabeçudos que parecem bonecos. Balada de Tatooine parece refrescante e tem ótima qualidade de animação, em uma atmosfera acolhedora que lembra animes nostálgicos.
Imaginar que a plateia de uma corrida de podracers estaria vendo um show de abertura de adolescentes resume o que este crossover representa. Músicas de rock e cenários 2D/3D combinam com animes, mas se distanciam demais de Star Wars em questão de tom e de personalidade dos personagens (tanto animações como filmes). Os caçadores pelo menos parecem ser amigáveis.
Seria uma ótima abertura de anime, mas no meio da “massa” de Visions, eles pesaram a mão na trilha. Se houvesse mais tempo para desenvolver uma mínima história (e não repetir a introdução novamente em um flashback, segundos depois, por exemplo), teria potencial de divertir antes da conclusão musical.
Gêmeos nascidos no lado negro da Força se enfrentam a bordo de um imenso Destroier Estelar.
Este episódio confirma que Star Wars e animes de ação podem funcionar muito bem, de maneira equilibrada. Basta rever o trailer da série e notar que, não por coincidência, Os Gêmeos é o que mais aparece. Dentre os 9, a arte deste reina. Há luzes e sombras nas texturas 2D, limpas e futuristas. A animação em si, por conta dos movimentos rápidos de anime (de personagens e naves), casaram com a ação exigida para os duelos.
Optei por ver em japonês, então a dublagem deste ficou marcada, além do diálogo muito bem escrito. É o curta que mais me fez querer assistir a história prolongada, dando mais tempo em momentos que pedem isso, em parte pela liberdade criativa convincente. Tem seus clichês e ainda sobra um espacinho para uma tímida reviravolta, alinhando-se com o resto do universo Star Wars.
Uma Jedi em fuga experimenta os costumes únicos de uma aldeia distante ameaçada por um vilão.
Com tom religioso, similar ao filme Rogue One, o curta é carregado por frases poéticas. Tradições e relacionamentos me lembraram um pouco de Dr. Stone, vendo a forma que a sociedade une natureza e tecnologias diversas quase em coexistência. As criaturas (que não deveriam parecer humanas) possuem traços humanizados, novamente lembrando que A Noiva Aldeã se distancia de Star Wars, sem exagerar.
Uma óbvia linha divide claramente o que é o folclore original e o que é cânone, mostrando que autores e artistas foram respeitosos na elaboração deste episódio. A aparição de Battle Droids tridimensionais quebra a beleza da arte no restante do episódio, ficando desconexo, mas ele merece ser apreciado como um todo.
A filha de um criador de sabres de luz é perseguida por forças sombrias durante uma perigosa missão
É o episódio que mais se aprofunda em explicações. A relação entre sabres e os Jedi merece todo o crédito pela saída criativa, intrigando quem se deixar levar por estas alterações à lore. O melhor de tudo foi conseguirem intercalar duas narrativas sem perder o foco, gradualmente nos levando ao clímax e suas reviravoltas.
Ainda assim, por bem ou por mal, senti que O Nono Jedi se passaria como um episódio curto de uma série própria (e maior), coisa que não acontece com todos os curtas/episódios de Visions. Não vejo como um bom “primeiro episódio”, nem como excelente curta. Porém, ele consegue trazer um arco significativo para a protagonista. Falta algo, mas é uma ótima “parcela” de história.
Um garoto cibernético que sonha em ser um Jedi descobre uma perigosa verdade sobre seu criador.
O episódio 100% Astro Boy: o robô tem um criador idêntico ao Professor Ochanomizu, proporções de corpo similares e estilo de animação (na maior parte do tempo) infantis, como no desenho japonês. Por puro comparativo ao tanto que outros episódios de Visions conseguiram fazer em sua média de 15 minutos, T0-B1 é corrido. A arte não segura o episódio, tampouco as referências. No título, por sinal, temos uma alusão a outro personagem: a leitura em inglês de T0-B1 soa como “T. Obi-Wan”.
Também por forte contraste aos demais, nota-se uma distância grande entre desenrolar do arco do protagonista e sua importância. Tem coerência e certo equilíbrio em criar a própria mitologia, mas não se suporta muito fora disso. Talvez seja mais bem aproveitado aos que derem intervalo entre os episódios (melhores) de Visions.
Um Jedi e seu Padawan perseguem uma presença sombria e poderosa.
O Ancião parece ser a adaptação de uma estrutura que fãs de Star Wars já conhecem, retratando a história entre professor e aprendiz. No cânone, se passa antes de A Ameaça Fantasma, o que podemos notar pelos trajes e as nuances do episódio ao mostrar a passagem de bastão – principal ponto do filme. Tem clímax, duelo, enredo descomplicado e faz todo o fan service desejado.
O curte foi criado pelo Studio Trigger, o mesmo do episódio Os Gêmeos, conhecidos pelos animes Promare e o futuro Cyberpunk: Edgerunners, animação da Netflix baseada no game. A diferença entre arte e história surpreende quem não souber disso, provando a versatilidade do estúdio em lidar com estilos distintos de animação.
Uma família fica dividida sobre o que fazer quando o Império invade seu planeta.
Legado, política e família resumem Lop & Ocho. A protagonista que parece uma raça evoluída de coelhos demarca sua perspectiva social em relação ao governo e sua irmã. O visor utilizado por ela me lembrou do apetrecho similar em Dragon Ball, mas creio não ter sido intencional. O domínio do Império sobre o planeta mostra a pressão de certos rituais, abordagem interessante no curto período do episódio.
Tem liberdades criativas como outros, com destaque para o outro significado dado à insígnia Jedi. Sabres e bastões (de Os Últimos Jedi) foram alterados, em uma relação íntima com a tecnologia. Foi o curta mais triste, com maior impacto.
Um Jedi reencontra um amor proibido para ajudar a defender seu reino de uma poderosa Sith.
A compacta jornada mostra a combinação de tribos com os Jedi. Sua trilha sonora evidente, literalmente do começo ao fim, combina com todo o tom da narrativa. Um dos personagens “interrompe” o andar da história com flashes que se provam proféticos, como vimos com Anakin Skywalker em seus sonhos nas prequelas de Star Wars. A arte rabiscada agrada, sem muito destaque.
Com exceção do final, é difícil criar empatia pelo protagonista. AKAKIRI é abrupto, mais um episódio com ritmo questionável. Mesmo assim, é um prazeroso curta.
Os 9 episódios de Star Wars Visions estão disponíveis na Disney+.