Construir jogos é contar nossas próprias histórias. É algo poderoso demais.
Hoje, resolvi escrever sobre uma coisa bem legal: o trabalho com videogames.
Se você é daquelas pessoas que joga assiduamente desde sua infância, certamente tem um cantinho muito especial no seu coração para os videogames. Você joga, vive antenado nas novidades, participa de grupos nas redes sociais. Fica com aquela ansiedade pelo lançamento mais esperado do ano. Curte uma boa promoção. Às vezes, fica pistola com algumas coisas que lê por aí, inclusive com meus textos.
Eu sei, eu sei. Quando algo mexe com nossas paixões, não há como permanecer quieto. Até o flop de um jogo muito aguardado gera uma porção de memes e piadas. Mas lá no fundo, quem espera ansiosamente por ele, fica com aquela frustração. E o que dizer se você pagou o preço cheio na pré-venda?
Quem trabalha com videogames sabe disso. Alguns estúdios e desenvolvedoras independentes levam tudo para um lado mais frio e profissional. Afinal, videogames também são negócios.
Em certos momentos, sentimos uma relação de amor e ódio. Como todos os trabalhos, a área de jogos digitais também possui suas mazelas e percalços. Alguns deles são muito difíceis de superar, pois atacam, de maneiras diretas ou indiretas, a sua existência no meio.
Por exemplo, por que será que apenas 10% dos desenvolvedores no Brasil são pessoas negras? O que será que acontece com o ecossistema de games no Brasil, visto que somos 54,9% da população?
Dados como estes, encontrados no “Segundo Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais”, são mais do que números. Encontramos muitas dificuldades para permanecer trabalhando com videogames. Mudamos isso, ajustamos aquilo. Daí que você cola em um evento de desenvolvedores e começa a contar o número de pessoas que possivelmente sejam negras e … Adivinha? Você é o chaveirinho da indústria “diversa”.
Na verdade, há mais considerações problemáticas sobre este dado, as quais ando levantando em minhas pesquisas. Deixemos para um momento mais oportuno. Hoje, não quero puxar o papo para os problemas, e sim para as coisas legais. Não quero de forma alguma minimizar os indícios do racismo estrutural, e sempre que possível, vou falar sobre eles. Ao mesmo tempo, embora nem sempre fácil, gostaria de reservar um espaço para falar sobre a alegria de se trabalhar com algo que se ama.
Construir jogos é contar nossas próprias histórias. É algo poderoso por demais. Sem contar que você usa uma linguagem repleta de outras linguagens. A hipermídia que falei no outro texto. Você constrói o roteiro, elabora as personagens, fica horas pincelando a pixel arte. Ao mesmo tempo, você vai juntando tudo, pedaço por pedaço. Tudo aquilo que estava na sua cabeça começa a ter vida através da programação. É como brincar de ser um Deus.
Uma autora nigeriana incrível, Chimamanda Adichie, nos fala um pouco sobre isso. No seu videogame, as histórias não precisam ser sempre épicas, e que contem a jornada de um herói errante que parte em busca da salvação do mundo. Não se deve existir apenas uma “história única”. Isso é bem perigoso, aliás. Podemos contar histórias de maneiras diferentes, aos montes ou aos pouquinhos. Neste universo aquém da indústria cultural, aquela denunciada por Adorno em 1944 e que se parece com uma fábrica de bens culturais padronizados e destinados à massa, criação e criador são importantes na mesma medida.
Mais uma coisa. Quando criamos nossos videogames de maneira independente, suspeito que o ato de criação também nos modifique. E não é pouca coisa não. De fato, a forma com que você lida com o processo de criação pode influenciar no quão seu trabalho será importante pra você mesmo/a/e. É sobre isto que estou realizando minha pesquisa no momento: um videogame decolonial, o qual você cria diferentes mecânicas, inventa novos mundos e aprende sobre você mesmo.
Depois da criação, chega a hora de publicar. Friozinho na barriga. Embora muitas vezes o jogo diga muito sobre você, o fato é que criamos para outras pessoas também. Possivelmente, seu jogo já foi testado por algumas pessoas antes de ser publicado na plataforma de sua escolha. Aliás, esta é uma ótima prática. Mas apertar o botão de lançamento significa muito mais. Teu jogo agora é do mundo!
Quando lançamos nosso primeiro jogo na Steam, “A Nova Califórnia”, foi exatamente assim. Depois de quatro anos de desenvolvimento, apertamos o botão verde. Marcamos para o dia 20 de novembro, feriado da Consciência Negra. Mas o fuso horário nos traiu: o sistema marcou o lançamento oficial do jogo no dia 19, um dia antes. Paciência!
A alegria de lançar um videogame não pôde ser contida. Uma pessoa da Nova Zelândia comprou o jogo e, não contente em jogá-lo, publicou um vídeo de 30 minutos. A expectativa de distribuir muitas cópias não foi alcançada, mas o fato de pessoas do mundo inteiro poderem conhecer sua história é demais!
Entre prós e contras, seguimos adiante. Além da publicação de jogos autorais, fazemos muitas outras coisas. Construímos atividades culturais, cursos, ciclos de debate. Produzimos curadorias e muitas coisas que nem sempre são sobre desenvolvimento. E também criamos jogos. Estudamos muito, muito mesmo.
Às vezes, confesso que a energia vai lá pra baixo por conta de acontecimentos ruins. Pessoas que não querem o seu bem. Lugares que se cercam de mecanismos de defesa, e que não te escutam. Energias que se contrapõem. Ficamos com medo. Medo de exposição, de nos posicionar. De precisar enfrentar situações de abuso. Trabalhar com o que você ama não vai te isentar desses enfrentamentos, ainda mais se você fizer parte de grupos historicamente marginalizados.
Por outro lado, temos a sorte de encontrar pessoas maravilhosas. E jogos tão incríveis quanto as pessoas. Nos tornamos fãs delas, e o melhor: o amor é recíproco. Contamos com o apoio, trocamos muitas ideias, cuidamos uns dos outros. Construímos espaços de escuta até nos momentos que poderiam ser os mais frios.
Como diz minha amiga Julia Stateri, com os olhos lacrimejando:
– É bom dividir os lanches do recreio com vocês.
Vejo você no futuro. Abraços!
* Jaderson Souza é doutorando em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela FFLCH, na USP e Também é mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. É presidente da Game e Arte, que desenvolve jogos e facilita processos educacionais por meio deles. As opiniões do autor não necessariamente refletem as do Bitniks.