Artes marciais são uma fachada convincente para uma história genérica, nos apresentando ao primeiro herói asiático do Universo Marvel.
Shang-Chi faz parte da seara de heróis que, antes de ganharem filmes próprios dentro do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, na sigla em inglês), foram impopulares nos quadrinhos.
Por anos, Homem de Ferro e Capitão América eram menos comentados que os queridos Thor e Hulk, mas o jogo virou quando eles foram adaptados para as telonas. Por causa da pandemia que mudou o cronograma de lançamentos, eventualmente abalando resultados de bilheteria, a Marvel fez a monumental decisão de lançar seu primeiro filme de herói com protagonista chinês exclusivamente nos cinemas.
Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis estreou no último dia 02, arrecadando 127 milhões de dólares no primeiro final de semana. Nos EUA, o filme conseguiu ficar alguns milhões abaixo de Viúva Negra, outro da Marvel, lançado em julho. A ironia? Ele ainda não ter data de lançamento na China.
É unânime o maior ponto forte de Shang-Chi: ter boas cenas de luta, por conta da base em artes marciais. Porém, ele vai além disso? Como o primeiro herói asiático é representado? Assistimos e te contamos aqui.
Treinado pelo pai para ser um assassino desde pequeno, Shang-Chi se desvencilha da organização dos Dez Anéis e, nos tempos atuais, vive no ocidente sua vida como chauffer. Um belo dia, ele é levado a enfrentar seu passado, reencontrando a família como parte de seu destino.
No filme vemos um misto de comédia, fantasia e ação. De praxe em histórias chinesas, legado e tradição são temas importantes. Fora o elenco diverso e as espetaculares cenas de ação, não há nada de novo. O visual colorido distrai da previsibilidade de enredo e, pensando que faz parte da Marvel, está tudo bem.
Shang-Chi está sendo louvado por críticos e pelo público ao redor do mundo devido à reparação por mudar o cânone: nos quadrinhos, o pai do personagem era Fu-Manchu, estereótipo racista – que nem era exclusivo da Marvel. Porém, o marketing inflamado não vai além desse ponto. Ter o primeiro filme de herói asiático só não demorou tanto tempo quanto o primeiro filme de uma heroína no MCU. Fora uma referência à raposa de nove caudas e o dragão submerso (ambos adiantados nos trailers), a fantasia/mitologia chinesa começa e acaba por aí.
Em termos de contar uma história de origem, Shang-Chi teria muito a aproveitar com a cultura do personagem, caso formasse um relacionamento bem construído com os pais e um vilão crível. Infelizmente flashbacks excessivos e um (verdadeiro) antagonista descartável impedem que isso aconteça. Ou seja, a Marvel mira em Pantera Negra e acerta em Homem Formiga.
Shang-Chi merecia mais reconhecimento pela proeza de reunir duas estrelas estrangeiras: Michelle Yeoh (Yu Shu Lien em O Tigre e o Dragão) e Tony Leung (galã dos romances de Wong Kar-wai, fazendo sua estreia em Hollywood). O uso de ambos em seus respectivos papéis é algo admirável.
Pelo lado bom, este é um dos poucos filmes de herói onde a parceira do protagonista é vista somente como uma amiga. Shang e Katy possuem uma amizade pura, sem quebrar a magia (nem sexualizar, nem diminuir a presença feminina). Simu Liu e Awkwafina, a dupla de atores, tem boa química e o filme sabe mostrar isso. Além disso, Katy serve como o “racional” disso tudo, importante para nós espectadores termos uma resposta às bizarrices fantasiosas.
Em específico ao protagonista, Simu Liu consegue ser carismático o suficiente para imaginarmos como ele irá lidar com outros atores/heróis da Marvel. Ainda assim, admito que Shang deixa a desejar. Sempre que é colocada uma decisão à sua frente, ele decide sem vacilar. Não há dilemas, nem sacrifícios. Nada o destaca o suficiente dos demais, fora ele ser o centro do pôster e ter seu nome como título do filme.
As três grandes sequências de luta (vemos todas nos trailers) são espetaculares. Elas elevam o filme para o pódio de combates mais palpáveis do MCU. Inclusive em lutas de menor escala, há um ótimo trabalho de câmera, se certificando que ninguém perca o fluxo do combate – são poucos cortes e poucos movimentos bruscos. De um ponto de vista técnico, é impressionante como takes longos conseguem mostrar o rosto dos atores, pois há dublês em grande parte das cenas.
Ao que aparenta, as coreografias foram emendadas com computação gráfica, dada a duração das cenas. Não se preocupe, pois nada supera a ininterrupta luta de Demolidor, referência ao coreano Old Boy.
Para dizer que esse não é “mais um” filme de herói, Shang-Chi faz suas conexões ao Universo Marvel principalmente com Wong (de Doutor Estranho) e o Abominável (de Incrível Hulk, de 2008). Trevor Slattery, interpretado por Ben Kingsley – que confirmou sua volta ao MCU mês passado – ocupa uma função mal aproveitada, mas serve como boa surpresa pela profundidade de seu personagem. Como é de se esperar, há uma cena pós-créditos com conexão a parte do universo e mais heróis não divulgados.
Pelas pontuais conexões, Shang-Chi vira um dos pouquíssimos dentre os outros 24 filmes do MCU que pode ser assistido sem compromissos, independente do conhecimento do espectador sobre a Marvel. Em contraste, esta Quarta Fase (divisão feita pelo estúdio para “capítulos” distintos do universo) promete trazer recomeços e introduzir conceitos abstratos muito mais complexos à mesa.
O multiverso e as variações entre linhas temporais, por exemplo, continuam o que tivemos em Vingadores: Ultimato de 2019. Eternos será lançado em poucas semanas, logo antes do terceiro filme do Homem-Aranha, uma conexão direta ao próximo Doutor Estranho no começo de 2022. Shang-Chi é explícito em se colocar neste cronograma, felizmente evitando a dependência de outros filmes.
Em suma, mesmo com as grandes falhas, Shang-Chi atinge todo o potencial que tinha por sua proposta. Seria melhor se nos poupasse do vai e vem entre flashbacks e momento presente, mas diverte um pouco. Pode ser previsível a quem não se distrair pela beleza das lutas e pelos cenários/personagens surreais. Se você gosta de filmes da Marvel em geral e se ama filmes de artes marciais, a experiência será (no mínimo) satisfatória. Afinal, exceto pelas magníficas cenas de luta, você já viu esta história.