Não se trata de apoiar teorias conspiratórias, mas é importante ter um debate aberto sobre o tema para evitar futuros riscos.
O assunto estava fervendo havia algum tempo mas há duas semanas atrás a panela foi destampada por um grupo de cientistas com credenciais à prova de suspeitas: precisamos investigar de verdade as origens do SARS-CoV-2, vírus que causa a Covid-19. Pode ser sim, que o vírus tenha sido criado em laboratório.
Os pedidos por mais investigações não vêm de novas evidências que apoiem a teoria do vazamento laboratorial, mas principalmente de evidências de que a primeira investigação sobre o assunto, na qual se apoiam os defensores da origem animal, tem falhas que não podem ser ignoradas.
Além de nunca terem investigado o laboratório chinês no qual o vírus teria primeiro aparecido, os pesquisadores que produziram o relatório receberam informações falsas do governo chinês, e se baseiam nelas para chegar a suas conclusões A mais importante delas provavelmente é de que o vírus similar ao SARS-CoV-2 que os chineses admitem ter armazenado não estava em um laboratório com nível máximo de segurança.
Para nós, aqui, como analistas de mídia, é importante entender o que interditou um debate que não deveria ter sido interditado. Precisamos, sim, discutir a veracidade da tese ou a probabilidade de que ela seja verdadeira, mas também a maneira como o assunto foi tratado pela mídia, e como a polarização política pode ter levado a conclusões precipitadas.
Como disse ao New York Times o imunologista Akiko Iwasaki, da Universidade de Yale, “no começo havia muita pressão contra levantar o assunto porque ele estava ligado a teorias conspiratórias e apoiadores de Trump. Havia muito pouca discussão racional sobre o tema”.
O ponto principal das discussões neste momento é que, embora ainda seja mais provável que o vírus tenha surgido naturalmente, por meio da evolução de outros vírus presentes em animais, e depois se adaptado para infectar seres humanos, ainda não é possível afirmar isso com segurança. O outro lado da discussão é justamente: parece ser coincidência demais que um vírus tenha sofrido mutações em animais e infectado pessoas exatamente em uma cidade que tinha um vírus muito semelhante em laboratório.
A discussão científica, na qual não vou me aventurar, passa pelos aspectos dos vírus, as semelhanças entre mutações observadas anteriormente, e como elas são muitíssimo mais comuns em vírus que sofreram mutações na natureza do que em vírus manipulados em laboratórios. Há, porém, quem enxergue praticamente o contrário: que há mutações no SARS-CoV-2 que raramente acontecem na natureza, e que isto seria prova de que o vírus “vazou” de um laboratório.
O fato é que a discussão está longe de uma certeza científica, mas foi interditada há meses, e por isso mesmo seguimos tão longe das respostas quanto estávamos há meses. Um bom exemplo do quanto isto pode ser problemático em termos de mídia: o Facebook vinha retirando do ar posts que mencionavam a possibilidade do vírus ter sido criado em laboratório; agora vai passar a permiti-los. A existência de uma discussão científica, porém, não muda o fato de que a maioria dos posts que foram e serão produzidos sobre o assunto existem apenas para difundir teorias conspiratórias, e que quase todos eles têm objetivos partidários claros. Se a discussão não tivesse sido interditada, é provável que já pudéssemos separar o joio do trigo, e bloquear o que deve ser bloqueado.
Esta coluna está longe de ser contra a politização de questões científicas, já que tudo o que envolve a humanidade é, de alguma forma, política. O objetivo aqui é entender como as preferências, políticas ou não, de cada um podem fazer prevalecer um viés, como a politização pode atrapalhar uma investigação que, esta sim, tem que buscar informações sem viés.
O caso do SARS-CoV-2 é o mais recente, mas vieses diversos estiveram presentes desde sempre em teorias eugenistas, racistas e misóginas, só para citar exemplos em que hoje isto é amplamente reconhecido. Não se trata de apontar o dedo e de achar culpados: dificilmente chegaremos a um nome, uma instituição que possa ser culpada pela catástrofe, e ainda que isto aconteça é pouco provável que a situação política internacional permita uma responsabilização.
É fundamental, porém, entender o que aconteceu e como para tentar evitar que aconteça de novo. Há milhares de laboratórios no planeta que armazenam vírus de diversos tipos, e hoje não parece haver uma supervisão mais rígida sobre seu armazenamento e manipulação, ainda que existam regras internacionais para isso. Não é possível ignorar não só a possibilidade de acidentes como a hipótese de que governos ou indivíduos queiram utilizá-los com intenções pouco puras.
Não custa lembrar também que o aquecimento global está trazendo de volta à vida vírus que estavam congelados há dezenas de milhares de anos, e que os protocolos sanitários também têm que estar preparados para lidar com eles.
* Caio Maia publica toda semana no Gizmodo Brasil. As opiniões do autor não necessariamente refletem as do veículo.