Cultura

Reciclagens e remakes: o mercado de animações virou uma questão de gerações

Aquela história de que “nada se cria, tudo se transforma” vale também para a indústria cultural? A nova onda de remakes, reboots e live-actions prova que sim.

28 de outubro de 2021

Ao decorrer do século do cinema, filmes que dão mais trabalho para produzir nem sempre têm retorno financeiro equivalente. Este raciocínio se aplica em diversos setores e indústrias, mas torna-se especialmente intenso quando olhamos para o mercado das animações. Não só no Brasil como no resto do globo, a animação é vista como um gênero de filme, não uma forma de fazê-lo.

Afinal, quem é o consumidor de animações?

Glossário de termos gringos

  • live-action: filmes com personagens em “carne e osso”, onde atores aparecem em cena.
  • spin-off: produto derivado, que se passa no mesmo universo de outro filme/série.
  • stop motion: técnica de animação onde cada imagem corresponde a um frame (fração de segundo).
  • box-office: total de quanto um filme arrecadou em seu período de exibição nos cinemas.
  • on-demand: método de aluguel ou compra de filmes em uma plataforma digital.

Por escassez de levantamentos precisos e abrangentes com público brasileiro, a referência é uma pesquisa estrangeira de dezembro de 2018, feita pela companhia Morning Consult e o jornal The Hollywood Reporter.

70% dos 2,2 mil entrevistados são favoráveis a animações. Destes, 56% são mulheres e 37% são homens – por referência, 80% eram brancos, 13% pretos e 10% hispânicos. Outro número importante é 60% deles serem pais, com parte deles assistindo as animações com filhos.

Em relação aos gêneros favoritos deles, há uma mistura entre os popularmente infantis, com filmes de comédia, aventura e fantasia ficando entre 50 e 60% de preferência. Romance, o maior alicerce da Disney, surpreende por ter 50% de reprovação dos espectadores, contra um misto de indiferença e aprovação. Sobre onde esse dinheiro mais está investido, vemos que 12% veem nos cinemas e 40% assistem em casa, por plataformas de streaming e on-demand.

Conforme dados de 2016, o valor do mercado brasileiro de animações está próximo dos R$5 bilhões. Porém, este número tende a ter crescido em frequência anual e desestabilizado no ano passado. Parcialmente trocamos o cinema pelo streaming depois deste ano pandêmico. 58% dos quem usa internet assistiram mais TV online e filmes/séries via streaming em 2020. Então, parte do público consumidor de animações teve que encontrar conforto em telas menores.

Porém, antes de compreendermos quem é o consumidor de animações hoje (além de números), é necessário olharmos em retrospecto para as últimas décadas de desenhos no país.

Nas últimas décadas…

Em conversa com o Bitniks, Bruno Araujo, cinéfilo e editor de vídeo, conta que viveu sua infância nos anos 1980 na frente da TV. “Íamos atrás dos programas infantis porque eles eram literalmente a única fonte que tínhamos para ver desenho”, diz.

Assistia de maneira religiosa as produções de Hanna-Barbera e também He-Man, Thundercats e Caverna do Dragão. Mais tarde, com Cavaleiros do Zodíaco na televisão, ele já era mais velho e tinha outros interesses. “O sucesso deles trouxe para a Manchete os fãs de anime, que foi a mesma coisa com tokusatsu”, relembra. 

Bruno afirma que “o anime trouxe o que não tínhamos nos desenhos americanos: a continuação da história. Era um upgrade do que a gente assistia”. Para quem queria saber toda a história era imperdível, pois não havia um cronograma exato para reprises e, claramente, na época também não havia internet.

Os desenhos mais elaborados vindos do Japão instigavam por serem violentos, com lutas e uma história mais séria. “Por eu não ser mais criança, achava aquilo incrível. Eu não sabia que desenho podia ser legal assim”. Araujo não demorou a se interessar por super-heróis, tipos frequentes em sua vida dali em diante.

“Com animações da DC foi como se eu voltasse a ter sete anos. Uma versão madura dos desenhos que eu gostava. Segui a sequência inteira, desde a série animada do Batman (de 1992, mas chegava aqui com atraso) até o filme da Máscara do Fantasma”.

Bruno Araujo, sobre animações maduras dos heróis

Vindo da geração seguinte temos Ivan Freire, artista e animador. Por sua profissão, ele vê os dois lados da indústria, da produção ao consumo – não necessariamente nessa ordem. Seu trabalho atual é com o Cartoon Network, como revisionista das artes, somado ao trabalho de desenvolvimento de games.

Por sua infância acontecer na virada dos anos 2000, o interesse por este tipo de conteúdo surgiu com a TV a cabo, no mesmo canal que viria a trabalhar anos depois. Decorava falas enquanto copiava os personagens, desenhando em seu caderno os traços de O Laboratório do Dexter, Johnny Bravo e Du, Dudu e Edu.

Quando assisti Akira pela primeira vez (não deveria naquela idade!), comecei a chorar… mas não queria sair de frente da TV. Não entendia nada do que acontecia, mas achava aquilo impressionante.

Ivan Freire

Freire nunca viu uma divisão clara entre live-action e desenhos. Consumia de tudo. A única grande ressalva com a televisão era a insatisfação na grade de episódios, pois muitas vezes uma temporada voltava ao início antes de sua conclusão. Ganchos de um episódio costumavam ficar em hiato eterno, como Dragon Ball.

Pós virada do milênio, investiu seu tempo na internet consumindo animes e trocando gravações em CDs virgens com amigos. Por poucos títulos chegarem dublados/oficialmente no país, a saída era adquirir os legendados com “internautas corsários”.

Para Ivan, Bruno e outros consumidores de animação de gerações anteriores, há uma certeza: filmes da Disney sempre foram memoráveis. “Tudo da Disney era maravilhoso. Era um contraste das animações da TV que passavam todo dia, porque eles sabiam que as crianças não ligavam para a qualidade do traço”, diz Bruno. Ele conta que foi por causa da Disney que sua percepção sobre a arte mudou, pois Aladdin e Rei Leão não eram “só para crianças ou garotas” como os outros desenhos. Era algo plural, era feito para ele.

A nova dimensão da Disney

Se você puder adivinhar quantos filmes animados a Disney fez, provavelmente chutaria muitas dezenas. Princesas, sucessos dos anos 1990, musicais e sequências devem somar um número absurdo, certo? Afinal, eles estão na ativa desde antes da Segunda Guerra Mundial – Branca de Neve e os Sete Anões saiu em 1937.

O mais impressionante é que são apenas 59 títulos, contando com o recente Raya e o Último Dragão (de 2021). A escala absurda da empresa imaginada por nós deve-se majoritariamente aos filmes live-action. Há mais de 100 filmes unicamente de atores em carne e osso (sem contar os mistos com animação) entre os anos 1930 e 1980.

No âmbito de filmes animados (dentro e fora da Disney) temos basicamente dois tipos: animações tradicionais em duas dimensões (2D), como Pinóquio, e as contemporâneas, em três dimensões (3D), como Toy Story. Lembrando que não necessariamente as animações feitas em 3D são assistidas “em 3D” com óculos especiais.

Falando especificamente sobre a empresa bilionária, fãs e especialistas começaram a separar as eras. A Era de Ouro foi até os anos 1940; de Prata ocorreu entre 1950 e 67; Bronze foi nos anos 1970 e a renascença aconteceu entre 1989 e 99. Durante o século XX, só existiram animações 2D feitas pela Walt Disney Feature Animation.

O tempo passou, a tecnologia foi aperfeiçoada e, com isso, hoje chega-se perto da verossimilhança nos filmes em 3D. O cinema teve um marco em 2006, quando a Disney comprou a Pixar por 7,4 bilhões de dólares. Os filmes de uma década produzidos pela empresa de Steve Jobs atrás agora seriam parte integral da Disney.

Os Incríveis 2 (Divulgação/Pixar)

Nestes 20 anos a Pixar lançou alguns longas que arrecadaram mais de 1 bilhão de dólares ao redor do globo (cada): Toy Story 3, Toy Story 4, Procurando Dory e Os Incríveis 2. Este último foi a maior bilheteria do estúdio, com US$ 1,2 bilhão.

Com Up: Altas Aventuras, de 2009, Bruno passou a ver que seu próprio dinheiro estava sendo bem gasto com cinema, devido aos filmes de alta qualidade de imagem que caminhava com os avanços tecnológicos. O editor lembra que Up foi um dos primeiros filmes que viu com os óculos 3D modernos (polarizados e escuros, não mais as lentes vermelha/preta). “Chega a ser mais marcante que o próprio Avatar“, afirma sobre o filme que quebrou recordes, lançado no mesmo ano.

Hoje, a Disney/Pixar possui forte concorrência: DreamWorks, Nickelodeon, Warner Bros., Illumination, LAIKA, Aardman, entre outros. O que predomina é animação 3D.

Lucrando com reciclagem

O Rei Leão, remake de 2019 (Divulgação/Disney)

Um dos primeiros contatos que Ivan teve com animações foi O Rei Leão (1994), em sua fita VHS verde. Antes de ver séries animadas, os filmes da Disney roubavam sua atenção à frente da TV. “Quando vi, sosseguei na hora. Achava muito mágico e diferente de tudo o que consumia. Talvez meu pai não tivesse noção da obra-prima que era o filme, mas eu gostava”, conta.

Em 2019 a Disney (novamente) faz história, lançando o absoluto sucesso do remake de O Rei Leão, com novos dubladores e visual mais realista, tridimensional. De um jeito ou de outro, a onda de reaproveitar sucessos de outras “eras” parece ter chegado para ficar, atualizando detalhes para gerações futuras.

O jornalista Pablo Miyazawa, em entrevista ao Bitniks, conta que (ironicamente) em meio aos copiosos personagens 3D de outros estúdios, quem se destaca mais são os animadores tradicionais. “As crianças de hoje podem muitas vezes se surpreender mais vendo um desenho antigo, por exemplo. Esse fenômeno de pegar um desenho dos anos 1990 e transformar em um live-action disfarçado (como Rei Leão), vamos combinar: não deu certo” relata.

Ao contrário do que é popularmente dito, os remakes da Disney começaram antes do que se imagina. Em 1994 tivemos O Livro da Selva, adaptação em live-action do filme de Mogli dos anos 1960. Em seguida, 101/102 Dálmatas foram lançados e, quase uma década depois, tivemos Alice no País das Maravilhas feito por Tim Burton. Nos anos 2010 isso foi intensificado, com 14 adaptados e spin-offs lançados até este ano.

Pablo comenta que hoje, no caso dos remakes e live-actions, uma criança que não assistiu o antigo “vê apenas mais um filme de animação que parece videogame e que não chama tanto a atenção, por ser parecido com outras coisas”. Para ele isso também vale com os adultos.

“A gente está perdendo um pouco essa noção do que é difícil e o que é fácil de fazer no universo da animação por essa abundância de produtos à disposição, então não temos um momento de sentar, apreciar e admirar aquilo”.

Pablo Miyazawa

Seja com remakes ou originais, a empresa se firma no box-office. Exemplo claro disso está no fato de 6 das 10 animações que mais arrecadaram no cinema, entre 2010 e 2019, serem da Disney.

No top 10 de cada ano facilmente encontramos sucessos equivalentes, com numerosos títulos superando live-actions de outros estúdios. Exclusivamente em 2019, 7 dos 10 maiores box-offices eram da Disney, somando fantásticos 10 bilhões de dólares.

AnoFilmeBilheteria mundial
(em dólares)
2010Toy Story 31,06 bilhões
2011Kung Fu Panda 2665 milhões
2012A Era do Gelo 4877 milhões
2013Frozen1,2 bilhões
2014Big Hero 6657 milhões
2015Minions1,1 bilhões
2016Procurando Dory1 bilhões
2017Meu Malvado Favorito 31 bilhões
2018Os Incríveis 21,2 bilhões
2019O Rei Leão1,6 bilhões
Fonte: boxofficemojo.com

2D e a preservação da arte

Enquanto a Disney crescia em seus remakes e filmes 3D, o cenário se modernizou. Poucos resistem às tentações de migrar da animação tradicional. Softwares de computador virariam mais uma ferramenta para auxiliar a produção dos desenhos, com o público discernindo bem o que queria consumir.

Hayao Miyazaki, fundador do Studio Ghibli, é um que suportou isso por completo. Seu sucesso mais celebrado é A Viagem de Chihiro, de 2001. “Esse filme acabou conduzindo o mercado de animação para esse ponto em que a gente está, mais talvez do que a própria Pixar”, conta Pablo.

A animação conta a história de uma garota em uma nova cidade, devido à mudança com sua família. Curiosa, Chihiro deixa seus pais e descobre que o local é cercado de espíritos que circulam livremente. O tom sinistro é mostrado em traços leves e cores nostálgicas, atraindo jovens e adultos de forma unânime.

“Tinha uma aura especial, então quem assistia sabia que aquele não era um ‘simples desenho animado japonês estranho'”, descreve Pablo. Chihiro tinha a capacidade de atravessar fronteiras (de preconceito sobre coisas feitas no Japão e de faixa etária também) e isso culminaria no Oscar vencido em 2003 – o segundo prêmio dado a animações, ano seguinte à vitória de Shrek.

A Viagem de Chihiro (Divulgação/Toho)

Para Pablo, o prêmio do Japão é incomparável ao recente prêmio do coreano Parasita, live-action que roubou a cena em 2019/2020. Os fãs da animação na época “torciam por uma categoria de produto da cultura pop japonesa”, que ele relata ser um nicho “muito incompreendido, ainda que adorado”. 

Miyazawa também afirma que não consegue comparar Chihiro aos desenhos atuais. “A tecnologia que existia em 2001 não se equiparava ao que temos hoje – isso aumenta o mérito dos Studio Ghibli em conseguir fazer Chihiro naquela época”, conta. A técnica de animação digital utilizada no filme era um misto de 2D com 3D, majoritariamente desenhado à mão, com programas de computador servindo como apoio a certas cenas, garantindo que a tecnologia não iria se sobressair. 

Chihiro bateu o recorde de Titanic no Japão, pelo box-office de 235 milhões de dólares e foi o primeiro filme não americano a arrecadar 200 milhões fora dos EUA. No ano passado, Aya e a Bruxa foi a primeira animação 100% feita em três dimensões lançada pelo Studio Ghibli, dirigida pelo filho de Hayao. A repercussão? Foi um fracasso total em termos de bilheteria e em recepção do público.

O Tu-Dum das animações

A Viagem de Chihiro e outros 20 filmes do Studio Ghibli estão no catálogo da Netflix brasileira desde o ano passado. Em poucos anos, o serviço de streaming concentrou animes e animações ocidentais, recentemente passando a produzir dezenas de originais.

Gradativamente eles se aproximam do Crunchyroll, referência em termos de exibição de animes com dezenas de milhares de episódios. JoJo’s Bizarre Adventure, um dos maiores da atualidade, terá sua quinta temporada exibida no serviço em uma agenda quase simultânea aos episódios na TV japonesa. O spin-off chamado Thus Spoke Kishibe Rohan foi o primeiro passo deste grande investimento, com exclusividade do serviço de streaming.

Castlevania (Divulgação/Netflix)

“Estou contente com a Netflix. Com a chegada de Castlevania, tivemos um estúdio americano prometendo que faria mais disso”, conta Bruno. A única exceção em termos de qualidade, para ele, fica com Resident Evil. “Se querem fazer um modelo de ‘linha de produção’, é inevitável produzir coisa para encher linguiça”, opina depois de citar a série como exemplo.

Números reforçam esta visão. No segundo semestre serão lançados pelo menos 12 animes originais, além das propriedades externas e a dezena de títulos adicionados mês a mês. Em panorama geral da Netflix, haverão mais de 40 filmes originais. À moda Disney, adaptarão o anime Cowboy Bebop para versão live-action em novembro.

Comparando os tempos atuais ao que existia nos anos 1990, hoje a animação não concorre apenas com poucos jogos de videogame e com alguns desenhos animados feitos para a televisão. A Netflix uma vez afirmou, por exemplo, que seu principal adversário era o Fornite, não a HBO.

O serviço de streaming da Disney, um dos mais novos aqui e no exterior, atingiu a marca de 116 milhões há pouco tempo. Isso corresponde a metade do que tem a Netflix, em um crescimento de projeção estável até 2024.

Para a sorte da Netflix, hoje o otaku (consumidor de anime e mangá) é cool, mas por tempos era sinônimo de preconceito. “O hábito de consumir esses produtos nunca foi visto como uma coisa saudável pelo mundo ocidental”, explica Pablo.

Cowboy Bebop da Netflix (Divulgação)

Não há marco-zero definitivo, mas nas últimas duas décadas o nerd foi mais bem aceito ao redor do planeta – e otaku também. Bruno conta que há anos esbarra com “homens barbados” vendo animação pelo celular, à bordo de trens e metrôs da capital paulista. Para ele isso é prova da popularidade imensurável em nosso país: “a grosso modo, do lado de animação no Brasil que não é infantil, o anime impera”.

A aceitação brasileira, na cadeira de quem produz, começou há poucos anos. Ivan conta que na visão de animadores brasileiros, fazer anime mudou em meados de 2018. Quando trabalhou na Dinamarca, há mais de seis anos, estudou em uma escola inspirada nas artes nipônicas. “Voltei para o Brasil mostrando o que era possível produzir e ninguém absorveu, ninguém queria investir. É como ter um poder novo e não poder usar” diz, em alegoria aos próprios animes.

Pegando o período da pandemia como referência, projeções mostram que o mercado tende a melhorar, mas Pablo se mostra preocupado com a longevidade dos produtos atuais. “Se você pensar que tudo concorre com tudo e uma criança hoje tem acesso a tudo isso (por conta do celular e da Netflix), o Toy Story se torna apenas mais uma coisa que ele vai consumir ao longo de um dia. Não tem a mesma importância que tinha antes.”