Cultura

O brasileiro vai voltar para o cinema pós-pandemia?

Tudo mudou com a pandemia de Covid-19. Por isso, é preciso pensar em qual tipo de brasileiro tinha hábito de ver filme nas telonas.

26 de agosto de 2021

2019 foi um marco na indústria cinematográfica. Vingadores: Ultimato se tornou a maior estreia nacional (e mundial) de todos os tempos. Meses depois, Coringa bateu recorde como maior lançamento de outubro, desde que cinema é cinema. Naquela época, tossir ou espirrar dentro das salas eram ruídos comuns, assim como o barulho do saco de pipoca amassado ou uma risada escandalosa. Por semana, cerca de 3,3 milhões de brasileiros foram ao cinema ver alguns dos 880 filmes em cartaz naquele ano, gerando um lucro que chega perto dos R$ 3 bilhões.

Neste ano, tivemos nada menos que três filmes da Marvel, três live-actions de animações clássicas da Disney, um filme de Quentin Tarantino e um episódio de Star Wars. 

Tudo mudou com a pandemia de Covid-19. Nesta semana, no entanto, a Marvel volta a apostar com um grande filme para as telonas: Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis. Mas será que o brasileiro vai voltar aos cinemas?

Antes, é preciso pensar em qual tipo de brasileiro tinha hábito de ver filme nas telonas.

Quem é o brasileiro que vai aos cinemas?

Marislei Nishijima, doutora em Teoria Econômica na USP, estuda o consumo de cinema por brasileiros e explica que as pessoas que frequentam cinema “são as mais ricas e as que têm média de anos de escolaridade muito maior do que a média”.

A especialista também descobriu que uma parcela muito pequena da população brasileira vê filmes na telona, mesmo que números oficiais digam que foram “172 milhões de ingressos vendidos” em 2019. Afinal, no mesmo ano, descobriu-se que apenas 1 a cada 10 municípios brasileiros possuem uma sala de projeção. Essas regiões concentram 60% da população. 

Nas cidades que não há cinema, metade da população não chegou a completar o ensino fundamental. O faturamento bilionário dos cinemas brasileiro, portanto,  vem de poucas pessoas, mas que vão várias vezes ao escurinho. 

Da telona do cinema para a tela de casa

A Disney+ foi lançada também em 2019 – mesmo que só tenha chegado no Brasil em 2020. O catálogo, com centenas de filmes e milhares de episódios de séries, além de conteúdos do National Geographic, Marvel, Star Wars e Fox já mostrava a importância que os grandes estúdios estavam dando para os streamings. Antes, o brasileiro se satisfazia com a Netflix (em seu oitavo aniversário no país), HBO Go e o Amazon Prime Video. Os dois foram os mais acessados pelos brasileiros que, se somados, resultam em uma média de 8 horas mensais. 

Durante a pandemia, o streaming se tornou o “novo” cinema.

Viúva Negra, filme lançado nos streamings e no cinema (Divulgação/Disney)

“O streaming está se popularizando por ser barato e por bastar uma assinatura para a família inteira ter acesso”, diz Nishijima. “Muitas famílias que moram no interior nem sabem o que é streaming. Então, embora o acesso esteja lá [por terem internet], as pessoas que são iletradas digitais acabam não conseguindo ver”, explica a pesquisadora ao dizer que ainda há espaço para os streaming

Entre 2018 e 2019 também houve uma queda sutil no consumo de filmes nacionais no cinema: de 22,9 milhões foi para para 22,6 milhões de espectadores. 

Em busca de competitividade com as crescentes assinaturas, o peso também caiu sobre produtoras de filmes. “Quando as empresas perceberam que pode ser uma fonte de renda muito importante além do próprio cinema, eles resolveram investir”. Aí temos os casos da Disney e da HBO, que viriam a inaugurar suas próprias assinaturas, entre o final de 2019 e o começo do ano seguinte.

É o fim do mundo como conhecemos

Em abril de 2020, quase todas as salas de cinema já estavam fechadas no país. A pandemia fez com que elas ficassem assim por mais de 5 meses, com uma fração de redes selecionadas reabrindo as portas na metade de outubro. A Disney resolveu lançar seus filmes “feitos para o cinema” na Disney+, primeiramente sem custo adicional, depois cobrando pelo lançamento simultâneo. Em pouco tempo, o espectador percebeu que o melhor substituto para a rotina cinematográfica seria o próprio streaming.

Uma pesquisa feita com assinantes de pelo menos um serviço mostra que, em 2020, 37% do público escolheu um streaming guiado pela intenção de assistir a um único filme, exclusivo da plataforma. Dos entrevistados, 7 a cada 10 indivíduos passaram a assinar um serviço a mais durante a pandemia. O brasileiro também passou o ano assistindo a quase 10 horas mensais de serviços pagos de filmes. Isso respingou em outras produções: entre janeiro e dezembro foi registrado aumento considerável em horas assistidas de filmes (403%) e também de séries (336%). 

(Reprodução/Business Insider)

Pedro Bomfim, estudante de letras e amante de filmes de terror, foi um dos brasileiros que substituiu confortavelmente as grandes estreias das telonas pela Netflix. “O streaming se tornou uma alternativa bastante viável em tempos de pandemia e, não só isso, também mostrou uma gama de opções muito maior do que o cinema”, conta. Bomfim acredita que streaming pode democratizar o acesso aos filmes, ainda que a ida ao cinema “faça parte da experiência social”. 

O último filme que ele viu nos cinemas foi Coringa, no fim de 2019. Pelas assinaturas, conseguiu manter a média de um filme novo a cada duas semanas (sem contar repetecos, animes e séries entre os longas). Quando o assunto é a imersão, Bomfim defende que há como substituir a telona pela TV. “Às vezes você quer sair de casa, dar uma volta com família e amigos, mas você tem jeitos de driblar isso para assistir no streaming. Basta combinar, por exemplo, um dia da semana para apagar todas as luzes e mudar os móveis de lugar. Isso cria uma atmosfera diferenciada”.

“O cinema tem essa capacidade de se reinventar, afinal ele não durou mais de 100 anos por besteira. Sobreviveu a guerras, ditaduras das mais variadas, censuras das mais variadas, ascensão e queda das fitas cassete. Ele também vai sobreviver ao streaming apostando muito nesse pilar social.”

Pedro Bomfim

A Disney, vendo o rumo da pandemia, decidiu criar um sistema para distribuição dos próprios filmes. Sugerindo que os espectadores/assinantes fizessem da casa o próprio cinema, surgiu o Premiere Access na Disney+: por um adicional de R$ 69,90 à assinatura, você pode escolher ter acesso exclusivo a um filme no mesmo dia que ele estrear. O usuário compra e assiste quantas vezes quiser e, cerca de três meses depois, o filme estreia a custo zero (para quem assinar). A primeira aplicação disso foi com o live-action de Mulan, nos EUA. Aqui no Brasil a chegada do Premiere foi com Raya e o Último Dragão, seguido de Cruella e posteriormente com os filmes da Marvel.

Quem ficou para trás nessa corrida precisou se adaptar. Produtores e diretores mais conservadores de suas obras exigiram que tais produtos fossem obrigatoriamente aos cinemas. Christopher Nolan e Denis Villeneuve foram dois deles. Os diretores adiaram, respectivamente, a estreia de Tenet (setembro de 2020) e Duna (para outubro de 2021), ambos do gênero de ficção científica e ação – ingredientes essenciais do consumo da sétima arte em tela grande.

Porém, no final de 2020 temos uma grande mudança neste cenário de gigantes. Inspirada pelo que a Disney fez, meses antes, a HBO Max colocou Mulher-Maravilha 1984 simultaneamente no catálogo do streaming e em cartaz nos cinemas ao redor do mundo. Spoiler: essa seria a primeira grande investida da HBO, mas não a última.

De Volta Para o Futuro

Em 21 de janeiro, o grupo Warner anunciou que todas as estreias cinematográficas de 2021 estariam também na HBO Max. Ou seja, Godzilla vs. Kong, Mortal Kombat, O Esquadrão Suicida, Duna, Invocação do Mal 3 e outros 12 filmes estreiam sem custo adicional aos inscritos. Estes ficam por um mês inteiro, terminam seu ciclo padrão de exibições nas telonas e, semanas depois, podem voltar ao catálogo em definitivo. A fórmula que funcionou com Mulher-Maravilha foi replicada com sucesso.

Aqui no Brasil, ainda sem HBO Max, não tivemos a mesma regalia. Godzilla vs. Kong e Mortal Kombat foram adiados mais de uma vez. Outros do primeiro semestre tiveram circulação limitada. Por outro lado, pelo menos um destes filmes se deu bem, gerando renda e público em valores ainda mais próximos do que foi em 2019. A sequência da franquia de terror Invocação do Mal gerou R$ 8,4 milhões no fim de semana de estreia em nosso país. Os valores chegam perto do que o filme arrecadou em locais como Espanha e Rússia.

Protagonistas de Invocação do Mal 3 (Divulgação/Warner)

É possível que Invocação do Mal 3 tenha genuinamente atraído mais de 500 mil brasileiros nesses primeiros dias, por conta de nós sermos fãs da franquia – o anterior (de 2016) atraiu mais que o dobro, no mesmo período. Porém, é inegável que parte do sucesso estrondoso se deu por causa de uma euforia. “Esse é um fenômeno comum de comportamento depois que passa uma pandemia”, explica Nishijima . O público, com a impressão de “estar seguro”, fica eufórico, de acordo com ela.

“Imagino que esse tipo de coisa aconteceu também por a gente estar há muito tempo trancado. Como nunca fizemos um lockdown efetivo (de um mês, para ser efetivo) na totalidade, estamos há um ano e meio em casa. As pessoas estão ávidas para sair. É aquela coisa: quando há a oportunidade, o lançamento, elas vão.”

Marislei Nishijima

Gradativamente, em nosso “novo normal”, 2021 teve sucessos no cinema brasileiro. No final de semana entre 18 e 20 de junho, por exemplo, mais de 340 mil pessoas frequentaram cinemas nacionais. Os mais assistidos somaram R$ 6,45 milhões em bilheteria, com a inclusão de Cruella (R$ 1,3 milhão), Espiral – O Legado de Jogos Mortais (R$ 593 mil) e o já citado Invocação do Mal 3.

A alternativa de assinaturas não afetou tanto a receita norte-americana dos cinemas. Isso só começou a mudar com as produções originais, ou com colaboradoras que produzem filmes exclusivos para um serviço. A ideia de que a Netflix poderia trazer sempre o mesmo filme antigo das telonas, por exemplo, deixou de ser verdade.

Nishijima diz que o cinema éum “bem de experiência”, que sempre vai precisar de bens complementares para ser consumido. Por isso, assistir algo no celular, em casa, é diferente de consumir o mesmo título no cinema. “O que é o bem complementar? É o passeio, a pipoca, a companhia, a diversão, é a experiência”. O cinema oferece exatamente esta experiência. Por conta disso, acima de qualquer outro motivo, as salas de cinema não vão deixar de existir. Pelo menos, não tão cedo.

Guerra das Poltronas x Sofá

Pedro Sobreiro, colecionador de DVDs e crítico de cinema, sentiu falta de ver filmes nas telonas por mais de 14 meses. Sobreiro diz que parte da diversão do duelo de gigantes está ligada ao “som alto, tela grande e os momentos de silêncio”.

Há tempos, com seu trabalho de 2018 em meio período, o jornalista carioca criou o hábito de ir ao cinema quase todas as tardes, quase sempre sozinho. Um dos cinemas cobrava apenas R$4 pelo ingresso, logo, o intervalo entre ossos do ofício e faculdade foi bem preenchido. Quando estava acompanhado, neste e em outros momentos, seu maior deleite era pós-sessão. “Com a pandemia, o ‘comentar depois’ do filme não existe mais. Pela internet não é a mesma coisa: você não vê a reação da pessoa, nem a empolgação ou falta dela”. 

Emocionado, o cinéfilo diz: “Quando voltei para o cinema, pela primeira vez após um ano longe, foi difícil de segurar as lágrimas”. Ele trata o cinema quase como um ritual, tendo grande apreço pela atmosfera: o ar condicionado, a vinheta do IMAX e até uma região (ou assento) em específico.

Sala de cinema IMAX (Reprodução/TKH)

Sobreiro claramente não é o único. Em uma pesquisa do DataFolha feita com brasileiros entre 16 a 65 anos (de diversas regiões do país), descobriu-se que 44% das pessoas pretendem retornar à rotina de cinema quando as coisas ficarem mais seguras. Para 30% dos envolvidos na pesquisa, ver um filme em tela grande foi uma das atividades que mais fez falta durante a pandemia.

Fato é que, com universos compartilhados entre streaming e cinema, ou em produções exclusivas de um destes meios, pelo menos a Disney garantirá seu lugar onde haja mais sucesso: a empresa de Bob Chapek pretende gastar entre 14 e 16 bilhões de dólares exclusivamente em títulos da Disney+ até 2024. Atualmente eles gastam menos da metade deste valor com filmes e séries originais do serviço.

Sobre o futuro, Nishijima crava: “acho que o cinema não precisa dessa coisa de ‘ser reinventado’ por causa da característica de ele ser um bem de experiência”. 

“Se houver um filme que trouxer uma tecnologia diferente e ela for bacana, acho que há potencial de carregar outras produções. Mas o espaço também vai ter que mudar para comportar essa novidade”.

Marislei Nishijima

Inevitavelmente uma ida ao cinema trará diferentes atrativos pela exigência do público, em inúmeras ocasiões de interatividade, seguindo o curso natural pré-pandemia. Porém, fundamentada na própria pesquisa, a doutora prevê que ele “pode caminhar para ser algo elitizado, pois para ser interativo também tem que ser caro”.