Como será o mundo pós-Covid-19 para o jornalismo?
Como será o mundo pós-Covid-19 para o jornalismo? Para Kyle Pope, editor-chefe da Columbia Journalism Review, teremos que tentar voltar a um normal pré-2020 ou buscar mudanças profundas. É o que ele diz na última edição da revista, que tem um tom bem existencial.
“Quem pode ser chamado de jornalista?” é a pergunta feita no primeiro capítulo da edição. No Brasil, a discussão há algum tempo passava por ter ou não passado por uma faculdade de jornalismo. Isso de alguma maneira ficou no passado, até porque a briga não é mais com quem faz a mesma coisa que você sem ter um diploma.
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Neste primeiro capítulo há um artigo escrito pela jornalista Clare Malone. Na verdade, é uma espécie de perfil de Phillip De Franco, de quem eu nunca tinha ouvido falar, mas que tem 7 milhões de assinantes no YouTube e 1,2 milhões de seguidores no Twitter. De Franco representa bem os youtubers jornalistas: caras que têm uma audiência online muito maior do que a de apresentadores dos “antigos meios”. Nenhum deles “produz” jornalismo, embora isso não seja exclusividade dos youtubers – as maiores estrelas da TV a cabo americana hoje em dia também são comentaristas.
Se você, como eu, tem crianças pequenas em casa e elas em algum momento furaram o isolamento que as protegia do YouTube, você sabe que lixo mal produzido domina a rede – e que, para as crianças, tanto faz. Porém, quem acompanha os conteúdos produzidos pelos canais que cresceram produzindo lixo, percebe uma inflexão.
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O youtuber Luccas Neto, irmão do Felipe Neto, é um produtor de lixo comparável a usinas nucleares. Seus vídeos, que aparecem em destaque, são dele comendo doces e abrindo brinquedos diversos. Os conteúdos mais recentes do canal, porém, além de serem muito mais bem produzidos, têm trazido mensagens para mostrar que são, entre outras coisas, “acompanhados por um pedagogo”. Se é verdade ou se o pedagogo está fazendo um bom trabalho podemos até discutir, mas o que é evidente é que há uma preocupação em mostrar preparo.
Essa preocupação certamente não vem espontaneamente do YouTube, que quer saber de audiência e dinheiro, e que permite que a quantidade de lixo se multiplique. Para os anunciantes, porém, faz diferença. Casos recentes e não tão recentes de youtubers fazendo merda e arrastando para a lama o nome dos anunciantes são numerosos. Hoje provavelmente não há uma marca grande que anuncie com um influenciador sem tomar os devidos cuidados de imagem.
Luccas Neto certamente não está preocupado com a sua criança, mas se a supervisão de um pedagogo ajudá-lo a conseguir que anunciante pague para ele comer sorvetes em Miami, está tudo certo.
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O que nos traz à notícia de que o Youtube vai investir nada menos do que US$ 7 milhões em dois programas jornalísticos. Segundo o Axios (link lá embaixo), serão dois programas, que vão dar entre US$ 50 mil e 200 mil para jornalistas independentes (foco de um dos programas) e redações (foco do outro). Tim Katz, chefe de parcerias em jornalismo do Google, disse ao Axios: “Vemos nossos usuários acessando a plataforma em busca de notícias. Acreditamos que é nossa responsabilidade com esses usuários dar-lhes acesso a notícias e informações confiáveis.”
Voltando ao texto do começo desta coluna: não se trata de emular no Youtube o modelo de jornalismo que vigorou até a disseminação de redes sociais e do próprio Youtube, mas sim de descobrir novos caminhos. Embora o Google já tenha distribuído dinheiro para este mesmo fim, é a primeira vez que ele faz sob a bandeira do YouTube.
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Um dos problemas que os programas não conseguem enfrentar com muito sucesso, porém, é a falta de criatividade dos jornalistas em sair do modelo tradicional. Programas do tipo no Brasil quase sempre acabam atraindo interessados no dinheiro que não têm nenhuma perspectiva de construir modelos sustentáveis, e que têm uma cabeça muito mais de ONG do que de empreendedor. Todos têm modelos que fazem total sentido do ponto de vista do papel social do jornalismo, mas poucos pensam em quem vai pagar essa conta quando acabar o dinheiro do Google. Um dos programas do Google se propõe a enfrentar também isso, dando subsídios para que as redações busquem a sustentabilidade financeira.
A crise de sustentabilidade do jornalismo é profunda e sua solução passa por entender o próprio papel do jornalismo. Passa por entender que para ampliar a base de leitores é necessário ampliar o topo também, ter diversidade entre os produtores e curadores de informação. O problema não é limitado a plataformas, mas é claro que novas plataformas historicamente também ampliam a base.
O dinheiro do YouTube ajuda, mas não resolve nada sozinho. Como mostra a Columbia Journalism Review, superar a crise depende de sangue, suor, lágrimas e criatividades.
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Se você acha que esta coluna começa muito focada no fora do Brasil, somos dois. Quero acreditar que é porque a inovação em mídia não está concentrada aqui mas a verdade é que o conteúdo sobre o tema ao qual tenho acesso é majoritariamente americano. Se tiver sugestões de coisas daqui mesmo que eu não estou vendo, manda no [email protected].
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Aqui as publicações citadas acima: a “Existential Issue” da CJR você encontra aqui. O Axios está aqui.
A dica da semana é uma série japonesa chamada Midnight Diner, baseada no mangá de mesmo nome, que se passa em um restaurante de Tokyo que abre das 00:00 às 07:00. É difícil de descrever, dá uma olhada, os episódios são curtos.
Outra dica é o ABFP, podcast dos veteranos Paulão Martin, André Forastieri e André Barcinsky, e que de vez em quando conta também com Álvaro Pereira Junior. A edição dessa semana tem como substituto do Álvaro ninguém menos que o grande Flávio Gomes. Aqui.
Aliás, enquanto eu escrevo isso aqui estou ouvindo um álbum sensacional, um dos meus preferidos de todos os tempos que é o Electric, do Cult. Se você gosta de rock com guitarra pesada, é um clássico.
* Caio Maia é publisher da F451 e escreve aos sábados. Suas opiniões não necessariamente refletem as do Bitniks.