Artigo

O décimo primeiro filho

8 de dezembro de 2021

Eis que chega o final de 2061. Boas festas!

Quarenta anos atrás, lá na década de 20, passamos por tempos difíceis. Uma pandemia mundial assolou o mundo inteiro, resultando em milhões de mortes. A Covid-19 perdurou por cerca de três anos, e fez com que o mundo mudasse drasticamente.

Ou não.

O Brasil foi um dos territórios que mais sofreu com a pandemia. Nesta época, o território foi governado por um presidente que simplesmente não acreditou que tudo aquilo poderia acontecer. Enquanto uma base de eleitores continuaram o apoiando ferverosamente, algumas pessoas o intitularam adequadamente de “genocida”.

Nesta época, lembro-me que morava na província de São Paulo, mais precisamente em Guarulhos. Felizmente, eu e minha companheira, Tainá, tivemos o privilégio de nos proteger da pandemia em nosso bunker. Quem vê, pensa que nascemos em berço de ouro. Sim, tínhamos nossos pais, que nos deram a possibilidade de frequentar escolas e universidades, e isso nos ajudou demais. Na real, estudar era um puta privilégio mesmo. A partir disso, trabalhamos muito e pudemos sobreviver.

Na época, cada um corria por si. Havia uma coisa chamada “dinheiro”, uma espécie de abstração matemática bem antiga, que calculava “pontos” para atividades que fazíamos por aí afora. Esse “dinheiro” podia ser trocado por quase todas as coisas. Videogames pra jogar, um teto pra morar,  serviços de streaming, sexo casual. Combustíveis fósseis tornaram-se super caros em 2021, aliás. Pasmem: até pra comer, era necessário ter o tal do dinheiro.

Uma das coisas que fiz durante este período de lockdown foi escrever para um website. Ele se chamava Gizmodo, e depois, BitNiks. Felizmente, uma das únicas coisas que sobrevivem até hoje são os textos. Textos e histórias contadas pelas bocas de quem viveu nessa terra há tanto tempo. E tem quem diga hoje, em 2061, que o texto escrito irá morrer …

Por sorte do destino e muitos cuidados com os arquivos, acabei recuperando todos os textos que escrevi para o website, e coloquei-os de volta. Foram 10 textos publicados; 11 se contarmos com este que escrevo quarenta anos terrestres depois. O décimo primeiro filho.

A primeira vez que me coloquei de frente para a tela, resolvi escrever sobre videogames e cultura. Foi tipo um pot-pourri sobre jogos, motores de criação e publicação na internet. Assim como a tese que escrevi na época, terminei com uma provocação às leitoras e leitores: quem poderia criar um jogo?

Já que a intenção foi a de instigar reflexões sobre criação, parti para os videogames das quebrada. Falei sobre as visitas até a banca de jornal para comprar os tão maravilhosos cd-roms, e o como um programa como o Rpg Maker poderia ser tão potente enquanto ferramenta para contarmos nossas próprias histórias.

E assim o caldo foi engrossando. Trazer a experiência estética junto com livros foi, desde aquela época, uma forma que encontrei para aprender mais sobre o mundo. Assim, pude propor reflexões acerca do significado do termo “cultura”, bem como possibilidades trazidas pelos campos da hipermídia.

Como a vida era um vaivém, saí um pouco dos livros e escrevi sobre videogames e afetividade. E, logo depois, me vi na necessidade de escrever sobre a alegria de se trabalhar com videogames, algo que tanto amo desde aquela longínqua época. E por falar em alegria, um dos maiores acertos que tivemos foi a de incluirmos todas as gerações, de crianças à terceira idade, dentro dos processos de educação social com videogames que fizemos. Tá lá, escrito!

“Tecnologias da desinteligência”, “Admirável mundo novo” e “Aya e seu lindo black power” foram os textos seguintes. No primeiro, estive em um período full pistola com o mundo. Em uma morada de 1 mês na praia, percebi que muitas das tecnologias que admirávamos naquela época, na realidade, condicionavam nossa existência e nosso bem estar a partir de uma enorme exploração dos recursos naturais, e também de nossos próprios irmãos de espécie. Foi nessa época que passei, junto à Tainá, a não comer mais carne.

E cá hoje estamos. Sinceramente, não sei explicar o como chegamos aqui. Estamos vivos, com muita saúde e energia para viajar o mundo inteiro, pela quinta vez. 

Aos poucos, as pessoas foram entendendo coisas que jamais foram compreensíveis há quarenta anos atrás. Pessoas pretas passaram a ser reconhecidas como as grandes precursoras do mundo e de todas as suas tecnologias. Histórias de exploração do nosso povo não foram esquecidas, mas praticamente desapareceram no contexto atual. Assim como as histórias vitoriosas, elas também são contadas com frequência, para que nunca mais voltemos a viver aquilo tudo. Assim como a oralidade, nossos ancestrais passaram a ser reconhecidos por tudo o que fizeram por nós.

Hoje, vivemos em um momento mais próximo da liberdade. As pessoas não passam mais fome. A natureza passou a ser compreendida com a mesma importância que damos para seres humanos. Afinal, também somos a natureza. A vida de uma árvore é tão importante quanto a de um porco que, por sua vez, tem a mesma importância que uma abelha.

O dinheiro não existe mais. Parecia impossível para alguns, mas as pessoas passaram a dar o melhor de si quando saíram da corrida pelo ouro. De fato, alguns donos de grandes corporações não aguentaram a pressão e enlouqueceram, pois tudo o que aprenderam durante sua vida já não servia mais. Outras pessoas, logo quando a bufunfa foi declarada extinta, trataram de reivindicar rapidamente o direito recém conquistado à vida. Nada de correria, nada de pressão. Simplesmente foram viver.

Sem a luta de classes, outras pautas também avançaram. Alguns “ismos” passaram a ser reconhecidos como uma péssima prática discursiva para o dia a dia. O racismo estrutural, o machismo, a homofobia, a gordofobia, a xenofobia, etc; finalmente passaram a ser discernidos por todas as comunidades. Assim, com vigilância constante contra tais práticas, estamos nos tornando um mundo melhor. Não, as fobias ainda não acabaram, mas estão caminhando para o seu fim.

O conhecimento do antigo chamado “Sul Global” foi finalmente reconhecido. Culturas indígenas e quilombolas tiveram muito a nos ensinar. Todas elas passaram a fazer parte de um grande conglomerado de conhecimentos, de formas de vida diferentes. Só que, diferente do passado, a pluralidade foi tomada como a maior força de todas.

Abraços, encontro vocês em novos horizontes!