Artigo

Tempo ao tempo (parte dois)

15 de dezembro de 2021

A viagem se inicia. O passado é destino. E meu único desejo é conseguir salvar meu irmão. O artefato me leva através do tempo e a sensação é de adormecer — não pela parte da sonolência, mas porque meu corpo e minha mente entram noutro estado de consciência. Não tenho noção de quando deixo de ver tudo à minha volta, só percebo quando estou no quarto de Júlia outra vez. É impossível saber quanto tempo a viagem dura, mas tenho certeza de que, por um momento, deixei de existir em ambas as épocas até chegar no passado.

Júlia não está mais aqui no quarto. Estou no mesmo lugar, assim como os móveis em minha volta. É aquela segunda-feira outra vez. Preciso garantir que hoje não se torne o pior dia da minha vida.

Saio do quarto e da casa de Júlia sem ser visto. Pelo horário, ela ainda está na escola — agora se perguntando onde fui parar. O engraçado sobre a viagem no tempo é que, diferente de muitos filmes que assisti, você não encontra sua outra versão, ela simplesmente deixa de existir. Não pode haver dois de você no mesmo momento. Júlia e eu testamos isso e nunca encontramos outras versões nossas, mesmo garantindo que visitássemos lugares no dia e hora exatos em que estivemos lá. Sua versão original, ou aquela que pertence ao passado, desaparece sem que ninguém perceba.

Apresso o passo pelas ruas. Minha mente está no automático e torço para conseguir chegar a tempo. Aconteceu na hora do almoço. Mas mesmo com pressa, decido não correr — não quero chamar atenção desnecessária. Alguns minutos depois, chego ao supermercado onde Daniel trabalhava… trabalha como empacotador.

Pergunto para uma funcionária no caixa:

— Daniel tá aqui?

— Sim, lá atrás. Tá quase tirando o horário de almo…

— Obrigado — interrompo e saio à procura dele.

Vejo-o ao lado de um carrinho de compras cheio de caixas de papelão, de onde ele retira alguns pacotes de biscoito e coloca na prateleira.

— Daniel — chamo ao chegar perto dele. Minha voz falha.

— Douglas? — pergunta ele, sem entender.

Dou um abraço nele e sei que ele acha isso estranho, porque nunca fomos de demonstrar afeto — não fisicamente. Mas faço isso por causa da saudade e porque no dia do enterro eu me arrependi de todos os abraços que deixei passar.

— O que aconteceu? Você tá bem? Por que não está na escola?

— Nada. Só saí mais cedo da escola e resolvi passar aqui.

— Sentiu saudade? — diz ele, rindo. — Deixa só eu terminar isso aqui, aí a gente pode almoçar junto.

Depois que Daniel termina de arrumar a prateleira ele avisa ao gerente que está indo almoçar. Não sei em que momento exato a confusão começou, mas não posso deixa-lo sair agora. Preciso ganhar tempo.

— Calma aí — eu peço — vou só comprar uma coisa.

— Ok. Te espero lá fora.

— Não! É rápido — eu digo. — Preciso que você me ajude a escolher.

Ele me segue até a seção onde ficam as sandálias e finjo que estou indeciso sobre qual comprar. Daniel se mostra impaciente, mas, dez minutos depois, digo que é melhor comprar em outra loja.

Fora do mercado, nada acontece. Nem mesmo a confusão. Faço a gente caminhar com passos largos até chegarmos no restaurante onde Daniel costuma almoçar. Tento ir para um lugar mais longe dessa avenida, mas ele não aceita, diz que já perdeu muito tempo. Fico apreensivo durante todo o almoço, com medo do assassinato ainda acontecer, mas aqueles 10 minutos parecem ter sido suficientes.

Volto para casa sozinho e passo a tarde inteira esperando Daniel chegar do trabalho. Cada minuto que avança no relógio é uma tortura. Fico apreensivo achando que vão nos chamar na frente de casa outra vez para contar o que aconteceu. Mas quando ele entra pela porta da sala é a confirmação de que consegui mudar o passado, de que ele continuará vivo. 

Durante o jantar que fazemos na sala, Daniel assiste ao jornal e vê os lances do futebol, comentando feliz sobre os gols que o Flamengo fez no jogo do dia anterior — tão empolgado que é quase como se não tivesse assistido ao jogo. Aproveito o resto da noite, sabendo que em breve terei que usar o artefato e voltar para o presente. Só quando eu estiver de volta no meu tempo e encontrar meu irmão lá, é que poderei ficar tranquilo.

Espero minha mãe e ele irem dormir e vou para o meu quarto. Quase dou um grito quando vejo uma figura parada ao lado da minha cama, mas ela pede para que eu fique calado. Não sei o que mais chama a minha atenção: se é o fato de ver o rosto de uma Júlia mais velha me olhando ou por que ela usa um artefato igual ao meu no pescoço.

— Júlia? — Ela deve estar uns 30 anos mais velha do que a amiga que deixei no meu tempo. — Como você conseguiu esse artefato?

— Nós achamos, Douglas. É sempre assim que a gente encontra.

— E o que você veio fazer aqui?

— Desfazer a bagunça que você criou. Você não pode salvar seu irmão. Toda vez que tenta, só piora as coisas.

— Como assim?

Ela se aproxima.

— Você já sabe por que nós encontramos o artefato de início?

— Não.

— Pois bem… Toda vez que alguém viaja no tempo, uma réplica do artefato é criada no espaço-tempo de destino. Por isso a gente o encontrou, algum viajante foi para o nosso tempo. O problema é que quanto mais viagens são feitas, mais artefatos são criados e outras versões nossas, e até pessoas diferentes podem fazer suas próprias viagens. Isso está destruindo linhas temporais e criando outras. Douglas, você não tem noção de como está sendo difícil destruir todos esses artefatos. Mas preciso fazer isso, preciso te devolver para onde você veio.

— Espera um pouco, se você está viajando no tempo para limpar essa bagunça que diz que criei, significa que também está deixando outros artefatos por onde passa.

— Não — ela diz segurando o artefato no seu pescoço. — Esse aqui é diferente. O Douglas do meu tempo fez algumas modificações nele antes de morrer.

— Eu estou morto?

— No meu tempo, sim. Você aprendeu o bastante sobre o artefato para conseguir modificá-lo. A ideia de consertar tudo foi sua. Estou aqui porque você não conseguiu concluir seu plano. Depois de um tempo você entendeu que tentar salvar Daniel criava outros problemas.

Engulo em seco.

— Quer dizer que preciso deixar meu irmão morrer mesmo podendo mudar isso?

— Você não pode. É algo que não tem fim. Não importa quantas vezes você tente, e bem sei como tentou muitas. A tendência é ele continuar morrendo e morrendo até você desistir. Seja amanhã, daqui uma semana ou um mês. Isso só faz você deixar mais artefatos para outras versões sua encontrar e tentar fazer a mesma coisa. Eu sei que é difícil, mas a morte de Daniel é inevitável.

— Não deveria ser inevitável — eu digo, com raiva. — Ele não morreu em um acidente, nem por causa de alguma doença ou velhice… ele foi assassinado pela polícia. Não há nada de natural nisso.

— Por mais que seja injusto, o passado não pode ser mudado. Tudo que podemos fazer é transformar o presente e construir o futuro. Acredite em mim, vi o bastante para saber disso.

É difícil duvidar de quem eu mais confio nesse mundo. Mesmo ela tendo um rosto mais velho e não sendo exatamente a Júlia que conheço. Mas ela ainda tem outra carta na manga. Do bolso, retira um aparelho que parece um celular muito mais avançado do que os que conheço. Na tela, coloca um vídeo e me deixa assistir. Assustado, me vejo. Quase tão velho quanto Júlia. No vídeo, começo a falar:

— Douglas, se você está vendo isso é porque Júlia está com medo de não conseguir te convencer. Mas tudo o que ela falou é verdade. No fundo você já imaginava que não daria certo. Eu convivi com a sensação que você teve ao viajar pela primeira vez. Todas as vezes que tentei foi sabendo que não adiantaria. Isso não me impediu de parar, mas foi o que me destruiu. Usei os últimos anos para entender e modificar o artefato, mas era tarde demais. Todas aquelas viagens me deixaram debilitado, mexeram muito com o meu corpo. Você não precisa seguir esse caminho. Vá viver sua vida. Você sabe que é isso o que Daniel iria querer. 

Me ver falando comigo causa uma sensação mais estranha do que estar no passado. Viro as costas para não precisar olhar para Júlia. Fico alguns minutos pensando. Ela espera.

— Faz diferença se eu voltar pra minha linha temporal um dia antes da morte de Daniel? — pergunto, secando os olhos. — Prometo que não vou tentar impedir nada.

— Não. Viajar no tempo não é um problema desde que não se altere nada.

— Não quero alterar, só quero me despedir.

— Tudo bem, podemos fazer isso. — Júlia parece um pouco surpresa, talvez esperasse que eu continuasse resistindo. — Vou precisar do seu artefato. — Entrego o objeto para Júlia, que o guarda em um dos bolsos. Depois ela me faz segurar o artefato que está em seu pescoço. Ela mexe nas funções. — Pronto?

Afirmo com a cabeça.

***

Estou em casa. A Júlia mais velha acabou de ir embora para continuar consertando o tempo. É domingo de novo. O dia anterior. Ao retornar, a primeira coisa que sinto é o cheiro de pipoca recém feita preenchendo a casa. Entro na sala e Daniel está sentado no sofá ao lado de nossa mãe. Na televisão, os jogadores começam a entrar em campo.

— Vai assistir com a gente? — Daniel pergunta.

— Claro… — respondo com um nó na garganta.

Minha mãe me ofereceu a bacia com pipoca. Pego um pouco e preciso respirar algumas vezes porque minha vontade é levantar e sair correndo. Nenhum deles sabe o que acontecerá no dia seguinte e me sinto frustrado por não ter conseguido mudar isso. Durante o jogo, respiro outras vezes e consigo ir diminuindo minha agonia. Decidido aproveitar este último dia com meu irmão. Acho que vou chamá-lo para fazermos algo legal esta noite. O time dele vai ganhar, então ficará feliz. É assim que quero me lembrar dele. Foi por isso que escolhi voltar um dia antes, para poder ao menos me despedir.