Ciência

Qual a relação entre genética e Covid-19?

A genética influencia se você pega Covid-19 mais forte ou mais fraca? Pesquisadores tentam descobrir a influência do DNA.

21 de julho de 2021

Desde o início do ano passado, um dos temas com maior número de produções científicas tem sido o novo SARS-CoV-2. Muitas pesquisas foram realizadas em tempo recorde para tentar entender a biologia da doença. A verdade, no entanto, é que o volume de artigos alegando descobertas inovadoras que foram considerados controversos e desacreditados posteriormente — ou, pelo contrário, abriram caminho para novos estudos — só mostra que ainda é cedo para termos respostas definitivas sobre a Covid-19.

Até agora, já sabemos que algumas pessoas têm maior risco de apresentar formas graves da doença, como idosos e aqueles que possuem comorbidades. O que chama a atenção de médicos e pesquisadores, no entanto, são os “pontos fora da curva”. Exemplo disso é o caso de uma senhora de 104 anos, que mora com filha e neta que testaram positivo para Covid-19, mas que não apresentou sintomas da doença. O mais surpreendente é que, no passado, ela já havia sido submetida a cirurgias no esôfago, bexiga e para a retirada de um rim, além de passar por sessões de hemodiálise.

O caso foi analisado por um grupo de pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL), vinculado ao Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). A equipe também estudou infecções por Covid-19 em gêmeos e em casais que apresentavam diferenças na manifestação da doença. O objetivo era investigar os fatores genéticos que poderiam influenciar a tendência de contrair o vírus ou de apresentar sintomas graves, o que também poderia oferecer uma resposta sobre o motivo de tantas pessoas de uma mesma família morrerem.

O grande obstáculo é que, assim como em outras doenças, a genética ainda não é capaz de fornecer explicações tão simples e diretas, já que nem tudo depende exclusivamente do DNA. Ainda assim, os pesquisadores trabalham com algumas hipóteses e continuam revelando descobertas valiosas que podem ajudar a entender melhor o vírus e, quem sabe, nos ajudar com doenças futuras.

O que diz o DNA

Assim como os humanos, o vírus SARS-CoV-2 também possui material genético. Portanto, estudar o DNA tanto do agente infeccioso como do hospedeiro são importantes. Por meio do sequenciamento do vírus, por exemplo, é possível identificar mutações e desenvolver técnicas de prevenção e tratamento. Já no caso do hospedeiro, as conclusões devem ser mais cuidadosas. Afinal, o nosso DNA é complexo, e a forma como algumas doenças e condições se manifestam depende da interação entre uma série de outros fatores.

Embora o quanto e como a genética podem influenciar nossa resposta à Covid-19 ainda permaneçam questões em aberto, não há dúvidas que que essa influência existe, explica a professora Iscia Lopes Cendes, chefe do Laboratório de Genética Molecular da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp):

“Nós já temos experiências em outras doenças infecciosas, inclusive virais, mostrando que existem fatores genéticos que influenciam resposta e gravidade. Então, a discussão não é sobre a possibilidade de existir uma influência genética — isso certamente existe. A questão principal é identificar quais sequências seriam importantes para a resposta ou suscetibilidade ao vírus.”

Silvano Wendel, diretor médico do Banco de Sangue do Hospital Sirio-Libanês, aponta que essa relação entre genética e doenças infecciosas faz parte, inclusive, do próprio conceito de seleção natural descrito por Charles Darwin. “A própria história da humanidade, assim como de vários animais, mostra que um dos fatores de sobrevivência a um novo agente infeccioso é exatamente a maior ou menor suscetibilidade a esse agente.”

Ele ainda lembra que quando o HIV foi descoberto, já se discutia a possibilidade de algumas pessoas serem resistentes ao vírus – o que foi comprovado mais tarde. No caso da Covid-19, Wendel ressalta que a doença está sendo estudada há menos de dois anos, e o que se sabe hoje pode mudar amanhã. “É muito cedo para falarmos se existem ou não, definitivamente, genes que favoreçam a infecção pela Covid. O que temos, por enquanto, são dados de estudos internacionais mostrando que alguns tipos sangúineos têm maior ou menor resistência à infecção.”

Um desses estudos, publicado na revista The New England Journal of Medicine, analisou pacientes de Covid-19 da Espanha e da Itália. O resultado observado foi que o grupo sanguíneo A parece estar associado a um risco maior de infecção pelo coronavírus, enquanto que o grupo O estaria associado a um risco menor. Wendel afirma, no entanto, que não acredita que “as defesas ou o código genético do indivíduo isoladamente sejam suficientes para proteger uma população”, já que a Covid-19 não é uma doença que depende exclusivamente do que está em nosso DNA. “Provavelmente, aqueles indivíduos mais suscetíveis ou mais resistentes à Covid-19 possuem um encontro de múltiplos fatores genéticos e ambientais.”

Com base no conhecimento acumulado de doenças infecciosas anteriores, a professora Iscia Lopes Cendes, da Unicamp, diz que a hipótese é que a contribuição genética seja a mesma ou menor que os fatores ambientais – embora a proporção exata ainda seja desconhecida.

“Certamente, não teremos um teste genético capaz de identificar um único gene que vai fornecer todas as respostas e ajudar a prever quem vai ter a doença ou não. […] O mais provável é que a gente encontre vários genes, várias mutações, e cada um deles terá uma contribuição muito pequena para a suscetibilidade genética, que não será maior que os fatores ambientais.”

Os fatores externos podem variar muito, e incluir cada um deles na equação torna a tarefa de calcular a suscetibilidade à doença ainda mais complexa. Um dos pontos a serem considerados, por exemplo, seria o quanto uma pessoa está exposta ao vírus – um funcionário que tem o privilégio de trabalhar de casa corre um risco muito menor do que quem precisa se deslocar até o trabalho utilizando transporte público diariamente. A própria temperatura e umidade do ar podem facilitar a transmissão do vírus por pequenas partículas de um indivíduo para outro. Além disso, as novas variantes do SARS-CoV-2 também já mostraram que exercem uma influência na transmissibilidade.

Desde o início da pandemia, outra discussão que se tornou frequente entre pesquisadores é a possibilidade de a Covid-19 ser, na verdade, uma doença vascular em vez de respiratória. Apesar de não haver um consenso, os casos de trombose relatados até agora têm levantado preocupações sobre o risco que a doença pode representar às pessoas que já possuem algum histórico de tromboses ligado à genética. “As trombofilias — que são as alterações genéticas que aumentam o risco de trombose — mais comuns não estão associadas a um maior risco de infecção pela Covid-19 ou a um quadro grave da doença”, afirma o professor Erich de Paula, coordenador do Hemocentro da Unicamp.

Segundo ele, o mesmo se aplica à sepse, que apresenta alguns aspectos similares à Covid-19. Afinal, ela também é uma doença infecciosa que causa trombose e dano pulmonar. “No caso da sepse, os indivíduos com alteração genética associada ao maior risco de trombose não têm um risco aumentado de complicações. 

Para quem tem algum histórico genético associado ao risco de tromboses e está com receio de tomar a vacina da AstraZeneca, De Paula explica que não há motivo para preocupação. De acordo com o hematologista, a trombose induzida pela vacina é um evento muito raro, sendo que os próprios países que suspenderam a sua aplicação rapidamente identificaram o problema. “O mecanismo é muito diferente da trombose do dia a dia ou daquela que ocorre em pacientes com Covid-19. Ele é mais parecido com um tipo de trombose que já conhecemos há mais ou menos 15 anos, que é relacionado a uma droga chamada heparina. Então, não faz sentido uma pessoa com trombofilia ter mais riscos.”

Os estudos feitos até o momento sobre a relação da Covid-19 com os grupos sanguíneos ABO não se referem à gravidade da doença uma vez que uma pessoa é infectada, mas analisam as chances do vírus entrar no organismo de um indivíduo. Se aqueles do grupo A realmente fossem mais suscetíveis à infecção, eles também poderiam ter uma chance maior de apresentar quadros graves considerando a sua tendência maior a desenvolver tromboses. Porém, vale lembrar que as pesquisas ainda não fornecem uma resposta definitiva. Além disso, Wendel ressalta que “a Covid-19 por si só já é uma doença que facilita tromboses” e que “são vários fatores associados ao mesmo tempo” que podem influenciar o desenvolvimento do quadro de um paciente.

Outras doenças em que já foi observada uma influência do grupo sanguíneo incluem: malária, sarampo, hepatite B, cólera, HIV, câncer de estômago e de pâncreas, Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), entre outras. “Todas elas estão associadas a grupos sanguíneos, mas isso não quer dizer que essa associação seja de 100%. Existem outros marcadores genéticos de outros sistemas que também são importantes”, explica Wendel.

Os resultados podem variar inclusive de uma população para outra, com alguns estudos apontando para mutações genéticas identificadas em grupos específicos. Um artigo de coautoria da professora Iscia Lopes Cendes, da Unicamp, descreve exatamente isso – a variabilidade genética em genes relacionados à Covid-19 na população brasileira. Ela conta que, de fato, foram encontradas algumas variações que parecem ser exclusivas dos brasileiros, mas é necessário um olhar cauteloso para essas descobertas.

Primeiramente, vale ressaltar que “variação” não é sinônimo de doença ou qualquer tipo de ameaça à saúde. “O genoma humano é extremamente variável de um indivíduo para outro, então o fato de haver uma variação não significa que a pessoa tem alguma anormalidade, mas que o seu DNA é simplesmente diferente”. Além disso, Cendes diz que essas variantes encontradas na população brasileira são raras. Isso significa que, “do ponto de vista biológico, poderia fazer sentido estudá-las, mas elas não poderiam ser usadas para se fazer uma estimativa de quais indivíduos teriam maior ou menor risco de serem infectados ou manifestarem sintomas graves da Covid”.

Outro ponto importante é que, o fato de alguns desses genes terem sido identificados apenas no estudo feito com brasileiros não significa que eles existem apenas na nossa população. Isso ocorre devido às limitações dos próprios bancos genéticos. Apesar de existirem algumas informações sobre os africanos que foram levados aos Estados Unidos, há poucos estudos sobre os povos da Angola, Moçambique e Guiné que foram trazidos ao Brasil. Isso é significativo, já que a África é o continente que mais apresenta variações genéticas. “As populações mais antigas são encontradas na África, pois foi lá que a espécie humana surgiu, e a variação no genoma humano vai acumulando com o tempo”, explica Cendes.

O mesmo vale para as populações europeias. A maioria das pesquisas são feitas com ingleses, dinamarqueses e povos escandinavos, enquanto que os indivíduos que originaram os brasileiros são principalmente de países como Portugal e Itália, que também não foram muito estudados.

“É possível que as variantes que encontramos aqui no Brasil e que nunca foram relatadas antes não tenham surgido aqui; elas podem estar presentes nas populações ancestrais, mas como elas também não foram estudadas, isso acabou sendo descrito primeiro aqui. Para se ter uma ideia, nós publicamos um artigo sobre genética de populações que mostrou que 15% das variantes encontradas nos brasileiros nunca haviam sido depositadas nos bancos de dados genômicos. 15% não é algo negligenciável; isso é importante.”

Outra peculiaridade do Brasil, aponta Cendes, é que a nossa população é o resultado da mistura dessas ancestralidades. “Quando temos essas populações que se misturam, a maneira como as variações no genoma humano se comportam em termos de frequência é muito peculiar. É muito diferente se você olhar uma população 100% europeia, por exemplo. Ao analisar essas variantes, é possível ver que as frequências são diferentes, porque esses pedacinhos se misturam de forma aleatória. Em algumas regiões também há uma mistura maior, então pode ser muito diferente da população original.”

Algumas pessoas, como idosos e portadores de comorbidades. têm maior risco de apresentar formas graves da Covid-19. Mas há pontos fora da curva, que chamam a atenção dos pesquisadores e fazem questionar qual a relação da doença com a genética.

Uma senhora de 104 anos vive com filha e neta. Esta senhora já havia sido submetida a cirurgias no esôfago, bexiga e retirada de um rim, além de passar por sessões de hemodiálise. Sua filha e neta testaram positivo para a Covid-19, mas ela supreendentemente não apresentou sintoma algum da doença. Influência genética? É o que pesquisadores tentam responder.

O caso foi analisado por um grupo de pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL), vinculado ao Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

A equipe também estudou infecções por Covid-19 em gêmeos e em casais que apresentavam diferenças na manifestação da doença. O objetivo era investigar os fatores genéticos que poderiam influenciar a tendência de contrair o vírus ou de apresentar sintomas graves, o que também poderia oferecer uma resposta sobre o motivo de tantas pessoas de uma mesma família morrerem.

O grande obstáculo é que, assim como em outras doenças, a genética ainda não é capaz de fornecer explicações simples e diretas, já que nem tudo depende exclusivamente do DNA. Ainda assim, pesquisadores trabalham com algumas hipóteses e continuam revelando descobertas valiosas que podem ajudar a entender melhor o vírus e, quem sabe, nos ajudar com doenças futuras.

Como isolar o fator genético na Covid-19?

Assim como os humanos, o vírus SARS-CoV-2 também possui material genético. Portanto, estudar o DNA tanto do agente infeccioso como do hospedeiro é importante. Por meio do sequenciamento do vírus, por exemplo, é possível identificar mutações e desenvolver técnicas de prevenção e tratamento. Já no caso do hospedeiro, as conclusões devem ser mais cuidadosas – afinal, nosso DNA é complexo, e a forma como algumas doenças e condições se manifestam depende da interação entre uma série de outros fatores.

“A discussão não é sobre a possibilidade de existir uma influência genética — isso certamente existe. A questão principal é identificar quais sequências seriam importantes para a resposta ou suscetibilidade ao vírus”, explica Iscia Lopes Cendes, chefe do Laboratório de Genética Molecular da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp).

Silvano Wendel, diretor médico do Banco de Sangue do Hospital Sírio-libanês, aponta que essa relação entre genética e doenças infecciosas faz parte, inclusive, do próprio conceito de seleção natural descrito por Charles Darwin. “Um dos fatores de sobrevivência a um novo agente infeccioso é exatamente a maior ou menor suscetibilidade a esse agente.”

Quando o HIV foi descoberto, já se discutia a possibilidade de algumas pessoas serem resistentes ao vírus – o que foi comprovado mais tarde.

No caso da Covid-19, Wendel ressalta que a doença está sendo estudada há menos de dois anos, e o que se sabe hoje pode mudar amanhã. “O que temos, por enquanto, são dados de estudos internacionais mostrando que alguns tipos sanguíneos têm maior ou menor resistência à infecção.”

Um estudo, publicado na revista The New England Journal of Medicine, analisou pacientes de Covid-19 da Espanha e da Itália. O resultado observado foi que o grupo sanguíneo A parece estar associado a um risco maior de infecção pelo coronavírus, enquanto que o grupo O estaria associado a um risco menor.

Wendel afirma, no entanto, que não acredita que “as defesas ou o código genético do indivíduo isoladamente sejam suficientes para proteger uma população”, já que a Covid-19 não é uma doença que depende exclusivamente do que está em nosso DNA.

Cendes, da Unicamp, diz que a hipótese é que a contribuição genética seja a mesma ou menor que os fatores ambientais – embora a proporção exata ainda seja desconhecida. “O mais provável é que a gente encontre vários genes, várias mutações, e cada um deles terá uma contribuição muito pequena para a suscetibilidade genética, que não será maior que os fatores ambientais.”

Os fatores ambientais podem variar muito. Inclui-los na equação torna a tarefa de calcular a suscetibilidade à doença ainda mais complexa.

Um dos pontos a serem considerados, por exemplo, seria o quanto uma pessoa está exposta ao vírus – um funcionário que tem o privilégio de trabalhar de casa corre um risco muito menor do que quem precisa se deslocar até o trabalho utilizando transporte público diariamente. A própria temperatura e umidade do ar podem facilitar a transmissão do vírus por pequenas partículas de um indivíduo para outro. Além disso, as novas variantes do SARS-CoV-2 também já mostraram que exercem uma influência na transmissibilidade.

A geografia da Covid-19

O quanto a Covid-19 afeta alguém varia de acordo até com a geografia onde se vive. Um artigo de coautoria de Cendes, publicado na Nature, descreve exatamente isso – a variabilidade genética em genes relacionados à Covid-19 na população brasileira. Ela conta que, de fato, foram encontradas algumas variações que parecem ser exclusivas dos brasileiros, mas é necessário um olhar cauteloso para essas descobertas.

Primeiramente, vale ressaltar que “variação” não é sinônimo de doença ou qualquer tipo de ameaça à saúde. “O genoma humano é extremamente variável de um indivíduo para outro, então o fato de haver uma variação não significa que a pessoa tem alguma anormalidade, mas que o seu DNA é simplesmente diferente”. Além disso, Cendes diz que essas variantes encontradas na população brasileira são raras. Isso significa que, “do ponto de vista biológico, poderia fazer sentido estudá-las, mas elas não poderiam ser usadas para se fazer uma estimativa de quais indivíduos teriam maior ou menor risco de serem infectados ou manifestarem sintomas graves da Covid”.

Outro ponto importante é que, o fato de alguns desses genes terem sido identificados apenas no estudo feito com brasileiros não significa que eles existem apenas na nossa população. Isso ocorre devido às limitações dos próprios bancos genéticos. Apesar de existirem algumas informações sobre os africanos que foram levados aos Estados Unidos, há poucos estudos sobre os povos da Angola, Moçambique e Guiné que foram trazidos ao Brasil. Isso é significativo, já que a África é o continente que mais apresenta variações genéticas. “As populações mais antigas são encontradas na África, pois foi lá que a espécie humana surgiu, e a variação no genoma humano vai acumulando com o tempo”, explica Cendes.

O mesmo vale para as populações europeias. A maioria das pesquisas são feitas com ingleses, dinamarqueses e povos escandinavos, enquanto que os indivíduos que originaram os brasileiros são principalmente de países como Portugal e Itália, que também não foram muito estudados.

“É possível que as variantes que encontramos aqui no Brasil e que nunca foram relatadas antes não tenham surgido aqui; elas podem estar presentes nas populações ancestrais, mas como elas também não foram estudadas, isso acabou sendo descrito primeiro aqui. Para se ter uma ideia, nós publicamos um artigo sobre genética de populações que mostrou que 15% das variantes encontradas nos brasileiros nunca haviam sido depositadas nos bancos de dados genômicos. 15% não é algo negligenciável; isso é importante.”

Outra peculiaridade do Brasil, aponta Cendes, é que a nossa população é o resultado da mistura dessas ancestralidades. “Quando temos essas populações que se misturam, a maneira como as variações no genoma humano se comportam, em termos de frequência, é muito peculiar. É muito diferente se você olhar uma população 100% europeia, por exemplo. Ao analisar essas variantes, é possível ver que as frequências são diferentes, porque esses pedacinhos se misturam de forma aleatória. Em algumas regiões também há uma mistura maior, então pode ser muito diferente da população original.”

Como descobertas genéticas podem ajudar no combate à Covid-19

Do ponto de vista da genética do hospedeiro do vírus (o ser humano), os benefícios dessa área de pesquisa ainda permanecem hipotéticos. Caso os fatores genéticos ligados à Covid-19 fossem identificados e a sua contribuição fosse acima de 50%, uma ideia seria realizar testes para identificar indivíduos que estariam em maior risco. “Isso seria muito interessante porque, por exemplo, nessa hora da vacinação, você iria querer vacinar aqueles indivíduos que, pelo teste, teriam maior probabilidade de se infectar ou de ter doença grave. Mas, infelizmente, nós ainda não chegamos lá para o SARS-CoV-2”, afirma Cendes.

Realizar testes com toda a população também não seria algo viável. Por enquanto, a melhor solução é focar nos fatores de risco já conhecidos, como diabetes, hipertensão e doenças metabólicas. Ao identificar a predisposição de uma pessoa a desenvolver tais condições, seria possível apostar em medidas preventivas, segundo Cendes:

“Se nós pudéssemos, através dessas informações, identificar indivíduos que apresentam maior risco para obesidade, por exemplo, poderíamos desenvolver programas de prevenção mais efetivos, mais diretos, focados naquele grupo específico. Por meio de uma dieta mais saudável e um maior incentivo a exercício físico, seria possível evitar que essas pessoas desenvolvessem diabetes, hipertensão, infarto, derrame, demência, câncer, etc. Assim, elas teriam um risco diminuído para Covid-19 também. Ou seja, a genética pode atuar na estratificação de riscos e é capaz de oferecer uma medicina preventiva muito mais eficiente.”

Cendes ressalta que para essas aplicações se tornarem realidade, seria importante aprimorar os bancos de dados disponíveis. Assim, os estudos seriam realizados de forma mais rápida e com maior precisão. Porém “não basta apenas fazer o estudo”, defende ela. “É preciso depositar os dados nos bancos públicos para realizarmos uma análise mais rápida quando necessário”, já que “isso pode significar um tempo importante durante uma epidemia”. Ainda de acordo com a professora da Unicamp, a falta de dados de outras regiões além do Sudeste – e fora de São Paulo, principalmente – representa uma limitação para o avanço nas áreas de medicina genômica e de precisão.  

Para o professor Erich de Paula, coordenador do Hemocentro da Unicamp, o conhecimento relacionado à genética do hospedeiro também poderia contribuir para o tratamento de pacientes já infectados pela Covid-19. Uma das possibilidades seria descobrir, por meio de testes genéticos, quais indivíduos teriam uma coagulação mais ativada e que, portanto, responderiam melhor a um tratamento anticoagulante em relação a outras pessoas.

A segunda aplicação possível seria identificar as pessoas com risco maior de apresentar quadros graves da doença, explica De Paula. “Por exemplo, o uso de corticoide é bem consolidado na Covid-19, mas há uma discussão sobre em que momento começar o tratamento; nós esperamos o paciente dar algum sinal de gravidade. Então, se fizéssemos uma triagem de quem teria um quadro mais grave, isso poderia ser útil também. […] Saber fatores prognósticos pode ajudar na decisão terapêutica, e isso pode ser importante principalmente ao considerarmos que alguns medicamentos são mais caros”.

Apesar da importância acadêmica de se estudar a relação entre a genética e a Covid-19, Silvano Wendel, do Sírio-Libanês, afirma que “isso não muda a maneira de lidarmos com a pandemia”. Afinal, o que é feito em laboratório, sob condições ideais, é muito diferente do que ocorre na vida real. Em meio a uma crise sanitária como a que estamos vivendo, “é preciso ser rápido e tomar decisões baseadas em fatos de alta evidência científica e que sejam plausíveis”, aponta Wendel. Ele defende que a melhor forma de combatermos o vírus é adotando as medidas que já têm mostrado resultados quando aplicadas de forma adequada:

“Nós vamos controlar a Covid-19 por dois mecanismos importantíssimos: vacinação e distanciamento físico – com uso de máscaras e evitando aglomerações. Isso é muito mais importante do que você começar a dar atenção para uma determinada população com grupo sanguíneo A, B ou C. Primeiro que para se ter acesso a essa população, seria necessário realizar exames com todos os indivíduos. Só isso já é um fator a mais importantíssimo de custo operacional. Então, faz muito mais sentido investir na vacinação da população de uma maneira geral do que ficar escolhendo se eu vou vacinar alguém do grupo A antes do grupo O ou vice-versa. Do ponto de vista prático, isso tem pouca importância.”