Enquanto alguns assistem TV para fugir dos problemas do mundo real, há quem assista para se afundar no absurdo da existência. E é aí, que no contexto em que vivemos, que muita gente corre para assistir filmes de pandemia — tema que sempre foi prato cheio para Hollywood.
E temos desde as representações mais absurdas de pandemias, como o clássico apocalipse zumbi, até aquelas que são tão verossímeis que até assustam, como o filme Contágio, que foi lançado há dez anos, mas ganhou popularidade em 2020.
Além de toda a ciência por trás desse tipo de ficção, os filmes sobre pandemia também falam muito sobre o aspecto humano. Mas até que ponto eles funcionam realmente como um espelho da nossa realidade?
Vittorio Talone, pós-doutorando em Sociologia e Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Projeto Respiro – Projeto de investigação e apoio aos trabalhadores da saúde na Pandemia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), afirma que existem duas semelhanças gerais com a nossa realidade que são comuns às narrativas de obras de ficção voltadas à pandemia.
A primeira delas seria o surgimento de “algo estranho”, como um vírus, bactéria ou qualquer elemento desconhecido, sobre o qual não temos controle, e que pode ser precedido por alertas ignorados pelos poderes responsáveis pela saúde e segurança geral. Se isso parece familiar, é porque foi exatamente o que vivenciamos no início da pandemia. Antes mesmo de ser caracterizada como Covid-19, as notícias sobre um “novo coronavírus” na China falavam sobre uma misteriosa doença, sem uma origem conhecida, e que afetava as pessoas de maneiras distintas. Enquanto surgiam acusações de o governo chinês tentar esconder o que estava acontecendo no país, o vírus já se espalhava pelo mundo, e os líderes mundiais não agiram rápido o suficiente para conter o que viria a ser a pandemia atual.
A segunda semelhança apontada por Talone é “uma escalada de efeitos imediatos na forma como levamos nossa vida cotidianamente até a um ponto de ruptura radical com a vida como estamos acostumados”. Novamente, há um paralelo claro com a atual pandemia de Covid-19. Observamos a mobilização inicial dos órgãos de saúde orientando as pessoas a usarem máscaras e lavarem as mãos, passando pela suspensão de algumas atividades, fechamento de fronteiras, a implementação de novas leis até o momento em que percebemos que essas medidas não seriam temporárias. Os debates não eram mais sobre a vida pós-pandemia, mas como seria o “novo normal”.
Tara Smith, epidemiologista e professora de Saúde Pública na Kent State University, diz que a principal semelhança com a realidade que vemos na ficção são as disputas internas. “Há sempre grupos que discordam entre si.” Fã de cultura pop, Smith já escreveu até um artigo científico, publicado na British Medical Journal, sobre um possível apocalipse zumbi. A brincadeira faz parte de uma tradição de fim de ano da revista acadêmica. “Infecções de zumbis: epidemiologia, tratamento e prevenção” tem tudo para fazer você acreditar que se trata de um artigo verídico, incluindo até mesmo referências e explicações técnicas.
Dentre as diversas séries e filmes sobre pandemias, Smith acredita que Contágio é, de fato, o mais verídico:
Ainda há alguns problemas, mas podemos ver reflexos do que aconteceu com a Covid no filme: uma infecção zoonótica que se originou de um morcego na Ásia e que pode ter tido um hospedeiro intermediário e se espalhado em viagens internacionais; confusão inicial; muita desinformação; dificuldades em determinar quem vai receber a vacina etc.
Após um ano de pandemia, o que não faltam são exemplos de cenas que parecem ter sido tiradas do filme. Para citar algumas que remetem aos eventos mencionados por Smith, tivemos: diversos estudos sobre a doença ter se originado dos morcegos; grupos, e até mesmo líderes mundiais, defendendo medicamentos sem qualquer comprovação científica; pessoas tentando fugir de Paris antes do terceiro lockdown; as discussões no Brasil sobre a compra de vacinas por empresas.
Se você também já reparou que muitos filmes sobre pandemias falam de um vírus ou bactéria proveniente de animais, Smith explica: isso é baseado na própria ciência — cerca de 70% das doenças emergentes são zoonóticas. “Sabemos que há potencialmente centenas de milhares de vírus em diferentes espécies de animais que poderiam migrar para a população humana, então essa ideia é usada em muitas histórias fictícias”. De fato, alguns estudos já alertam, inclusive, sobre como a interferência humana crescente na natureza pode resultar na reincidência de alguns surtos, como a gripe suína, ou ainda no surgimento de novas pandemias.
Mas e em relação ao aspecto humano? Como as obras de ficção conseguem prever com tanta precisão o comportamento das pessoas em crises como essas? Segundo Vittorio Talone, da UFRJ, “nas ficções, há uma espécie de flagrante da fragilidade da ordem social e da empatia/humanidade a níveis pessoais”. Ele ainda cita alguns efeitos que são comumente observados: pessoas em negação podem se tornar agressivas; pessoas em posições de privilégio podem tirar proveito das outras; as instituições desabam; a confiança interpessoal é rompida.
Lembro, ainda lá no início, de casos de patrões obrigando empregadas domésticas a permanecer em suas casas devido ao perigo do contágio com a circulação delas pela cidade, mas isso sob a ameaça de demissão. Ou seja, coloca a permanência no emprego como condição de que ela aceite morar no local do trabalho. Isso é bem problemático. Tivemos também pessoas invadindo hospitais para revelar ‘a farsa’ do coronavírus para, no final das contas, tentar retomar as coisas como antes; pessoas desrespeitando as orientações sanitárias, se aglomerando em casos não necessários, porque não se sentem na obrigação de serem responsáveis pela saúde dos outros etc.
Talvez esses efeitos citados por Talone sejam o que mais aproxima os filmes sobre zumbis da nossa realidade — vemos pessoas desesperadas (quem não lembra das cenas de brigas em supermercados?), conflitos entre diferentes grupos e a dificuldade das instituições controlarem a situação. Ainda assim, é muito fácil distinguir o que não se aplica ao mundo real quando vemos um filme ou lemos um quadrinho sobre um apocalipse zumbi. Porém, em filmes tão verídicos como Contágio, pode ser difícil enxergar o que não funcionaria para a nossa realidade.
Primeiramente, sobre a possibilidade de um dia presenciarmos um evento apocalíptico, a epidemiologista Tara Smith diz que é improvável. “Mesmo os vírus mais mortais, como a raiva ou a ebola são (relativamente) fáceis de serem controladas quando alguns esforços são colocados em prática, e no caso de vírus respiratórios, nós dificilmente vemos algum que tenha uma taxa de mortalidade acima de 90%.”
Outra grande diferença observada por Smith é que as coisas geralmente acontecem de forma muito mais fácil na ficção. Pensando no filme Contágio, a vacina surge quase que de forma milagrosa e até mesmo os jovens são vacinados em questão de dias. Nas histórias fictícias, “vacinas e tratamentos são desenvolvidos rapidamente, os detalhes dos testes são superficiais, não existem ensaios clínicos”, diz ela.
De volta à realidade, apesar do tempo recorde, foi necessário quase um ano para que as vacinas contra Covid-19 chegassem às pessoas. Durante essa jornada, vivemos momentos de constante tensão. Acompanhamos com esperança a evolução dos testes clínicos e nos preocupamos com potenciais efeitos adversos ou problemas nos resultados à medida que eles eram anunciados. Mesmo agora que as doses já estão sendo distribuídas, alguns países como o Brasil enfrentam a falta de imunizantes necessários para toda a população.
Infelizmente, em obras de ficção, as pessoas também costumam ser mais compreensivas e acreditar mais na ciência, afirma Smith. “As coisas tendem a ser mais preto e branco: indivíduos bons e maus, soluções claras, em vez dos tons de cinza que vemos na vida real.”
De fato, se antes a ciência já enfrentava o negacionismo por uma parcela da população, isso parece ter se intensificado com a pandemia. Exemplo disso são os esforços das redes sociais em combater conteúdos enganosos e os movimentos antivacina. Somado a isso, ainda temos as manifestações contra o lockdown e uma série de disputas políticas que ilustram os conflitos que surgem em uma crise sanitária da vida real.
Para o sociólogo Vittorio Talone, a grande diferença com a realidade da pandemia é que “os autores de ficção científica, suspenses e/ou distopias levam esses cenários ao extremo e acabam pensando sobre as possíveis reações humanas e explorando as fraquezas das ‘bases morais/sociais’ das diferentes sociedades. Então, acho que projetam uma ‘perda de controle universal’ que me parece não ter tomado forma (ainda)”.
Apesar das semelhanças com a realidade atraírem nossa atenção para esse tipo de entretenimento, as diferenças reforçam que o propósito delas é exatamente o que o nome já diz: entreter. Elas não têm nenhum caráter premonitório, mas podem levantar algumas questões importantes para anam com a realidade brasileira, principalmente em meio à pandemia de Covid-19. sociedade.
Se a ficção não é capaz de fornecer respostas sobre quando e como exatamente será o fim da pandemia e ainda pode nos deixar mais ansiosos ao vermos cenários tão extremos, por que consumimos esse tipo de entretenimento? Tara Smith acredita que essas obras nos atraem exatamente por se limitarem ao campo da possibilidade.
Isso oferece aos indivíduos a liberdade de investigar alguns desses cenários sem realmente passarem pela experiência Também dá às pessoas uma chance de considerarem seus planos. Max Brooks comentou uma vez que todo mundo com quem ele conversou tinha um plano para um apocalipse zumbi, mas poucos tinham realmente um plano para uma pandemia. Nós gostamos do escapismo.
Por outro lado, a forma como a narrativa é construída pode transmitir mensagens que, em nível maior ou menor, são capazes de influenciar a percepção das pessoas. “Quando nos filmes personagens não brancos são desumanizados, tornados vetores de doenças, sendo ‘descartáveis’ e secundários etc., isso pode causar efeitos no modo como se enxerga tais populações”, explica Talone.
No entanto, ele acha difícil colocar a culpa exclusivamente nos filmes e lembra da discussão que surgiu no final dos anos 1990 sobre a influência de videogames violentos no comportamento das pessoas. Segundo Talone, os impactos negativos da ficção (no caso, a violência) “vão depender muito mais das características gerais, sociais e históricas de cada sociedade, e como são as interrelações e a possibilidade de saúde mental de seus habitantes”.
Atualmente, em diferentes locais ao redor do mundo, mas principalmente nos Estados Unidos, tem surgido uma onda de ataques contra asiáticos. De acordo com o Center for the Study of Hate and Extremism, os crimes de ódio contra essa população aumentou 150% nos EUA durante a pandemia. Embora seja difícil analisar o quanto a ficção pode ter exercido um papel nesses números, Talone ressalta que ela também representa uma oportunidade para trazer à tona essas questões.
Acho que eles [livros, seriados e filmes de ficção] trazem para o espectador ou para o leitor o exercício de ver tomarem forma alguns distúrbios, problemas ou questões sensíveis, projetando quais seriam nossas reações nos cenários criados ou ‘exagerados’ E pode nem ser a intenção do escritor, diretor, autor, de tocar em um ponto delicado da sociabilidade moderna, das relações entre classes, seja lá o que for. No entanto, nos faz refletir sobre certos caminhos bizarros (no presente) que podem se concretizar ou trazem problemas correntes que costumamos deixar quietos.