Ciência

Crianças: as vítimas invisíveis da pandemia

21 de julho de 2021

Apesar de ocorrer com uma frequência menor em relação a outras faixas etárias, a Covid-19 também atinge crianças. De acordo com um levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU) do ano passado, o Brasil lidera o ranking mundial de morte por coronavírus de pessoas com menos de 20 anos de idade. No caso de bebês de até um ano, já foram registradas 1,3 mil vítimas. 

“É muito triste a gente ter enxergado desde o início da pandemia a criança somente como vetor, como aquela pessoa que carrega o vírus de maneira silenciosa”, diz Pedro Hartung, coordenador jurídico do Instituto Alana.

Mesmo quando as crianças não são afetadas diretamente pelo coronavírus, a sua saúde pode ser prejudicada devido a outros fatores decorrentes da pandemia. “A crise no sistema de saúde acaba impactando também as crianças, por exemplo, com a interrupção do calendário de vacinação de outras doenças”, diz Hartung. Ele lembra que no final do ano passado, quatro  estados brasileiros – Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Amapá – tiveram surtos de sarampo.

Além da saúde física, um dos grandes impactos da pandemia é na saúde mental das pessoas, e isso inclui todas as faixas etárias. Quando há a perda de alguém próximo, as crianças também passam por um sofrimento que soma-se a outros danos psicológicos ocasionados pela diminuição de brincadeiras e de espaços de interação. “Uma das preocupações é a exposição constante a um grupo só de adultos dentro de uma família. Isso pode acelerar o processo de adultização das crianças, já que elas não estão mais em contato com os seus pares e isso pode afetar o seu desenvolvimento psicossocial”, afirma Marta Volpi, assessora de políticas públicas da Fundação Abrinq.

Um desses espaços de interação essenciais à infância é a escola. Com as aulas e atividades limitadas ao ambiente online, a educação passou a ser mais um dos direitos violados durante a pandemia. Isso não apenas tornou ainda mais evidente, como também acentuou as desigualdades do país, com reflexos a longo prazo, como aponta Hartung:

Nós estamos vivendo no país um apagão educacional muito sério. Primeiro porque muita gente não tem condições de ter aula em casa. Além disso, a interrupção dessas aulas leva a uma redução significativa do aprendizado de alunos, desistência, falta de engajamento e, portanto, ampliação das desigualdades. Isso mostra que essa geração de crianças que estão na idade escolar tiveram o seu direito à educação impactados gravemente, não só pela pandemia em si, mas pela falta de uma gestão adequada da pandemia.

A suspensão das aulas online, assim como de outras atividades, fez com que crianças e adultos passassem mais tempo confinados dentro de casa — o que levanta mais uma preocupação: o Brasil é um dos países com maiores índices de violência contra a criança dentro da própria família – segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), mais de 100 mil pessoas com menos de 19 anos morreram no país vítimas de agressões entre 2010 e 2020, sendo que um relatório de 2019 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos apontou que 52% dos casos ocorrem dentro da casa da vítima.

Diante dessa realidade, Maria Júlia Kovács, professora sênior do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e membro-fundadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do IP-USP, diz que é preciso considerar que cada criança está sendo afetada de forma diferente pela pandemia. “Não podemos fazer uma generalização. As crianças estão sendo muito afetadas, sim, mas cada uma tem a sua história, tem a sua vida anterior a essa situação. Se elas tiveram uma família harmoniosa, se tiveram boas experiências, é diferente de crianças que já vieram de lares desfeitos ou com outros problemas. Depende também de que perdas elas tiveram e de como elas estão sendo acolhidas agora.”

Mas há um número ainda maior de crianças perdendo a estrutura familiar, uma vez que seus pais estão morrendo por Covid-19.

Os órfãos da pandemia

Um estudo publicado em abril na revista JAMA Pediatrics estimou que cerca de 40 mil crianças nos Estados Unidos perderam pelo menos um dos pais para a Covid-19. No Brasil, ainda não há dados sobre o número de órfãos da pandemia — e isso em si já representa um desafio para a criação de políticas públicas que possam oferecer a assistência necessária a essa população. 

Por enquanto, o que temos de mais significativo é um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre como a morte de idosos pode afetar a renda de uma família. Segundo o estudo, em cerca de 21,2% dos domicílios brasileiros, os idosos eram responsáveis por no mínimo 50% da renda. Se os idosos morressem, afetariam o rendimento de mais 12,1 milhões de pessoas, sendo 2,2 milhões menores de 15 anos.

Considerando que, até agosto de 2020, 74,7% das mortes registradas por Covid-19 eram de pessoas com 60 anos ou mais, estima-se que muitas famílias foram impactadas por essa queda acentuada do rendimento médio. 

No entanto, o aspecto financeiro é apenas um dos fatores que prejudicam diretamente as crianças durante a pandemia. Para quem perdeu um dos pais, ou ambos, os desafios vão desde encontrar alguém que possa cuidar desses órfãos a garantir recursos e apoio psicológico para que esses indivíduos não sejam privados dos seus direitos e possam se desenvolver da melhor forma possível.

Para quem perdeu um dos pais, ou ambos, o luto soma-se a todos esses fatores já mencionados e que podem, inclusive, se tornar um problema ainda mais acentuado caso a criança não seja acolhida de forma adequada. 

Marta Volpi, do Instituto Abrinq, conta que são raros os casos em que os órfãos não têm nenhum parente que possa se tornar seu responsável legal. Quando o jovem fica totalmente desprovido de família, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já estabelece um procedimento cuidadoso, que Volpi ressalta que deve ser mantido com a pandemia. “O trabalho de adoção deve ter o mesmo cuidado e atenção para esses casos de orfandade em razão da Covid-19. É preciso atuar sempre com foco no melhor interesse da criança. Ela precisa ir para uma família que de fato a acolha como filho, e a família habilitada para adotá-la também precisa ter todo um preparo que os programas de adoção normalmente já fazem”. 

Uma das preocupações, no entanto, é que os novos órfãos da pandemia que forem encaminhados para a adoção vão enfrentar os mesmos obstáculos que as crianças que já aguardam o acolhimento por uma família antes mesmo da Covid-19. 

Embora existam cinco vezes mais adultos interessados em adotar do que crianças e adolescentes disponíveis (40 mil contra 8 mil), muitas crianças são deixadas de lado por conta da sua cor, idade ou por terem irmãos.

Com o crescente número de órfãos devido à Covid-19, o Senado está analisando uma proposta para agilizar os processos de adoção. Apesar das boas intenções, como aponta Volpi, medidas como essa também geram o receio de um aumento nas devoluções de crianças:

É por isso que a gente defende muito que essas famílias que têm interesse em adotar sejam muito bem trabalhadas. Agilizar demais o processo e colocar essas crianças numa situação de risco de devolução, é muito temerário. Precisa ser um processo, de fato, muito cuidadoso.

A importância de oferecer apoio

A falta de dados oficiais representa o primeiro desafio para garantir o apoio necessário para crianças e adolescentes que ficaram órfãos na pandemia. Afinal, sem esses números, não é possível avaliar se dispomos de recursos necessários para acolher todos e quais políticas públicas deveriam ser implementadas. Deixar esses jovens desamparados, no entanto, pode resultar em uma série de consequências tanto para o próprio indivíduo quanto para a sociedade.

“Algum apoio tem que ser dado. Caso contrário, elas vão ficar abandonadas, vão ficar na rua. Se forem mais velhas, talvez possam entrar para algumas ações delinquenciais porque elas precisam se alimentar, precisam de cuidado. Quando temos uma crise como essa que está acontecendo, previsões têm que ser feitas para oferecer apoio, seja em relação às questões sociais, educacionais ou psicológicas”, afirma a professora da USP Maria Júlia Kovács.

A longo prazo, a negligência com órfãos pode inclusive ameaçar algumas conquistas do país, alerta Marta Volpi, da Fundação Abrinq:

Se não tivermos um cuidado especial com esses jovens que já estão em vulnerabilidade, e ficaram mais vulneráveis ainda em razão da pandemia, teremos um agravamento de uma série de coisas que a gente já vinha apresentando melhora, como desnutrição e o próprio rendimento escolar.

A infância é o período mais importante para o desenvolvimento humano, lembra Pedro Hartung, do Instituto Alana. Por esse motivo, os impactos negativos no presente podem repercutir em toda a vida de um indivíduo e, se considerarmos que a pandemia pode gerar um número elevado de jovens em situação de vulnerabilidade, as consequências podem ser significativas para toda a sociedade também. Hartung aponta que oferecer assistência às crianças traz benefícios inclusive para a economia do país:

Se a gente entender que cuidando da criança eu cuido de todos nós como sociedade, a gente vai dar um salto de desenvolvimento social e econômico significativo. E quem diz isso é o Nobel de Economia James Heckman, que disse que a cada US$ 1 investido na infância, eu tenho um retorno de US$ 8 a US$ 10 na economia do país.

Como oferecer apoio

Kovács lembra: Esse certamente é um trabalho que vai envolver vários profissionais de várias esferas e de várias especialidades para poder cuidar dessa infância e adolescência tão maltratada pela pandemia”. O projeto de lei 887/2021 é uma das primeiras medidas legislativas a tentar oferecer algum apoio a esses indivíduos. Ele propõe que menores de idade que perderam o pai ou a mãe devido à Covid-19 recebam uma pensão de R$1.100  até completarem 18 anos. Por enquanto, o projeto aguarda votação do Senado.

Kovács aponta que essa ajuda econômica é, sem dúvida, importante, mas “não supre tudo o que esses menores precisam do ponto de vista psicológico, educacional e social”. Ainda, segundo ela, a situação requer um planejamento que envolveria não apenas um, mas vários ministérios. “A questão financeira é talvez o primeiro passo dessa história; nós temos que considerar vários outros pontos que são importantes.”

Marta Volpi, do Instituto Abrinq, acredita que o primeiro passo seria resolver o problema da falta de dados para que os debates sobre políticas públicas sejam mais concretos e ajudem a eleger prioridades. “Se não temos dados, as discussões são feitas com base em hipóteses. E aí fica difícil falar se o que está sendo pensado hoje em termos de atenção a essas crianças é suficiente ou não.” Sobre a pensão mensal prevista no PL 887/2021, Volpi concorda que é uma medida necessária, mas que olha apenas para uma parte dos desafios enfrentados por esses órfãos:

Mudou a história de vida dessas crianças de uma hora para outra; mudou a composição familiar para o parente também, então essa atenção é fundamental. É preciso ainda se trabalhar o luto pela perda com essa nova configuração familiar. São várias as ações necessárias — a pensão é uma delas e as políticas de saúde são outras.

Por outro lado, algumas crianças podem ter sido acolhidas temporariamente devido à situação de vulnerabilidade da família, e não por ter perdido um dos pais. Segundo Volpi, seria preciso entender quantas pessoas ficaram sem renda, ou ainda sem moradia, para avaliar quais outros programas seriam necessários além do auxílio emergencial. “São coisas em cadeia, você vai lançando as pessoas na vulnerabilidade e aí as crianças sofrem obviamente. O Brasil fala muito da necessidade de cuidar de quem cuida. Você consegue melhorar as condições de vida de crianças e adolescentes cuidando das famílias em que elas estão inseridas.”

Para evitar todas as dificuldades relacionadas à adoção, o ECA defende que seja oferecido um apoio para que a própria família de origem tenha condições de cuidar da criança. “A adoção precisa ser, de fato, uma medida excepcional e a última alternativa”, diz Volpi. Pedro Hartung, do Instituto Alana, também ressalta que a pandemia pode aumentar os casos em que as crianças são separadas de suas famílias por fragilidades sociais, e não por orfandade:

Existe um processo de “criminalização da pobreza” — que é uma lógica de você apontar que por a família ser pobre ela não tem condições de cuidar dos seus filhos. Isso tem acontecido muito durante a pandemia. As famílias estão muito fragilizadas, com dificuldades econômicas devido à falta de trabalho.

O luto e a saúde mental das crianças

Além do apoio financeiro, um dos aspectos mais importantes a serem trabalhados é a saúde mental das crianças – e isso inclui aquelas que não perderam um dos pais necessariamente, mas que estão lidando com o luto de outras pessoas próximas ou com todos os outros desafios impostos pela pandemia. Nesse caso, a escola pode exercer um papel fundamental de ouvir esses jovens e oferecer a assistência adequada. “Hoje, o trabalho que educadores podem fazer é essencial, porque eles têm mais contato com esses jovens. Eles podem acolher e observar se há crianças que estão em intenso sofrimento para fazer um encaminhamento a serviços especializados”, afirma a professora Maria Júlia Kovács.

Volpi também ressalta a importância da escola em identificar problemas e a necessidade de esses espaços estarem preparados para lidar com determinadas situações. “A escola é o local em que a criança inicia o seu processo de construção de relações, então é onde as coisas geralmente aparecem — tanto em relação a violência doméstica como às questões ligadas ao luto. Não sei se um dia as escolas tiveram esse preparo, mas é que agora haverá provavelmente um número maior de crianças sofrendo em razão do luto. As escolas precisam colocar esse tema no seu repertório.”

Segundo a assessora de políticas públicas da Fundação Abrinq, a ausência de um sistema nacional de educação devidamente regulamentado, como o SUS na área da saúde, prejudicou as discussões sobre como as escolas devem lidar com as questões relacionadas à pandemia.

“Nós temos bons projetos de lei em discussão nas casas legislativas, mas a pandemia chegou antes de termos um sistema regulamentado que poderia dar diretrizes não só sobre essa questão específica do luto, mas orientar como cada localidade deveria retornar às aulas com base nos dados epidemiológicos da região”, afirma Volpi.

E o que nós, como sociedade, podemos fazer? O primeiro passo é enxergar as crianças como pessoas em desenvolvimento, defende Volpi. Isso significa reconhecer que elas também percebem as mudanças ao seu redor, ouvir o que elas têm a dizer e legitimar os seus sentimentos. “Embora isso esteja explícito na Constituição de 1988, assim como no ECA e nas convenções internacionais, acho que ainda temos uma ideia equivocada a respeito das crianças de que elas não percebem ou não entendem o que está acontecendo.” Minimizar ou relevar a dor trazida pelas crianças pode, inclusive, resultar em situações que poderiam ser evitadas, alerta Volpi:

Será que a gente ouve a criança e acredita nela? Crianças que sofrem violência em casa costumam faltar às aulas ou mudar de comportamento. É importante reparar nesses sinais que podem indicar que ela está precisando de um tipo de ajuda diferente. Assim, podemos evitar que se chegue a casos extremos de agressão .

Para Pedro Hartung, do Instituto Alana, elaborar o luto é fundamental, assim como ouvir esses indivíduos em desenvolvimento. Afinal, apesar dessa “ideia de que as crianças não compreendem a realidade em sua amplitude, elas também sofrem”. Ele ainda ressalta que colocar a criança como prioridade é importante inclusive para o desenvolvimento da sociedade como um todo:

Precisamos retomar um projeto de país centrado na criança […] Nós estamos muito embrutecidos como sociedade, como governo; com uma reação muito violenta e esquecendo que a atividade humana essencial e mais importante de qualquer pessoa é a atividade de cuidado. A nossa espécie humana se define pelo cuidado que nós temos um com o outro e o nosso dever é colocar a criança nesse cuidado em primeiro lugar.