Aquele modelo de robô doméstico que você viu sendo anunciado mês passado na televisão, o Superclean+, será usado em alguns dos prédios para o qual sua empresa presta serviço.
Você se espreme entre as fileiras de cadeiras para chegar ao lugar vago mais próximo que visualizou quando entrou no auditório. A reunião está prestes a começar e ninguém sabe por que os três setores foram convocados de uma vez. Cochichos preenchem o lugar enquanto os chefes da empresa começam a ocupar o palco. O contrato está prestes a vencer e uma reunião dessa escala não pode ser um bom sinal. É compreensível que você e os outros estejam preocupados.
O silêncio no auditório preenche o espaço quando o diretor Marques se posiciona diante de todos. Ele começa a falar e sua voz é amplificada de tal forma que a sensação é que ele está em pé ao seu lado. Não há aparelhos visíveis com microfones ou caixas de som.
Pelos próximos minutos ele explica que alguns contratos não serão renovados. O que quer que tenha na acústica do auditório serve para abafar os barulhos de protestos. Incapazes de serem ouvidos, você e os outros são obrigados a apenas ouvir a argumentação. Acontece que aquele modelo de robô doméstico que você viu sendo anunciado mês passado na televisão, o Superclean+, será usado em alguns dos prédios para o qual sua empresa presta serviço.
O Dr. Marques diz lamentar a rescisão, agradece a compreensão de todos e começa a listar os prédios que continuarão com copeiras, garçons e o pessoal da limpeza. O robô opera nesses três serviços e faz o trabalho de quatro pessoas duas vezes mais rápido — você ouviu isso na reportagem. Todo mundo aguarda apreensivo. Uma mulher ao seu lado respira aliviada quando o dela é citado, um homem à sua frente dá um soco no braço da cadeira ao se descobrir sem emprego. Vocês descobrem juntos, na verdade. Ele trabalha no segundo andar do seu prédio.
Sem saber o que pensar, você espera o final da reunião. É o tipo de decisão que vem de cima para baixo, então não há o que fazer a respeito. Se pelo menos todos tivessem sido demitidos, valeria a pena começar a quebrar tudo. Haveria união. Mas quem não foi mandado embora só se preocupa com o ano seguinte, com o fato de que terão como levar comida para casa nos próximos 365 dias. Você não os julga por isso. É 2053, a vida não é fácil para nenhum brasileiro.
É sexta-feira de manhã de um abril que até estava indo bem. Você vai embora da reunião pensando nos seus filhos e no que fará a partir de agora. Júlio ainda não voltou para casa e é muito mais difícil sem ele. Você está velha. Quem vai querer te dar um novo emprego?
A pior parte é que estava tão perto de você se aposentar, só mais dois anos de trabalho e esse acontecimento quase impossível se concretizaria. Para cada geração é mais difícil. Sua avó conseguiu, sua mãe também, mas foi por pouco, você chegou bem perto. Já é de admirar que você tenha trabalhado por tanto tempo com carteira assinada.
Você pega o metrô e vai para o Edifício Severino, precisa buscar suas coisas. Chegando ao prédio, você se surpreende quando vê o robô na copa. Tem um técnico com ele, para quem você dá bom dia. Ele te cumprimenta e está muito animado falando como a máquina é boa enquanto termina as últimas configurações. Você pensa em várias coisas que poderia dizer, mas prefere ir logo para a parte onde ficam os armários dos funcionários. Agora ex-funcionários. Foi a primeira a chegar, pelo visto. O técnico do robô é só um empregado como você, ele não é culpado. Um dia inventarão um robô que cria e configura outros robôs, então o trabalho do técnico também será desnecessário.
Quando termina de pegar suas coisas, o técnico vem até você e começa a falar.
— Está tudo pronto, senhora. Só falta colocar água, café e tudo mais nos compartimentos. Depois é só deixar ele fazer o serviço.
Você tenta explicar que não trabalha mais ali e que não sabe quem ficará responsável por essa função. Mas o técnico termina de falar, se despede e vai embora; ele está com pressa, com certeza tem outros robôs para configurar.
Você volta para a cozinha e olha para a máquina. Ela está ligada e esperando instruções com aqueles olhos luminosos. O robô é patético, parece um aspirador de pó grande demais, com braços articulados e a base mais larga do que o topo do corpo. Aqueles bracinhos mudam de acordo com o que ele precisa fazer. E na barriga tem um buraco de onde saem os copos com as bebidas.
Você dá as costas, mas para antes de sair. Uma ideia repentina martela na sua mente, mas você precisa decidir logo enquanto não tem ninguém por perto.
Lembrando das instruções do técnico, você se aproxima do robô. Aberta um botão no painel e logo em seguida o compartimento das costas dele se abre sozinho. Há vários recipientes com as indicações do que colocar em cada um. Você enche uma garrafa d’água e despeja em um deles, coloca pó de café em outro, achocolatado no terceiro, leite no quarto. Deixa o recipiente do açúcar por último. No armário, você encontra o que precisa. Algo que era mais usado pelos funcionários e não é um ingrediente que combina com café.
Você está nervosa, mas dá um pequeno sorriso quando esvazia o pacote de sal e fecha as costas do robô. A sensação é boa. Por mais ínfima que seja, ainda é uma vingança. No visor do robô, aparece uma indicação de que ele está pronto para preparar as bebidas, basta solicitar. Você pega suas coisas e caminha em direção à porta. Agora sim, você está pronta para ir embora.
* Waldson Souza é escritor. Formado em Letras e mestre em Literatura pela UnB, pesquisa sobre afrofuturismo e literatura brasileira contemporânea.