Há pouco mais de um ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarava pandemia de Covid-19. Atualmente, o mundo todo já contabiliza mais de 121 milhões de casos, com 2,68 milhões de mortes e 68,8 milhões de recuperados. O surgimento das vacinas trouxe um pouco de alívio e esperança, mas ainda estamos longe de poder comemorar. Afinal, até mesmo o termo “recuperados” tem levantado cada vez mais questionamentos à medida que os relatos e estudos vêm mostrando que o vírus não causa estrago apenas durante a fase aguda da doença, como também pode deixar os mais variados tipos de sequelas em suas vítimas.
Dores de cabeça, cansaço, confusão e dificuldade respiração são apenas algumas das sequelas em quem pega Covid-19. O que fazer para tratar os efeitos deletérios depois da infecção? Há algumas pistas, mas sem respostas concretas — já que os estudos sobre o tema ainda são iniciais. Ainda assim, os médicos alertam que as sequelas não devem ser ignoradas.
“Temos mais perguntas do que respostas no momento”, afirma Clarissa Yasuda, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), em entrevista ao Bitniks. Desde o ano passado, ela vem conduzindo um estudo para avaliar como o SAR-CoV-2 afeta especificamente o cérebro de pessoas que foram infectadas.
Yasuda conta que o risco de infecções virais atingirem o cérebro já é algo conhecido; exemplo disso é o zika, que pode causar lesões graves. No caso do SARS-CoV-2, os relatos mais comuns são de acidente vascular cerebral (AVC), convulsões e encefalite durante a fase aguda. Isso, segundo a pesquisadora, não causou grande surpresa, visto que esses tipos de sintomas no período da infecção já fazem parte do histórico de vírus sistêmicos.
“O que não era esperado são essas alterações que persistem meses depois da infecção aguda, mesmo nos casos dos pacientes que nem foram internados. Isso é novo e é isso que estamos tentando estudar. O que é muito característico é que as pessoas não têm um ou dois sintomas, elas tem vários deles; e isso tem atrapalhado a vida delas depois de meses.”
No geral, os sintomas mais comuns observados são fadiga (58%), dor de cabeça (44%), dificuldade de atenção (27%), perda de cabelo (25%) e falta de ar (24%), de acordo com uma análise feita por pesquisadores dos Estados Unidos, México e Suécia.
Flavia Kuhn, médica fisiatra da Rede Lucy Montoro, que é ligada ao Hospital das Clínicas, em São Paulo, diz que ainda é cedo para definir exatamente o que a infecção pela Covid-19 pode causar a longo prazo. No entanto, o instituto já vem recebendo há um tempo pacientes que apresentam sequelas da doença, permitindo algumas observações iniciais:
“Nos pacientes mais graves, que necessitaram de tratamento em UTI e suporte de oxigênio, os sintomas mais frequentes após a alta são a fraqueza muscular e o cansaço, podendo limitar a realização de mínimos esforços como comer e tomar banho. Porém, pacientes que tiveram quadros mais leves relatam sintomas como fadiga e dores musculares persistentes. Além dos sintomas físicos, outros como a alteração de concentração, depressão e ansiedade têm sido frequentes entre aqueles que venceram a doença.”
A pesquisa da Unicamp, conduzida por Yasuda, busca examinar especificamente esses sintomas relacionados ao sistema nervoso. No segundo semestre de 2020, foi divulgado um questionário online que, até o início deste ano, já havia sido respondido por mais de 2 mil pessoas. As perguntas avaliam os sintomas apresentados durante a fase aguda da doença e nos meses seguintes. A coleta de dados ainda não foi finalizada (você pode, inclusive, acessar o formulário aqui caso queira participar do estudo), mas alguns resultados iniciais já foram apresentados no 7º BRAINN Congress em janeiro.
Entre os indivíduos que foram diagnosticados por testes de RT-PCR, que é um dos requisitos para participar do estudo, cerca de 90% não precisaram de tratamento hospitalar, mostrando que as sequelas não se limitam apenas aos pacientes que desenvolveram um quadro grave da doença. Os dados preliminares também mostram quais sintomas se manifestaram dois meses e seis meses após o diagnóstico,. Veja abaixo:
Dois meses:
Fadiga/cansaço (53,5%), cefaleia (40,3%) e alteração de memória (37%).
Seis meses:
Fadiga/cansaço (59,5%), sonolência diurna (36,3%), alterações de memória (54,2%), dificuldade de concentração (47%) e para realizar as atividades diárias (23,5%), e ansiedade (41,9%).
A análise inicial das imagens de ressonância também já indicam possíveis alterações causadas pela Covid-19. Enquanto algumas regiões do córtex de voluntários apresentavam uma espessura menor que a média padrão, outras pareciam maiores. Os padrões de conexão também se mostraram diferentes daqueles do grupo de controle — composto por indivíduos que não foram infectados. Yasuda diz:
“Percebemos que algumas áreas do cérebro parecem estar em curto-circuito. Talvez seja porque o cérebro está tentando restabelecer as conexões que foram afetadas na fase aguda. Ainda não há uma resposta sobre como o vírus está no cérebro. É uma lesão direta? Eu acho difícil garantir isso, porque os estudos que foram feitos até agora, inclusive das pessoas que morreram por Covid-19, nem todos conseguiram mostrar que o vírus estava presente lá no cérebro. Por outro lado, a análise do cérebro de pacientes de Covid-19 é feita apenas em uma parte, então pode ser que foi examinado um pedaço em que o vírus não estava. Tem muita coisa que ainda não sabemos.”
Yasuda ressalta que alguns países da Europa já criaram centros de reabilitação para pacientes que tiveram Covid-19, mas acredita que o Brasil ainda está atrasado em relação a isso. O Grupo Leforte é um dos que já conta com um centro específico para tratar sequelas do coronavírus em São Paulo. De acordo com Heron Rached, coordenador do Serviço de Cardiologia do Leforte, o grupo já atendeu mais de 12 mil pacientes com Covid-19. A preocupação é que esse número crescente de recuperados que ainda necessitam de atendimento sobrecarregue ainda mais os sistemas de saúde já saturados.
“Mesmo aqueles que não tiveram sequelas precisam de um acompanhamento, pelo menos a médio prazo. Afinal, se um dia esse grupo silencioso começar a manifestar sintomas, a gente quebra o sistema de saúde, porque eu teria uma carteira de crônicos extremamente representativa.”
Por enquanto, ainda não há nenhuma recomendação formal dos órgãos de saúde sobre quais exames realizar ou qual tratamento buscar após a infecção por Covid-19. Clarissa Yasuda, da Unicamp, afirma que o objetivo do estudo é reunir o máximo de dados possíveis para ajudar na elaboração dessas diretrizes no futuro. Atualmente, ela diz que os médicos têm se deparado com “uma gama bizarra de sintomas e sinais estranhos”, sem saber exatamente como proceder em muitos casos.
No Grupo Leforte, Rached conta que o primeiro passo é realizar um exame de sangue, seguido de um raio-X do tórax e, se necessário, uma tomografia do tórax. Além disso, os pacientes também são submetidos a uma prova de disfunção pulmonar e a um eletrocardiograma. “A dificuldade de rastrear todo mundo com tomografia, seja do cérebro ou do tórax, é que do ponto de vista de economia na saúde, isso não é sustentável”, explica ele.
Rached ainda cita um estudo publicado na revista acadêmica JAMA que revelou que 78 entre 100 pacientes que tiveram Covid-19 apresentaram problemas cardiovasculares após a fase aguda da doença.
“Se nós formos tomar por base o que foi publicado na revista JAMA, em que 78% dos pacientes apresentaram sequela cardíaca, eu vou ter que avaliar toda a população. O problema de fazer um screening populacional é que você precisa de alguém para analisar isso. Então, recomendar hemograma para todo mundo, eu recomendo, mas nós temos médicos suficientes para analisar esses exames? Para avaliar a prova de disfunção pulmonar? Não, não temos. Então precisa ser uma coisa mais centralizada. Eu não tenho condições de simplesmente estender para população uma determinada conduta padrão, mesmo porque a doença se manifesta de diferentes formas em diferentes pacientes”.
Mas, então, quando procurar um médico? “O que eu tenho dito, de maneira geral, é que se você está muito incomodado, se tem muita coisa que está atrapalhando a sua vida, é melhor procurar um médico”, recomenda Yasuda.
A médica fisiatra da Rede Lucy Montoro, Flavia Kuhn, também afirma que o ideal seria que todos os pacientes que se recuperaram da Covid-19 passassem por uma avaliação médica completa, mas que isso se aplica especialmente quando houver alguma manifestação de sintomas.
“Ignorar sintomas é algo que nunca deve ser feito. Se você está sentindo desconforto é porque o seu corpo está te avisando que tem algo errado com ele. Nos casos de dor e fadiga, se não abordados de maneira mais assertiva desde o início, podem se tornar crônicas, o que dificulta muito o tratamento. […] Ressalto que é importante buscar auxílio sempre que houver qualquer dúvida em relação à sua saúde. Lembrando que a definição de saúde contempla o bem estar físico, emocional e social, e não apenas a ausência de doença.”
Rached, do Grupo Leforte, também reforça que ignorar os sintomas pode ser extremamente prejudicial, principalmente no caso de uma doença como a Covid-19. “Se você partir do princípio de que a infecção é um processo inflamatório sistêmico, o paciente vai estar suscetível a qualquer manifestação, seja ela do ponto de vista cardíaco, pulmonar, renal, neurológico.” Por isso, ele explica que, apesar de ainda não haver um protocolo padrão para tratar esses indivíduos, o procedimento é “tratar aquilo que você vê” e “à medida que os sintomas forem aparecendo, você vai avaliando e vai medicando”.
Seguindo nesta mesma linha, Yasuda diz que o tratamento vai depender muito do que cada paciente está sentindo. Uma recomendação importante, no entanto, é respeitar os limites do corpo. “Quando houver sonolência excessiva, é importante dormir mais horas à noite e até durante o dia. Eu acho que a gente tem que respeitar os limites e não ficar brigando; evitar tomar muito café, drogas, estimulante, energético e outras coisas, principalmente quando ainda for muito próximo da fase aguda. É preciso dar um descanso para o cérebro”. Ela também sugere uma alimentação saudável e a prática de exercícios físicos, já que isso pode ajudar a combater os potenciais efeitos degenerativos do cérebro causados pela Covid-19.
Kuhn, da Rede Lucy Montoro, também diz que, apesar de não haver um protocolo específico, “a recomendação global é de manter uma dieta balanceada, realizar atividades físicas e passar por avaliação médica periodicamente”. Rached, do Grupo Leforte, reforça essa necessidade do acompanhamento médico, principalmente em relação à prática de atividades físicas. “Eu não tenho como liberar exercício físico antes de avaliar o paciente. Eu posso ter um paciente que tenha sido acometido por uma sequela cardíaca e se eu recomendar esse tipo de atividade, eu posso provocar uma morte súbita”, diz ele.
Algo que tem exercido um papel importante no processo de reabilitação dos pacientes do Leforte, segundo o cardiologista, é a fisioterapia respiratória. Em alguns casos, é necessário ainda combinar o uso de antibióticos para evitar que essas pessoas sejam reinfectadas por bactérias. “De acordo com os sintomas, você vai direcionando o tratamento”, explica Rached.
Kuhn concorda que, assim como qualquer tratamento de reabilitação, a abordagem deve ser individualizada e focada nas necessidades de cada paciente. “O médico fisiatra é o profissional capacitado para a avaliação clínica e funcional dos pacientes, ele irá avaliar, diagnosticar e, juntamente à sua equipe, propor o tratamento mais adequado.” Segundo ela, o Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas oferece a reabilitação intensiva em regime de internação e atendimento ambulatorial, incluindo a opção de um atendimento híbrido, que combina o presencial e o teleatendimento.
Clarissa Yasuda, da Unicamp, as respostas diz que viu nas respostas de sua pesquisa uma preocupação sobre as consequências desses impactos negativos em outros aspectos da vida dos pacientes. Por isso, a ideia é reunir evidências para oferecer alguma forma de auxílio. “Algumas pessoas perderam o emprego porque elas não conseguem render como antes da doença. Eu tenho uma sensação triste de que talvez esse negacionismo que paira no ar vá prejudicar muito a população. E o impacto trabalhista da limitação imposta principalmente pela fadiga vai ser enorme. Nós queremos realizar o estudo para mostrar isso ao Ministério do Trabalho”.
O Brasil já é considerado o epicentro global da Covid-19, prestes a atingir 3 mil mortes diárias. Em meio a disputas políticas e uma resistência de parte da população contra medidas mais restritivas para manter as pessoas em casa, uma reportagem recente do jornal O Estado de S.Paulo revelou que 86% dos brasileiros não conseguem trabalhar de casa. Esses jovens correspondem ao grupo com menor escolaridade e são aqueles que enfrentarão maior dificuldade para se recolocar no mercado. As pesquisas e relatos sobre as sequelas da Covid-19 representam um risco adicional, reforçando a importância de acompanhar os mais diversos impactos da pandemia, principalmente em populações vulneráveis.