É preciso preservar a arte e a ciência de tomar decisões em nome do bem comum
Há algumas semanas voltei a ler Seveneves, de Neal Stephenson, nome conhecido dos fãs de ficção científica. Stephenson é autor de Snow Crash, um clássico do gênero, e já escreveu dezenas de livros. Seveneves tem um bom começo: a lua explode, e a humanidade tem que lidar com as consequências disso. Pra ser sincero, o livro não evolui bem e se perde um pouco em detalhes técnicos que a gente nem sabe se são reais ou ficcionais sobre foguetes, estações espaciais e atmosferas. Mas estou insistindo.
Stephenson é estadunidense, e escreve para estadunidenses. Qualquer pessoa que preste atenção na estrutura dos filmes estadunidenses (ou leia sobre o assunto) vai saber que na ficção dos EUA, principalmente na ficção voltada para cinema, a autoridade nunca é o herói. O governo sempre é vilão ou faz parte de uma estrutura burocrática que não deixa os heróis resolverem o problema. E em Seveneves não é diferente. Não vou entrar nos detalhes da história mas, às tantas, a dualidade que se apresenta é bastante parecida com algo que vemos hoje na vida real: os cientistas sabem o que têm que fazer, mas os políticos vão usar a política para atrapalhar e podem pôr tudo a perder.
Lembrei disso na semana passada depois de duas discussões com “PhDs do Twitter”. Podemos definir a categoria como: “pessoas que precisam colocar o título (PhD) depois do nome, dando a entender que sabem mais que você” – PhD é o título utilizado por quem possui um doutorado. Como qualquer pessoa que tenha frequentado a universidade sabe, além de boa parte dos melhores cérebros do país, também há numerosos idiotas com doutorado no planeta, mas o truque funciona. Se o camarada colocar um “MD” junto, então, dando a entender que é médico mas de uma maneira americana de ser médico (MD é a sigla para médicos, Medical Doctor), aí já era.
Não sei dizer qual era a relevância destas pessoas antes da pandemia de Covid-19, mas sou capaz de apostar que era bem pequena. Médicos, cientistas de dados e pesquisadores foram alçados a um papel de protagonismo ao qual não estavam acostumados e, na maioria dos casos, não estavam preparados para exercer. Muitos se desincumbiram bem da tarefa, sem dúvida, mas nem todos.
Aliás, a destreza e a responsabilidade na comunicação independem da qualidade profissional ou do caráter de cada um: não estamos falando da competência deles como MDs, PhDs ou seres humanos em geral, é importante frisar antes mesmo de começar.
A questão é que o engajamento em redes sociais é um vício que ainda será estudado pela academia – alguém ainda vai ser PhD nessa merda. A sensação de que qualquer coisa que você diga gera reações numerosas é inebriante. Este que vos escreve viveu isso na pele quando ter blog no UOL era algo que dava relevância e alcance, e se comportou mal. Para alguns, só gerar reação basta mas, para a maioria, as reações têm que ser sempre positivas. É o menino nerd no qual ninguém ligava e, de repente, está recebendo atenção e sendo citado por todos. O sujeito (em geral é um homem) sente até que se ele sair na rua será reconhecido na farmácia por algum fã.
Com frequência nos últimos tempos, o “bacana” é pregar a catástrofe: semana que vem vai ser a pior da pandemia, está vindo uma nova onda que vai matar todo mundo, por aí vamos (escrevi sobre isso aqui). No começo da pandemia, fazia sentido: o imbecil eleito para tomar conta da crise dizia que era “uma gripezinha”, e havia médicos que assinavam embaixo. E uma atitude cautelosa é sempre melhor que uma atitude desleixada quando falamos de crises, e de crises de saúde pública.
Ninguém deve deixar de dizer “calma, gente, não acabou e não sabemos quando vai acabar” em agosto de 2021 porque isto é um fato indiscutível. O que tem acontecido recentemente, porém, com o avanço da vacinação e a queda do número de casos e, principalmente, do número de mortos, é que parece que há uma turma grande viciada numa narrativa do caos. Porque são sacanas? Não, porque estão viciados na importância pública que adquiriram e que não querem perder.
Mal comparando, é o mesmo fenômeno que o The New York Times viveu e teme viver cada vez mais com a saída de Trump do poder. As pessoas deixam de considerar que é importante prestar atenção na política e nas notícias e param de pagar suas assinaturas — não à toa, a eleição de Trump foi uma maravilha para o jornal novaiorquino.
Pense por você: quantos médicos ou médicas que não são os seus ou suas médicas você seguia antes da pandemia em qualquer rede social? E quantos passou a seguir? Essa turma pode até não perder seguidores mas certamente vai perder atenção — o que, obviamente, é o que os melhores profissionais do setor querem.
Ainda não estamos falando disso, porém. A crise de saúde pública, como escrevi acima, não acabou e ninguém sabe quando vai acabar. O primeiro problema é a banalização do “vai dar merda”. É o caso da história infantil de Pedro e o Lobo: certo dia, cansado de só observar as ovelhas, Pedro resolve pregar uma peça nos aldeões e sai gritando “o lobo, o lobo, ele vai comer as ovelhas!”. Muitos vêm ajudar, apenas para perceber que não havia lobo algum. Dias depois, quando o lobo aparece de verdade, Pedro chama, mas ninguém vem. Substitua Pedro pelo “med twitter” e o Lobo pela “nova onda”, a “variante Delta” ou o que for. Se o alerta é repetido indiscriminadamente, como vem sendo, ele passa a ser ignorado.
O segundo problema é que a dicotomia entre cientistas e o presidente da república que se estabeleceu lá atrás transbordou, e tende a virar uma dicotomia entre ciência e política. Não só isto como tende a virar uma dicotomia em que a ciência sempre está certa, e a política sempre está errada.
Desconfiar da política não é esporte só dos americanos, e não é à toa que se desconfia da política. Isto acontece porque se mistura “a política” com “os políticos”. O problema é que a política está em tudo na vida da sociedade, não dá pra fugir dela, e demonizá-la só interessa a quem não acredita na democracia.
“O problema é que quem decide não são os cientistas”, me respondeu um dos PhDs do Twitter na semana passada. Ele me bloqueou, o que é outra coisa comum com esses figuras, então não consegui descobrir quais cientistas ele acha que deveriam decidir. Ele, provavelmente. E os cientistas sociais, como ficam? Os cientistas econômicos? Os da medicina psiquiátrica? Parece fácil quando a gente diz “a Ciência deve decidir”, assim com letra maiúscula, e parece fácil porque leva à conclusão, errada, de que só existe uma ciência, e de que se ela for empregada o resultado será sempre o mesmo.
Vivemos esta questão há alguns meses quando se decidia se as escolas deveriam abrir ou não. A melhor ciência epidemiológica parecia indicar que não. O problema é que ela é apenas uma parte da resposta à pergunta. A criança em casa e sem escola implica em numerosos problemas para a criança e para a família que o epidemiologista não tem condições de avaliar. E assim é com qualquer questão complexa. E é por isso que ainda não inventaram uma ferramenta melhor do que a Política, com letra maiúscula, para resolver esse tipo de problema.
Como define o dicionário, política é a “arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados.” É ciência, tanto quanto qualquer outra ciência, e é arte. É a ciência de ter dados e evidências disponíveis, mas é a arte de fazer escolhas. Escolhas que os cientistas de qualquer área fazem, diga-se, com a diferença de que eles não sofrem o escrutínio público.
É política decidir se é mais importante manter o professor em casa a salvo do vírus ou permitir que a criança pobre não fique dois anos atrasada com relação à criança rica (questão que envolve numerosas outras variáveis, obviamente). É política decidir qual é o momento de tocar o terror no público para que as pessoas fiquem em casa e qual é o momento de dar alguma esperança a quem está em casa há um ano e meio e sofre com isso (todos sofrem, e quem sofre mais sempre é quem é mais pobre). E é política decidir quem vai tomar as decisões políticas por nós. Porque se não houver política, alguém vai continuar tendo que tomar estas decisões, só que sem que as pessoas afetadas por elas tenham qualquer poder para interferir nisto
Mais do que discutir sobre a demonização da política em geral, é importante para quem analisa comunicação a forma como as redes sociais permitem e amplificam isto, e também a forma como pessoas que parecem bem intencionadas contribuem para isto por não estarem preparadas para o debate público.
A rede social mistura a mesa de bar com a televisão, a possibilidade de interação dá uma sensação de proximidade e intimidade ao mesmo tempo em que tudo pode potencialmente ser amplificado a extremos que a mesa de bar nunca chegaria. A fama, o alcance, podem ser efêmeros, assim como podem ser inebriantes. Neste sentido, a sociedade precisa discutir mais a maneira como a informação passou a circular e ser percebida, e os atores da conversa pública precisam ter consciência do alcance da própria participação nesta conversa.
A comunicação em 2021 ocorre em outro plano. Discuti-la faz parte da política, assim como a política faz parte do viver em sociedade. Demonizar e tratar como algo sujo e impuro não ajuda a levar o sentido da verdadeira política, da ciência e arte da tomada de decisões em nome de um coletivo, para a maior parte da grade mesa de bar.
A dica de hoje são os livros da Arquipélago Editorial, que está fazendo 15 anos. A editora que pôs (e põe) em livro os textos da Eliane Brum tem outros grandes livros no catálogo, e eles estão com desconto! O combo com “Tudo é Música” e “Nem Tudo é Música” do jornalista Ricardo Alexandre está saindo por R$ 49,90.
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