Se você viveu a era dos games nos anos 1990, certamente vai se lembrar disso.
Pega as notas de 2 reais aqui e ali. Dois contos no bolso da calça da escola, mais quatro na mochila. Firmeza! Abre a gaveta dos CDs de PlayStation 2 e … opa! Mais dois dinheiros.
Mas ainda falta um pouco. Que tal revirar o guarda-roupas à procura daquela sorte marota? Bota a mão no bolso de uma calça, nada. No fundo da gaveta de meias jaz um sabonete velho. É pra deixar as roupas com cheiro bom. Opa! Achei cincão no shorts do futebol.
Alegria tão grande quanto fazer um gol com o Allejo! Aquele dinheiro amassado era a pura alegria do milho verde. É dia de comprar jogo na banca!
Se você viveu a era dos games nos anos 1990, certamente vai se lembrar disso. Lembra dos jogos que comprávamos nas bancas de jornal? Aqueles que vinham com encartes de papelão e um ou dois CD-Roms?
Era sensacional. Lembro-me não somente dos jogos, mas tenho flashes de memória sobre vários acontecimentos. O caminho lúdico até a banca, no qual havia tempo suficiente pra pensar em qual jogo comprar. O papo furado com o tio da banca, que quase sempre me dava corda.
Melhor mesmo eram os encontros com amigos pra jogar jogos dificílimos, como os adventures Myst e Frankenstein. Fala sério, eles eram difíceis pra valer. As anotações no caderninho corriam soltas, enquanto o uso do teclado era de revezamento obrigatório.
Estamos falando de uma dimensão antropológica da cultura dos videogames. Em palavras menos rebuscadas, trata-se de daquelas culturas produzidas por nossa interação social, nossas amizades, nossas idas à banca de jornal. Nestes espaços, construímos boa parte dos nossos valores, identidades, modos de fazer e pensar.
Tudo estava indo muito bem. Até que um dia, tudo mudou. E mudou pra melhor.
Calma. A internet ainda não tinha chegado na quebrada. Até tinha, mas naquele esquema de conectar depois da meia-noite pra gastar um pulso só. Pra quem não sabe, a internet usava uma espécie de linha discada, que o computador ligava como se fosse um número de telefone qualquer. Pra isso, haviam os discadores. Coisa bem moderna. Seu modem fazia uns barulhos como se estivesse com fome, e já era. Com um pouco de sorte, você estava pronto pra entrar no bate papo do UOL.
Mas o que mudou para melhor foi a chegada do CD-Rom na parada. Além de uma centena de demos, como já era de praxe, o CD trazia uma ferramenta chamada RPG Maker pra criar meus próprios jogos!
Como assim, criar um jogo? Aquela ideia era muito nova. Ora, se pudesse criar um jogo – e agora podia – como ele poderia ser? As fases seriam grandes? Mapas de cidade, ou de natureza? E as personagens? Vou colocar meu amigo Douglas, meus primos Íkaro, Rafael 1 e Rafael 2. Calma, também vou recriar aquele amor platônico da escola no game!
Aquela ferramenta era poderosa. E ela me tornava poderoso. O poder de contar histórias era meu. Aquela sensação de aptidão só aumentava cada vez que conseguia fazer algo novo. Os gráficos já vinham prontos e eram bem legais. Os mapas foram se tornando maiores, com mais detalhes. Os puzzles que jogávamos nos outros games também não podiam ficar de fora. Inclusive, um dos dias mais divertidos foi quando consegui, pela primeira vez, criar uma passagem secreta atrás de uma cachoeira. Acho que se você fosse jogar aquele game, nunca descobriria.
E foi assim que comecei a me aproximar da dimensão sociológica da cultura. Calma, mais um termo que pode ser difícil, né? Vou explicar.
Quando olhamos pra cultura no sentido de elaborar algo, construir sentidos e significados, e ter a intenção de que as pessoas vejam aquilo, estamos falando da dimensão sociológica. Na ocasião, esse “algo” estava ligado a pensamentos do dia a dia de um moleque de pouco mais de 15 anos. Mesmo naquele fazer completamente sem jeito, sem técnica, mas com vontade de representar algo, penso que a dimensão sociológica estava lá, de maneira embrionária.
Mesmo na quebrada, fiz o colégio sem precisar trampar. Metade na escola pública, metade na particular. Privilégio que chama, né? Já que foi assim, tive tempo pra experimentar coisas novas. Com os amigos David, Diogo, Fernando e Luigi, fazíamos experimentos de distribuição dos jogos através de disquetes. Até porque queimar CDs era algo muito caro. Distribuição digital? Nunca ouvimos falar.
Naquela época, eu achava o máximo poder representar meus amigos num videogame. Contar minhas próprias histórias. Histórias lá da Vila Zilda, Zona Norte de São Paulo. Amigos da escola, cuja parceria de vida continua até hoje.
Hoje, a brincadeira da banca de jornal virou profissão. Não que toda brincadeira precise virar algo do tipo. Assim, nasceu pra mim o universo do videogame independente.
Alguns anos depois vejo muita gente criando videogames nas quebradas. Numa dessas, fizemos uma ação com a galera do PAC (Projeto Amigos das Crianças), em Pirituba. E com a mesma ferramenta de anos atrás. Dentro de três meses, a galera conseguiu construir 14 protótipos jogáveis, em 2019. Mais à frente, os games vieram a compor um pacote chamado Videogames da Quebrada, revertendo o valor em cestas básicas para 112 famílias da comunidade.
Tudo isso não seria possível sem a participação de mais pessoas. Guilherme Meneses, da Associação Povos da Terra; Filipe Pereira, da Aoca Game Lab; Marcos Vinícius e Raquel Motta, da Sue The Real; e lógico, minha companheira de vida e de profissão, a Tainá Felix.
Agradeço aos meus pais por me darem um computador naquela época. E também o dinheirinho do CD-Rom. Aos tios e tias das bancas de jornais. Acreditem, pequenos incentivos podem significar muito na formação das pessoas.
Videogame independente é videogame da quebrada!
Vejo você no futuro. Abraços!
* Jaderson Souza é doutorando em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela FFLCH, na USP e Também é mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. É presidente da Game e Arte, que desenvolve jogos e facilita processos educacionais por meio deles.