Tecnologia

Youtubers mirins: como plataforma manipula desejo e influência de crianças

3 de agosto de 2021

Youtubers mirins

Como toda criança passando pela pandemia de covid-19, o período que Rafael Zanoli, 6, passa em frente à tela do celular aumentou. Entre os muitos conteúdos de youtubers mirins e aulas online que assiste, um comportamento que chamou a atenção da mãe Nathielli Zanoli Canuto, 31, diarista, foi que o garoto estava imitando sotaques de outras regiões do País.

“Ele imita o sotaque de alguns youtubers que são mineiros e nordestinos e fica falando como eles no dia a dia. Também reproduz os trejeitos de alguns, além de copiar frases que eles costumam falar nesses canais, como que ‘lavar louça é coisa de pobre’”, conta a mãe do garoto.

Canuto se esforça para explicar que pensamentos como esses ditos pelos youtubers são brincadeiras e não devem ser levados a sério, mas leva como régua para censurar o conteúdo que o pequeno vê apenas quando palavras de baixo calão são ditas. “Não deixo assistir nenhum que fala palavrão. Se tem algum que fala, mando ele tirar na hora”, diz.

Nathielli também acompanha tudo o que o menino assiste dos youtubers mirins ou adultos que produzem conteúdos para crianças. “Ele adora assistir Luccas Neto, Maria Clara & JP, e DUDU e CAROL”, exemplifica.

E os pedidos, longe de desejos normalmente infantis, surpreenderam a diarista. “Ele já me pediu um iPhone 11 [após ter visto o produto no YouTube]”, conta. Ela completa:

O canal influencia o que ele deseja, pois as crianças se identificam com o que está sendo assistido. Brinquedos e, principalmente, as marcas tomam conta da cabeça delas.

“Os pais devem ficar atentos se estes objetos à venda são pertinentes à realidade da criança ou não, e é preciso explicar o porquê, além de ficar atento ao conteúdo, pois a imitação faz parte do desenvolvimento e as crianças ainda não possuem a  identidade desenvolvida”, explica a psicóloga Osmariana Vyel.

A rotina do pequeno Pietro Rodrigues, 6, também se divide entre assistir às aulas de forma remota, fazer as lições de casa e se divertir com brinquedos e jogos. Nos intervalos entre uma atividade e outra, é comum que ele assista a conteúdos infantis no YouTube – mas com o devido controle dos pais.

“Monitoro tudo que o meu filho vê e todo o conteúdo dele é nichado. Ele não guarda segredos de mim, nem da mãe dele”, explica o analista de comunicação e marketing Jesse Rodrigues Pereira, 29, pai do menino. “O que foge um pouco do tema infantil é que ele gosta de pesquisar sobre dinossauros. Não vejo problema em assistir isso.”

Youtubers mirins e publicidade infantil

Mas é entre um conteúdo e outro, aparentemente inofensivo, que surgem as publicidades. Por vezes disfarçadas como conteúdo entre os vídeos de youtubers ou nos anúncios que interrompem os vídeos abruptamente. Em 2019, o YouTube foi multado em US$ 170 milhões por usar dados pessoais de crianças, sem o consentimento dos pais, para direcionamento publicitário.

No mesmo ano, a empresa retirou a veiculação de anúncios em conteúdos infantis [para menores de 12 anos de idade] e o aplicativo YouTube Kids também teve mudanças nas políticas de publicidade. Nos canais em que a audiência seja infantil são permitidas apenas propagandas associadas ao vídeo em que serão exibidas.

Pereira avalia que os conteúdos voltados para crianças, que possam conter anúncios ou mesmo publicidade velada, precisam ser dosados. Já ocorreu, por exemplo, de o filho Pietro lhe pedir produtos que viu pela plataforma.  “No geral, deveria haver uma política que regulamentasse isso. A criança pode crescer gerando muita expectativa e até mesmo frustração por não ter esses produtos”, avalia o pai do garoto.

“As propagandas interferem no comportamento e na vida de uma criança que ainda não tem sua identidade formada. Estamos expondo aquele produto com palavras e atitudes que levam a pessoa desenvolver o desejo para adquirir sem que ela saiba que foi influenciada na linguagem subconsciente”, explica Vyel.

Supervisão constante e publicidade contra a lei

Karoline Vendruscolo, 30, é especialista em comportamento infantil e mãe da Manuela, de 2 anos e 8 meses. Por conta da idade da filha, a menina não tem acesso ao YouTube pelo celular ou tablet. Quando ela assiste a alguns canais de músicas infantis, que só estão disponíveis na plataforma, os pais estão sempre por perto e controlam o acesso pela TV da casa.

“É muito cedo para ela ter acesso a anúncios e vídeos que não temos controle do que vai aparecer. Ela nunca assiste nada sem a supervisão de um adulto, mesmo dentro de plataformas controladas, como Netflix, Amazon Prime ou Disney+”, explica.

A mãe da garota também conta que já presenciou conteúdos que são indicados para crianças, mas não deveriam ser. “Exemplos disso são vídeos de outras crianças testando brinquedos novos, desenhos violentos disfarçados de ‘fofinhos’, e músicas mais antigas com letras que muitas vezes são desrespeitosas para os tempos atuais, mas acabamos não prestando atenção”, diz Karoline.

No Brasil, a legislação vigente não permite nenhuma forma de publicidade infantil, em nenhum espaço ou mídia, conforme explica Maíra Bosi, coordenadora de comunicação do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana.

“Isso vale tanto para os formatos tradicionais de anúncios quanto para ações publicitárias veladas, como é o caso de vídeos de unboxing [no qual o produtor de conteúdo retira de uma caixa encomendas recebidas em casa] patrocinados”, comenta.

Ela também destaca que a publicidade de brinquedos ou demais produtos infantis não é vetada pela legislação. A proibição, neste caso, diz respeito ao direcionamento de mensagens e ações publicitárias para o público abaixo de 12 anos.

“É uma questão de quem é o público-alvo da mensagem publicitária, e não de qual é o produto anunciado. É plenamente permitido fazer publicidade de brinquedos, por exemplo, para o público adulto. O que, aliás, seria o desejável, considerando que mães, pais e cuidadores são os verdadeiros responsáveis pelas decisões de compra de uma família.”

A história do outro lado da tela

Se, por um lado, o YouTube precisa ser olhado com atenção por pais e mães de crianças pequenas, por outro, é um terreno amistoso para os “youtubers mirins”. O estudante Estevão Schoenfeld, 10, começou a publicar vídeos em um canal de jogos voltados para crianças em março de 2020.

Em um ano, o Garoto Web Toys já conquistou mais de dois mil inscritos. Com vídeos produzidos diariamente que serviram como uma válvula de escape no período de pandemia de Covid-19, o garoto conta que outras crianças lhe escrevem comentários e sugerem novos conteúdos. 

“To pensando em novos jogos bem legais que sei que elas vão gostar. Em todo vídeo deixo um comentário falando para elas [outras crianças/inscritos do canal] deixarem ideias de vídeos pra mim”, comenta.

A mãe de Estevão, a assessora de imprensa Elane Schoenfeld, 46, diz que o filho faz tudo sozinho, como pensar nos temas, editar e criar as capas dos vídeos. Segundo ela, o cuidado com o canal fica para o período da noite, já que o garoto tem aulas remotas durante a tarde, e demais atividades da escola, natação ou brincadeiras na parte da manhã.

“Também monitoro os comentários dos vídeos para que não tenha nenhuma criança ou inscrito ofendendo os outros ou para evitar algum comentário ofensivo em relação a ele”, diz. Em relação ao filho estar exposto a anúncios e publicidade, a assessora explica que o garoto entende quais são os limites na plataforma.

“Nunca tive a preocupação de monitorar o que ele está assistindo porque ele sabe até que ponto pode ir. Se ele vê que é um conteúdo que não é para a idade dele ou que tenha palavrão, ele mesmo para de assistir. Em relação à propaganda, é a mesma coisa. Ele nunca foi de pedir [algo que tenha visto no YouTube]”, conta.

Consumo saudável é possível?

Segundo Maíra Bosi, o efeito da publicidade em crianças é maior do que em adultos, pois, até os 12 anos de idade, elas ainda não são totalmente capazes de compreender o teor persuasivo da publicidade de determinada marca, produto ou serviço.

“Crianças menores, de até 6-8 anos, sequer conseguem diferenciar totalmente o que é conteúdo de entretenimento do que é conteúdo publicitário, e na internet essa confusão está ainda mais presente”, explica Bosi. Ela completa:

Nessa fase da vida (dos 6-8 anos), as crianças estão em pleno desenvolvimento físico, cognitivo, social e psicológico, sendo, portanto, muito mais vulneráveis aos estímulos persuasivos e aos seus efeitos.

Para Karoline Vendruscolo, que vive na pele a maternidade e na profissão o estudo do comportamento dos pequenos, um dos pontos prejudiciais às crianças é a possibilidade do consumismo se tornar algo comum e natural. 

“Crianças estão a todo instante absorvendo tudo ao seu redor, principalmente na primeira infância [de 0 aos 6 anos] que é a fase mais determinante da vida em que tudo está sendo moldado e estruturado”, diz. 

“O acesso às telas na primeira infância precisa ser feito com muita cautela, pois o excesso pode causar inúmeros danos, como atrasos no desenvolvimento da linguagem, transtornos no comportamento e má qualidade no sono. Sem contar que crianças precisam de ‘espaço’ para criar, imaginar e explorar, e as telas limitam tudo isso”, complementa.

Em relação aos conteúdos produzidos para crianças, Maíra avalia que estes devem articular valores éticos, políticos e estéticos positivos para promover, assim, um consumo mais saudável e seguro. 

“Conteúdos, plataformas e serviços digitais seguros para crianças são aqueles que respeitam seus direitos, com absoluta prioridade, incluindo o direito a não serem exploradas comercialmente”, aponta a coordenadora de comunicação do programa Criança e Consumo do Instituto Alana.

“Crianças têm direito a uma experiência digital segura e também a conteúdos de entretenimento que respeitem sua condição de pessoas em fase de desenvolvimento. Nenhum conteúdo produzido para o público infantil deve se aproveitar da sua inexperiência e vulnerabilidade”, aponta.

Mas longe de um mundo ideal e aceitando que as telas chegaram para ficar, tanto na nossa, como na vida dos pequenos, a psicóloga Osmariana Vyel defende que o caminho pode ser a dosagem e lembra sobre os riscos de exposição que passam pela publicidade e vão até a luz emitida pelas telas.

“O tempo máximo deve ser de, em média, uma hora por dia de atividade online. Nesta fase de pandemia, a criança já fica exposta à luz dos aparelhos eletrônicos por um tempo que vai além do que deveria. Esta luminosidade gera danos neurológicos e visuais, trazendo ansiedade, falta de foco, inquietação e dificuldade para dormir”, comenta Vyel.

* Colaborou: Giacomo Vicenzo