Filmes mais recentes não conseguem passar em um teste criado há 36 anos.
São três regras: 1) ter duas mulheres em cena; 2) elas conversarem entre si; 3) o assunto não envolver um homem.
Parecem requisitos fáceis e cotidianos nas linhas de diálogos nos filmes, mas muitos das produções de longa-metragem não passam no Teste de Bechdel, uma avaliação que internautas usam para apontar a desigualdade de gênero no cinema e que reflete tanto a diferença de papéis como os bastidores.
O Bitniks avaliou os últimos hits do cinema para saber se, mesmo após as diversas discussões sobre machismo, o cinema tem se tornado mais representativo.
O Teste de Bechdel não foi criado por um estudo de longos anos centrado em gênero e filmes, mas sim uma observação rotineira e que surgiu de forma despretensiosa.
Alison Bechdel, a pessoa que leva o nome do teste, é uma cartunista norte-americana que ficou conhecida pelas obras Fun Home e Dykes to Watch Out For. Em 1985, publicou The Rule dentro da série de quadrinhos Dykes. Na história, duas mulheres estão indo ao cinema e uma delas conta que só assiste a um filme se tiver os seguintes requisitos:
Após trinta e seis anos, o quadrinho se popularizou em sites sobre diversidade e cinema no começo da década passada. Até foi criado um site em que, até hoje, internautas fazem uma curadoria de filmes que passam ou não no teste.
O Teste de Bechdel inspirou outros testes para produções audiovisuais focadas em diferentes minorias como LGBTQI+ e pessoas não-brancas. Em 2013, a Bio Rio, uma rede de cinemas da Suécia, anunciou que ia aplicar o teste como forma de avaliar seus filmes e colocar “um selo de aprovação”.
A escolha dos filmes foi feita com base na bilheteria dos cinemas no Brasil, em 2020, que foram líderes de arrecadação nos fins de semana de estreia.
Os longas que ficaram no topo da lista foram lançados no começo de 2020, quando a pandemia de Covid-19 não tinha chegado ao Brasil e as salas de cinemas estavam completamente abertas.
A franquia revolucionou ao contar uma história protagonizada por princesas. Ela mostra a força fraternal em vez de um par romântico (e de preferência masculino) que a Disney reforçou por décadas.
Frozen II ainda foca em Elza, que reina Arendelle ao lado da irmã Anna e do genro Kristoff, mas sente que não encontrou o seu propósito. O grupo parte em uma aventura que deve descobrir um mistério que assola a floresta próxima do reino e, ao mesmo tempo, explora a jornada íntima da protagonista.
A parceria entre as irmãs permanece, mas a temática principal é sobre confiar na intuição para buscar as respostas mais obscuras.
Por ser protagonizado por duas personagens mulheres, e ter deixado claro desde o primeiro filme que não é preciso um homem para ter um final feliz, Frozen II passa com tranquilidade no Teste de Bechdel ao focar na jornada íntima e reveladora de Elza.
Paulo Gustavo foi umas das milhões de vítimas da Covid-19. Deixou um legado com sua presença marcante nos palcos e deu vida à Dona Hermínia, a protagonista de Minha Mãe é Uma Peça, uma das maiores franquias de filmes de comedia brasileiros.
Em Minha Mãe é Uma peça 3, Dona Hermínia precisa se reinventar com os filhos formando novas famílias com Marceline grávida e Juliano indo ao altar. A protagonista encara desafios com a partida dos filhos, novos parentes chegando à família e lidar com o ex-marido se mudando para o apartamento ao lado.
Utilizar o Teste de Bechdel nesse filme me fez refletir: a protagonista é uma personagem feminina, uma mulher que tem como essência a mãe brasileira, mas o ator é um homem performando como “drag”. Considerando apenas o gênero da personagem, no entanto, Dona Hermínia consegue passar com leveza ao retratar de forma caricata (e em alguns momentos, verossímil) a relação entre mães e filhos e que não esteja centrada em um homem.
A nova versão de Jumanji explora a temática de games com os personagens sendo representados por avatares dentro do jogo. Em Próxima Fase, Spencer decide consertar o videogame que permite que os jogadores sejam transportados novamente ao local.
A mudança está na adição de novos jogadores: o avô de Spencer, Eddie, e seu amigo, Milo Walker assumem as personas de Bravestone (Dwayne Johnson) e Finbar (Kevin Hart). O longa aborda novas temáticas como o envelhecimento e a mortalidade ao apresentar os dois senhores na aventura.
As duas personagens femininas centrais são Bethany e Martha. No primeiro longa, Martha escolhe a avatar Ruby, enquanto Beth não tem sorte e escolhe o avatar masculino Shelly Oberon (Jack Black). Já na continuação, Martha continua com a especialista em artes marciais enquanto Shelly desaparece ao entrar no jogo — devido à fita estar “bugada” — e sua identidade só é revelada ao longo da jornada.
No site do Teste, de Bechdel internautas se dividem no debate sobre a representatividade no filme. Além de personagens femininas sendo representados por avatares masculinos, as duas não chegam a conversar entre si e falando sobre um assunto que não envolve homens.
Por ser uma história em que os protagonistas são um grupo de amigos, a maioria dos diálogos são centrados na aventura e sobrevivência. No site, o filme reprovou por ter personagens femininas, mas que não chegam a trocar palavra. Alguns discordam e dizem que há diálogos em que as jogadoras se ajudam para superar os desafios — mas a verdade é que são momentos muito pontuais.
Os policiais Mike Lowery (Will Smith) e Marcus Burnett (Martin Lawrence) se juntam para derrubar o líder de um cartel de drogas em Miami. A recém-criada equipe de elite do departamento de polícia de Miami, ao lado de Mike e Marcus, enfrenta Armando Aretas que deseja vingar a morte do pai.
O terceiro filme da franquia também aborda um lado mais pessoal da dupla ao falar sobre crise de meia-idade, afinal os dois já não são tão jovens comparado ao primeiro longa lançado em 1995. Além do conflito de construir uma relação segura enquanto enfrenta os criminosos mais perigosos de Miami.
Apesar da trama ter personagens femininas relevantes como Rita e Kelly, que são da equipe de elite da polícia, e Isabel como uma das mentes criminosas por trás, nenhuma delas tem diálogos diretos entre si. Mesmo Rita e Kelly sendo do mesmo time, as falas são direcionadas ao grupo nos momentos de ação (e que estão envolvidos Mike e Marcus ou outros integrantes da polícia).
Bad Boys Para Sempre traz ação e o espírito da dupla Smith e Lawrence como nos velhos tempos, mas reprova no Teste de Bechdel por não ter diálogos entre personagens femininas.
Antes de analisar, já é perceptível a intenção do filme logo no título. Com o extenso (mas necessário) nome “Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa”, o longa coloca a Arlequina de Margot Robbie nos holofotes como merece, sem um Coringa abusador e sua ligação com o desastroso filme Esquadrão Suicida.
Em Aves de Rapina, a anti-heroína se torna a narradora e dá o tom ao falar da nova vida após terminar com o Coringa. Porém os caminhos de Arlequina, Caçadora, Canário Negro e da policial Renee Montoya se encontram e o inusitado quarteto deve derrubar um dos vilões iconicos de Gotham: Roman Sionis, conhecido como Máscara Negra.
Com um elenco composto por maioria feminina, Aves de Rapina consegue ser um filme divertido de assistir, despretensioso e sabe mostrar o “Girl Power” sem parecer forçado (ao contrário daquela cena de Vingadores: Ultimato). O filme não dá nenhuma satisfação por “parecer” ser, ele simplesmente é e ponto final.
Ah e sem sombra de dúvidas passa no Teste de Bechdel por ter diversos diálogos que vão além do Coringa, Máscara Negra e outros personagens homens.
Das cinco produções citadas, três são dirigidas por mulheres – Aves de Rapina (Cathy Yan), Minha Mãe é Uma Peça 3 (Susana Garcia) e Frozen 2 (nesse caso são duas pessoas: Jennifer Lee e Chris Buck). Não por acaso, são as três que melhor lidaram com o teste.
Vale ressaltar que esses filmes aprovados três têm personagens femininas como principal – mesmo com Dona Hermínia sendo interpretada por Paulo Gustavo – e todos, de alguma forma, cumprem alguns dos requisitos do Teste.
“Está estabelecendo mais um piso do que uma meta, é o mínimo do mínimo do que precisa fazer.” –
Nathalia Engler, jornalista e pesquisadora sobre gênero e mídia
No entanto, é preciso entender que o teste não define se um filme é considerado feminista ou não. Em entrevista ao Bitniks, Nathalia Engler é jornalista e pesquisadora sobre discursos feministas na cultura midiática e afirma que o Teste de Bechdel seria uma “primeira sinalização muito rudimentar” ao mostrar quem é o público-alvo.
“Está estabelecendo mais um piso do que uma meta, é o mínimo do mínimo do que precisa fazer.”, diz Engler. “Mas não diz se as representações femininas são interessantes, se desafiam padrões e estereótipos, nem se é uma história que tem uma perspectiva feminista ou do ponto de vista da personagem feminina”.
Mesmo que filmes tenham mulheres na direção ou protagonistas femininas, não há garantia de que haverá uma boa representação feminista. O oposto também pode acontecer. Engler cita o caso do filme Gravidade, que tem a atriz Sandra Bullock no papel principal, mas não passaria no teste por ter uma astronauta sozinha o filme inteiro. Isso não quer dizer que ele é machista.
Em entrevista ao Hypeness, Alison Bechdel revela que nunca teve a intenção de criar o teste como uma métrica, mas fazer uma brincadeira baseada nas conversas com as amigas que, na época, só tinham filmes voltados para homens héteros.
“Foi uma piada que sumiria se não fossem por algumas estudantes feministas de cinema, mais ou menos 20 anos depois, que a encontraram e acharam que expressava bem as dificuldades delas para contarem histórias sobre a vida delas”, relata.
Em suma, o Teste de Bechdel mostra apenas a margem de um problema que está mais no fundo, que é ohistórico da falta de holofotes e oportunidades para diretoras, produtoras e atrizes, que gera essa defasagem.
Felizmente, cada vez mais as produções hollywoodianas têm dado espaço e voz à mulheres, pessoas LGBTQI+ e não-brancas, mesmo que em pequenos passos. Engler afirma que feminismo e outros assuntos sobre diversidade se tornaram pop. “Passa a ser cool falar de feminismo. Antes as feministas eram vistas como ‘mulheres feias, peludas e que odeiam os homens’ e de repente as celebridades mudaram essa imagem”
Um exemplo é a nova leva de séries e filmes de super-mulheres solos da DC e Marvel, desde heroínas como Viúva Negra, Capitã Marvel, Mulher-Maravilha até vilãs como Cruella e Arlequina.
Parte dessa popularização vem com o contexto na época em que pautas dos movimentos sociais, como feminismo e racismo, migraram para as redes sociais e ganharam grande proporção. “Acho que tem essa dinâmica entre algo que está acontecendo na sociedade e algo que está sendo captado e amplificado pela mídia.” explica Nathalia.
No Brasil os assuntos #MeuPrimeiroAssedio e #MeuAmigoSecreto – que denunciaram casos de violências contra mulheres – começaram na internet e saíram do campo virtual até irem parar nas ruas exigindo maior rigor nas leis.
No cinema, não foi diferente com o Movimento #MeToo que levou às acusações de abuso sexual contra Harvey Weinstein. Além desses episódios, a imprensa e famosos apontavam a falta de representatividade de mulheres e negros indicados ao Oscar nos últimos anos.
Como forma de aumentar a diversidade, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood tem anunciado novos nomes para participar da votação do Oscar.
Questionada sobre o futuro das produções e discursos feministas, se serão apenas mais representativas, Engler acredita que a tendência das grandes produções seja aprofundar mais o papel de protagonistas, como em WandaVision que retratou o luto e usou as sitcoms como crítica da “família perfeita” heteronormativa com filhos. “Eu espero que no cinema a gente evolua a forma como a gente discute gênero.”