Cultura

Como Sussurros do Coração mostra o processo de criação

Para quem já é mais experiente, ou quem está trilhando os próprios caminhos, o longa é um lembrete de quando também estivemos no ponto de partida.

30 de agosto de 2021

Há obras que valem a pena assistir em diferentes fases da vida, e Sussurros do Coração é uma delas. Quem gosta de consumir e apreciar animações, sabe que as obras do Studio Ghibli são um deleite para qualquer idade — por mais que no ocidente exista a visão errônea de que conteúdos desse tipo são voltados para crianças.

O estúdio de animação japonesa é bastante conhecido por apresentar mundos fantasiosos e personagens cativantes com mensagens subliminares deixadas por Hayao Miyazaki em A Viagem de Chihiro, O Castelo Animado, Meu Vizinho Totoro, entre tantos outros.

Porém, o longa foi dirigido por Yoshifumi Kondō (com Miyazaki como roteirista) e é baseado no mangá de mesmo nome de Aoi Hiiragi. É uma das poucas obras mais “pé no chão” do catálogo ao mostrar um enredo mais real, mas que carrega aquela fórmula Ghibli de marcar qualquer um que assiste.

No longa, acompanhamos uma adolescente com suas ânsias sobre qual caminho seguir, pressões exteriores e as primeiras experiências românticas. Ao mesmo tempo, nos mostra o doloroso e catártico processo de criação, se tornando uma obra intensa em muitos níveis.

O texto contém spoilers do filme. Portanto, recomendo assistir a animação, que está disponível na Netflix, para uma melhor experiência.

O início do caminho

Lançado em 1995, o filme mostra uma Tóquio se tornando mais modernizada com a entrada de notebooks pesados e discmans nos lares, em meio a paisagens bucólicas e dias ensolarados.

Na história, Shizuku Tsukishima é uma leitora ávida, típica rata de biblioteca, se debruçando em contos enquanto tenta traduzir para o japonês a música Take Me Home, Country Road, cover de Olivia Newton-John e original de John Denver — som que vai estar presente durante todo o longa.

Tudo vai bem, até que a personagem descobre que todos os livros que aluga tem o nome de uma pessoa com o sobrenome “Amasawa” no cartão da biblioteca (algo do tempo longínquo em que se usava sistema analógico). A partir disso, ela tenta descobrir a identidade do leitor misterioso.

Shizuku é uma garota com sede de curiosidade. E mesmo entre os afazeres domésticos, traduzir a canção, ajudar a amiga com o crush e estudar para tirar boas notas, ela sempre arranja um momento de contemplar o “lá fora” e apreciar as pausas, que vão desde um dirigível visto pela janela até as paisagens enquanto pega o metrô (o que se tornou uma marca das obras de Miyazaki).

Seu interesse a faz conhecer lugares e personagens únicos como Shiro Nishi, dono de um antiquário com objetos fascinantes que se tornarão o berço das fantasias que irá escrever. Com isso, ela descobre que se trata do avô de Seiji Amasawa, seu colega de classe e o leitor misterioso dos cartões.

O enredo não se limita ao romance que nasce entre os dois. Seiji quer se tornar um luthier (profissional especializado na construção e no reparo de instrumentos) e dedicar a vida a consertar violinos. Para alcançar esse objetivo, ele vai para a Itália em um curso de dois meses.

Ela não fica nem um pouco preocupada ou enciumada com a escolha. Muito pelo contrário: vê uma oportunidade de começar a escrever uma história de fantasia, e o prazo de entrega para concluir sua obra é assim que Seiji voltar de viagem. É nesse momento que o filme toma um rumo diferente.

O ciclo eterno

As cenas de Shizuku trabalhando foram um marco. E não estou dizendo apenas porque inspirou a imagem da “Garota do Lo-fi” presente em tantos canais de música do gênero que bombaram durante a quarentena. Mas também porque conseguiu trazer na temática slice of life e adolescente como é penoso e, ao mesmo tempo, libertador o processo de criar ou produzir algo.

Além da rotina dos estudos e tarefas, a protagonista passa horas na biblioteca pesquisando sobre diferentes temáticas e escrevendo até de madrugada. Ela se afunda na própria narrativa enquanto tece as linhas de falas e descrição, chegando a ter sonhos em que corre em cenários sombrios.

No momento mais marcante, ela está cercada por um corredor de pedras brilhantes e está na busca da joia mais reluzente — a história satisfatória, que irá coloca-la em um novo patamar –, mas acaba pegando um filhote de pássaro morto, a fazendo acordar. Nesse momento, a protagonista encara os medos e inseguranças de que não é suficiente e que está destinada a fracassar.

“Não é fácil trilhar o próprio caminho, você só poderá culpar a si mesma.”

Junto a isso, a vida real começa a fazer suas cobranças: as notas da personagem na escola caem, ela fica cansada por dormir pouco, se isola das amigas, seus pais ficam preocupados com as escolhas que tem feito e chegam a confrontá-la. Nessa conversa, Shizuku está disposta a escolher esse caminho, mesmo ciente que colherá os frutos que plantou. Seu pai, então, fala algo que a atinge como uma flecha no peito: “Não é fácil trilhar o próprio caminho, você só poderá culpar a si mesma”.

Quem trabalha com escrita, música, filme, jogo e qualquer outra área que tem o mínimo de contato com a criatividade sabe o quão profundo e angustiante é ter que arrancar todo o sentimento ou desejo que tem de dentro e exteriorizar.

Mesmo eu, jornalista, estou em uma profissão em que há regras para escrever um bom texto e reportagem, que vão desde o básico da escrita até infinidades éticas e morais de lidar com fontes e assuntos delicados. O caso é que até para escrever uma historia não-ficcional é preciso dar o melhor de si para o outro, não apenas entender, mas conseguir se colocar no lugar do personagem e da narrativa que está relatando.

E nem sempre isso é fácil. Que atire a primeira pedra quem nunca se sentiu incapaz de fazer algo ou se questionou da carreira que escolheu.

A Pedra Bruta

Sussurros do Coração

Shizuku fica exausta e vira a noite para finalmente adicionar o ponto final em sua história no último dia, antes de Seiji voltar de viagem da Itália. Ao entregar o manuscrito para Shiro, o senhor do antiquário, a protagonista se encontra em um limbo torturante enquanto ele lê. O mundo exterior não tem música, apenas o passar do tempo que parece não ter fim.

Quando começou a jornada de escrever a história, o senhor mostrou para ela uma pedra bruta e rachada no meio. Dentro dela há uma esmeralda que só com a luz é possível ver os reflexos brilhantes, sendo a metáfora explícita que tanto Shizuku quanto Seiji são rochas brutas que estão em processo de lapidação. É tudo uma questão de prática e tempo.

Sussurros do Coração não é sobre fracassar ou conquistar, mas dar o primeiro passo no longo caminho que irá seguir.

Por fim, mesmo com o avô do garoto elogiando a obra, Shizuku desaba no choro sem acreditar nele, com a insegurança falando mais alto. A jovem acaba sendo consolada e entende que isso faz parte do processo de aprimoramento, e não deixa de ser maravilhoso.

Sussuro do Coração

Sussurros do Coração não é sobre fracassar ou conquistar, mas dar o primeiro passo para o longo caminho que irá seguir. Não é por um acaso que, na versão adaptada de Country Road, Shizuku muda o Oeste de Virgínia (da canção original) para um sentimento. Em vez da terra natal, é sobre a coragem e o lugar de pertencimento, sobre encarar as mudanças e o crescimento.

Para quem já é mais experiente, ou quem está trilhando os próprios caminhos, o longa é um lembrete de quando também estivemos no ponto de partida. No fundo, somo todos uma pedra sendo lapidada para mostrar a joia reluzente. Mas que, independentemente da decisão, isso não nos impeça de aproveitar a estrada, seja escrevendo, concertando um violino, apreciando a vista enquanto está o ônibus ou tendo uma boa noite de descanso.