Ciência

Por que, afinal, os “sommeliers de vacina “são tão ruins para a sociedade

Quando alguém nega uma marca para procurar outra, há riscos de contaminação, surgimento de variantes e diminuição da cobertura vacinal

11 de agosto de 2021

Na fila da vacinação contra o novo coronavírus da UBS Jardim Brasília, na Zona Leste de São Paulo, algumas pessoas desistiram do imunizante quando souberam que a vacina que estava sendo aplicada era da Astrazeneca. A atitude é atribuída, principalmente, às reações causadas pouco após a primeira dose. Alguns sentem dor de cabeça, moleza e dor local. “Ouvi dizer que dá muitos efeitos colaterais e quero procurar outra”, disse um dos desistentes. Ele é um dos que passou a ser chamado, pejorativamente, de “sommeliers de vacina”.

Assim como ele, Deusa Maria Pereira gostaria de escolher o fabricante. Por mais que já tenha recebido a primeira dose da Astrazeneca, para ela, a Janssen seria a melhor escolha, já que a marca Johnson & Johnson passa mais credibilidade. “A gente já conhece a marca e confia por usar os produtos no cotidiano. Além disso, a dose única dá a sensação de maior segurança”, afirma. “Todas essas vacinas foram feitas muito mais rápido do que o normal, isso deixa a gente com medo”. 

A Pfizer é outra que se tornou valiosa nos postos de saúde. O lote distribuído no mês de maio na capital paulista, com 135.720 doses, esgotou em dois dias. A marca é a mais procurada pela eficácia, que chega a 95%, e por ser uma das poucas que estão sendo aceitas nos Estados Unidos e em países da Europa. 

Isso tem sido comum nos estados brasileiros. Tanto que a Secretaria de Saúde do Distrito Federal lançou uma campanha com o slogan “Não importa a marca, o importante é vacinar!”. Em vídeo, o subsecretário de Atenção Integral à Saúde, Alexandre Garcia, diz que isso é motivo de preocupação para o órgão. “Essa vacina é uma vitória, ela custou para chegar e não importa a marca. Ela tem feito seu papel biológico”, ressalta. 

Edson Aparecido, secretário municipal da Saúde de São Paulo, também se posicionou: em uma entrevista à emissora Globo News, ele afirmou que a imunização é importante independente da marca. “Teremos bastante gente para tomar vacina agora que as faixas etárias estão se reduzindo. Nós temos feito um pouco esse debate procurando conscientizar as pessoas que a melhor vacina é a que está disponível no momento e que pode ser aplicada”, declara.

Para Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), esse comportamento acontece por dois fatores: esta é a primeira vez que acompanhamos de perto as pesquisas científicas e ainda há muita desinformação e fake news sobre o assunto.  “As pessoas não têm informações adequadas e não sabem o que olhar, se é a eficácia ou efeitos colaterais. Aí querem escolher sem base alguma”, diz. “No Brasil, também temos um problema que é a falta de comunicação e do posicionamento do Ministério da Saúde e das autoridades públicas — o que ajuda a perpetuar as dúvidas da população”.  

Como sommeliers de vacina afetam a pandemia

A vacinação ocorre por ordem de chegada das doses. Cada frasco da Astrazeneca, por exemplo, imuniza 10 pessoas e, após aberto, ele tem a validade de 48h. Assim, não é possível escolher qual vacina tomar. No entanto, ao recusar o imunizante por não ser de sua preferência, a pessoa corre o risco de se infectar pelo novo coronavírus e prolongar ainda mais a pandemia. Segundo Ballalai, esse comportamento também coloca em risco a meta de 70% de cobertura vacinal necessária para diminuir a circulação do Sars-Cov-2. “Atrasar a vacinação só vai piorar a situação que estamos e trazer mais mortes e hospitalizações”, afirma. “As pessoas precisam entender que isso é algo coletivo e se ficarmos esperando a vacina que queremos, não vamos resolver a pandemia tão cedo”. 

De acordo com o levantamento do G1, até 11 de agosto, o Brasil aplicou mais de 156 milhões de doses de vacina contra Covid-19. O número representa 51,57% da população brasileira com a primeira dose e, 22,15% com a segunda.

A falta ou o atraso da vacinação também propicia o surgimento de variantes mais perigosas e mais transmissíveis do vírus, como as que apareceram na Índia, na África do Sul e no estado do Amazonas. Mundialmente, milhares de mutações já foram encontradas.

“Quanto mais infectados, maior é a chance de aparecerem novas linhagens do vírus. Quando nos contaminamos, bilhões de partículas virais produzidas por dia dentro do nosso corpo”, explica Felipe Naveca, virologista e pesquisador da Fiocruz-AM. “Como há muitas partículas sendo produzidas, há chances de erros ocorrerem dentro desse processo, e isso gera as mutações”. 

Eficácia e efetividade

Para entender como funciona, na prática, a estratégia da vacinação, é preciso saber as diferenças entre eficácia e efetividade. “As vacinas têm eficácias diferentes, mas já temos estudos de países que adotaram mais de um fabricante e que mostram uma efetividade alta”, afirma Ballalai. Ou seja, quando temos boa parte da população vacinada, a diminuição da transmissão e da disseminação do vírus vai além dos números previstos nos estudos. 

Eficácia: É o dado referente ao estudo científico. Nele, os voluntários são divididos em dois grupos, um que toma a vacina e outro que toma um placebo. Após isso, o pesquisador compara os resultados e constata quantos casos de infecção cada um mostrou. Essa comparação é que vai revelar o quanto de casos a vacina preveniu. 

Efetividade: É o dado referente ao mundo real, fora do ambiente controlado do estudo. Aqui, a vacinação ocorre em mais pessoas, em grupos distintos e apresenta resultados que podem ser diferentes de acordo com o país. É o caso da Coronavac, que teve 91,25% de eficácia na Turquia e 50,38% no Brasil. 

“A vacina para o rotavírus, aplicada em bebês, foi aprovada com uma eficácia de 40% e conseguimos eliminar quase que completamente a doença. Hoje, ela é raríssima”, explica a especialista. “Vacinação em massa é a melhor estratégia. Precisamos nos juntar, ir para o posto e tomar a vacina que estiver disponível”. 

Mitos e verdades sobre a vacinação

No momento, quatro vacinas estão disponíveis nos postos de saúde. A AstraZeneca, produzida pela Fiocruz; A Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório Sinovac; a Pfizer, desenvolvida em parceria com a BioNTech; e a Janssen, feita pela Johnson & Johnson. Todas elas são aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, portanto, são seguras para uso. 

MITO: Vacinas foram fabricadas com muita rapidez e não são seguras

Apesar da agilidade, todos os imunizantes passaram obrigatoriamente por rígidos testes para confirmar sua segurança e eficácia. Ao todo, foram três fases de pesquisas. A metodologia de produção a partir de vírus inativados, como é feita a Coronavac, já era conhecida pela ciência e usada no mundo todo, o que facilitou seu desenvolvimento. Já a vacina da AstraZeneca é elaborada a partir dos chamados “vetores virais não replicantes”.  Embora a tecnologia seja recente, não é inédita e já foi utilizada em estudos da vacina MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), doença também causada por um coronavírus. Além disso, os órgãos de saúde diminuíram a burocracia e passaram a acompanhar de perto todas as fases dos testes.

MITO: Pessoas que tiveram trombose não podem tomar a vacina

“A trombose relacionada ao imunizante acontece quando o corpo cria anticorpos contra as suas plaquetas. Ela é extremamente rara e os riscos são iguais para quem nunca teve a condição”, explica Ballalai. 

VERDADE: Nenhuma vacina protege 100%

O que a gente espera com as vacinas é que elas sejam capazes de tornar a Covid-19 uma doença leve. Nenhuma delas consegue eliminar completamente o vírus”, diz a especialista. “Ainda assim, uma pessoa imunizada corre muito menos risco de internações e morte”. É por isso que, mesmo após as duas doses, recomenda-se o uso de máscaras, álcool em gel e distanciamento social.

VERDADE: Efeitos adversos são normais

As reações são esperadas algumas horas após tomar a vacina. Dor de cabeça, dor no corpo, cansaço e febre são sintomas que podem aparecer. No entanto, eles desaparecem depois de alguns dias e casos graves são raros. Para aliviar os efeitos, consulte um médico.

NÃO SE SABE: Não é seguro misturar as marcas

INDEFINIDO. Ainda não há informações suficientes que mostram maior eficácia ao tomar uma dose de cada fabricante. “As pesquisas em relação a isso começaram agora, mas o que procuramos é a segurança. Se ainda não temos dados científicos, não é a hora de recorrer a esta medida”, alerta Ballalai. 

MITO: Quem já teve Covid-19 não precisa ser vacinado

Ainda não se sabe quanto tempo dura a proteção após a infecção natural pelo novo coronavírus e existe ainda a possibilidade de reinfecção, visto que há uma diversidade de variantes. A vacina, portanto, deve ser tomada por todos. Após a infecção, é preciso aguardar um mês para se imunizar. A contagem vale a partir do primeiro dia de sintoma ou após o resultado positivo do exame RT-PCR. 

Uma possível solução

Para evitar que essas escolhas aconteçam, algumas regiões já estão agindo contra essa prática. Nas cidades de São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, em São Paulo, quem se recusar a tomar a vacina disponível vai para o ‘fim da fila’. Criciúma, em Santa Catarina, já tomou a mesma medida. No município de Guarapari, no Espírito Santo, a prefeitura decidiu barrar por 30 dias a imunização desse público. Em ambos os casos, o indivíduo assina um termo de responsabilidade sobre sua situação. 

Já em Divinópolis, na Região Centro-Oeste de Minas, a prefeitura mudou o sistema de cadastramento. Antes funcionava assim: a pessoa já sabia qual “marca” da vacina iria receber a partir do agendamento. Para escolher o de sua preferência, algumas pessoas faltavam na data prevista e se descadastravam. Era só repetir o processo para ter direito a uma nova data, às vezes em novo endereço e com o imunizante desejado. Agora, as autoridades retiraram a opção de excluir o cadastrado e, se alguém se ausentar na data prevista, há a imunização com a mesma vacina informada na confirmação do cadastro.

Em entrevista à Globonews, o prefeito de São Bernardo do Campo, Orlando Morando, disse: “Insisto que vacina não é para escolher. Você lembra a marca da vacina que tomou de gripe? Não lembra. Ninguém nunca pediu marca de vacina. Por que agora, no meio da maior pandemia da humanidade, as pessoas querem escolher vacinas?”.

Ao todo, em cidades paulistas, mais de 1.600 pessoas já foram enviadas para o fim da fila por querer escolher vacina.