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“Quem quer ser cientista, sai do Brasil; quem não quer sair do Brasil, sai da ciência”

Para especialistas, a solução é simples: investimento em políticas públicas para a educação e mudanças nas regras de concessão de bolsas.

6 de setembro de 2021

Em maio deste ano, o Ministério Público Federal pediu para que um bolsista do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) devolvesse aos cofres públicos o valor de R$ 831 mil. Tudo porque ele não voltou ao Brasil após concluir seu doutorado nos Estados Unidos, conforme exigia o termo de concessão da bolsa. A questão é que o montante foi cobrado 12 anos após a última interação entre o bolsista e o órgão de financiamento. Por isso, o ministro do STF Ricardo Lewandowski suspendeu a cobrança até analisar se o Estado ainda poderia mesmo exigir o valor.

O problema é que o pesquisador, que não teve sua identidade revelada, não recebeu uma proposta de emprego no país na área de robótica, a qual atuava. Segundo ele, sua pesquisa ainda não tinha aplicabilidade na indústria brasileira. Contudo, teve uma oferta de trabalho em uma empresa americana, onde passou a atuar após a defesa da tese.

Assim como ele, outros pesquisadores também sofrem na hora de retornar para o país de origem — procurando permanecer no exterior, onde têm mais oportunidades e tendem a ser, também, mais valorizados. É o fenômeno conhecido como “fuga de cérebros” ou, do inglês, “brain drain”.

É possível dizer que tudo começou nos anos 1960 e 1970, quando muitos cientistas e pensadores saíram do país por conta da ditadura militar. Porém, essa diáspora ganhou corpo pra valer nos anos 2000. “Há alguns fatores que explicam isso: a dificuldade de fazer ciência nesses períodos e as crises econômicas”, diz Ana Maria Carneiro, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autora de uma pesquisa sobre a fuga de cérebros nacional — falamos dela mais adiante. “No entanto, ainda não é possível mensurar quantas pessoas saem”. O último dado disponível é de 2010. Ele indica que o número de brasileiros altamente qualificados, que têm nível superior e vivem em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), beira os 300 mil — são 291.510 cérebros nessa situação, para ser mais preciso. 

Há muitos motivos que levam esses profissionais a migrar. Renan Costa, que está terminando seu doutorado em neurociência no Texas, Estados Unidos, acredita que a ciência é mais produtiva quando conduzida em um contexto global. “A colaboração e diálogo entre pesquisadores de diferentes culturas e com diferentes experiências é fundamental”, afirma. Além disso, ele pontua as dificuldades de fazer ciência por aqui. “O potencial brasileiro é enorme, há gênios produzindo conhecimento valioso. Todavia, esse potencial é frequentemente limitado pela falta de recursos e tecnologia”. 

O neurocientista e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Sidarta Ribeiro, concorda. “Eu fiquei 11 anos nos Estados Unidos, fiz doutorado e pós-doutorado lá. A diferença de recursos, de insumos e de capital humano é brutal. A rapidez das coisas é muito diferente e benéfica para o pesquisador. Se eu compro um anticorpo, por exemplo, no dia seguinte ele está na minha porta e eu consigo dar andamento na pesquisa”, disse, em entrevista ao Bitniks

Outra justificativa para essa viagem é a falta de empregos no Brasil. Segundo Evaldo Ferreira Vilela, presidente do CNPq, os talentos que vão para fora muitas vezes conseguem melhores opções de trabalho. “Isso acontece porque a nossa economia ainda é muito tradicional — baseada na produção e venda de commodities”, explica. “Lá fora, as economias requerem mais conhecimento porque são mais inovadoras. Nós produzimos muitos artigos científicos e isso mostra nossa capacidade, mas em termos de inovação, estamos em uma classificação baixa”. 

Para Vilela, é preciso ter uma política nacional de inovação que saia do papel e se torne prática. Dessa forma, vale privilegiar o financiamento de empresas que querem apostar em inovação. “No Brasil, quem faz inovação são as iniciativas privadas, e elas precisam de incentivos públicos para empregar talentos. Por outro lado, os especialistas querem seguir carreira acadêmica ou ir para empresas públicas — e isso atrapalha um pouco o ciclo. Precisamos capacitar os doutores para a indústria”.

Em contrapartida, uma reportagem da Agência Brasil revelou que 19 dos 25 maiores depositantes de patentes residentes no país são universidades públicas. Segundo dados do Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) lidera o ranking. 

A polêmica das bolsas de pesquisa

Apesar da falta de empregos, as regras das instituições de financiamento são claras: profissionais que concluíram suas pesquisas no exterior devem voltar logo após a defesa da tese. O prazo para ex-bolsistas da Capes é de 60 dias — e para os do CNPq, de 30 dias. Nos dois casos, os pesquisadores devem residir no Brasil por um período mínimo equivalente à estadia no exterior. Quem não retorna ou não permanec1e o tempo previsto está sujeito a processos administrativos, e precisa devolver os valores recebidos pelas agências.

“Essa regra foi muito interessante no passado, quando nós tínhamos a intenção de repatriar cientistas brasileiros. Funcionava para aumentar a nossa ciência. Então, a gente mandava muitos para o exterior e queríamos que eles voltassem, porque faziam falta”, afirma Vilela. “Mas o mundo mudou muito, e a falta de empregos no país nos deixa muito preocupados com essa regra”. O presidente do CNPq declara, ainda, que os órgãos reconhecem que o mundo está em transformação e que, para trazer benefícios ao país, já não é preciso que o cientista volte a residir no Brasil. “Estamos pensando em como mudar isso”, diz. Ainda não é possível saber quando as regras serão alteradas, mas já há discussões internas sobre o assunto, revelou o porta-voz.  

No caso da FAPESP, a agência também exige que o pesquisador permaneça no Brasil por um período após a conclusão da bolsa. Segundo a diretoria científica, a motivação para a permanência está no fato de que recursos públicos são investidos na formação destes alunos. “A exigência de permanecer com seu grupo de pesquisa por um tempo consiste em compartilhar o conhecimento adquirido na experiência fora do Brasil, de forma a maximizar o investimento realizado”, declaram. “A reinserção do cientista no mercado de trabalho deve ser uma política de governo, das universidades e da iniciativa privada. Caso contrário, estaríamos desviando a missão da instituição de apoiar a pesquisa científica e tecnológica no Estado de São Paulo”.

Ciência x política

Ribeiro ressalta que o momento político do Brasil também influencia a migração de pesquisadores, uma vez que o descrédito da ciência e as fake news afetam negativamente seu trabalho. Além disso, a falta de investimento no âmbito federal desmotiva os profissionais. “Estamos vivendo um desmonte de quase todo o aparato estatal de educação, ciência e tecnologia. Os cortes de bolsas são gigantescos. Então, como convencer o jovem de que ser cientista no Brasil é uma boa opção?”, diz. 

O jornal O Globo revelou, em maio deste ano, que o CNPq está com o menor orçamento do século 21. Segundo o veículo, entre 2011 e 2020, a quantidade de bolsas ofertadas caiu em quase 50% — de 2.445 para 1.221. No mestrado, a redução foi de 32%, saindo de 17.328 para 11.824; no doutorado, de 20%, quando passou de 13.386 para 10.738.

“Quem quer ser cientista, sai do Brasil; quem não quer sair do Brasil, sai da ciência”

Sidarta Ribeiro, em entrevista ao Bitniks

As universidades públicas, que concentram a maior parcela da produção científica nacional, também sofrem com falta de verba. A crise da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) é um exemplo disso: dados divulgados pelo G1 informam que o orçamento discricionário da universidade caiu R$ 340 milhões em dez anos: de R$ 639 milhões, em 2011, para R$ 299 milhões em 2021. Ao veículo, o vice-reitor da UFRJ, Carlos Frederico Leão Rocha, afirmou que “não dá para manter” a instituição funcionando com o orçamento destinado. 

“Quem quer ser cientista, sai do Brasil; quem não quer sair do Brasil, sai da ciência”, diz Ribeiro. “É uma perda muito grande, porque cada pessoa dessas tem décadas de formação financiadas pelo Estado. E isso é complicado, pois não existe uma posição soberana para o país sem ciência e tecnologia. Se seguirmos esse rumo, vamos perder o que construímos ao longo de décadas”.

Demandas acessíveis

Ana Maria Carneiro, da Unicamp, realizou um workshop com cientistas brasileiros que deixaram o país nas embaixadas de Washington, nos Estados Unidos, e Londres, na Inglaterra. A ideia era entender, questionando os próprios pesquisadores, como eles achavam que poderiam contribuir com seu país de origem. “Nesses dois eventos, notamos sugestões muito práticas, que podem ter um grande impacto para essas pessoas”, conta. 

Dentre as demandas, estão: o convite para a participação de atividades em instituições brasileiras, como bancas, defesa de tese e programas de pesquisadores visitantes. “Nesse último caso, o indivíduo teria a possibilidade de passar mais tempo por aqui sem se mudar definitivamente e se desvincular com as instituições estrangeiras”, explica. Outra proposta é o lançamento de programas específicos para apoiar a cooperação, com o objetivo de estimular a integração entre a diáspora e os laboratórios de pesquisa no Brasil. “Por fim, há a necessidade de quebrar a mentalidade de que esse movimento prejudica as interações, o diálogo e a cooperação”, afirma.