Cultura

Por que políticos se aproximam dos games, mas os games não se assumem políticos?

Público consumidor de jogos, no geral, ainda é despolitizado — e o discurso “anti-político” tenta se aproveitar disso. A indústria, no entanto, já dá sinais de mudança.

3 de setembro de 2021

A relação entre a indústria dos games e a política tem ficado mais explícita recentemente, sobretudo em certos nichos. É o que argumenta Erick Santos, advogado e doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP). Só que isso ainda não acompanha totalmente o comportamento de quem consome. Em conversa com o Bitniks, Erick diz que o público dos games é, em sua grande maioria, despolitizado.

“Vemos isso mundialmente, não só no Brasil. Existe um certo medo das desenvolvedoras de se assumir politicamente ao incluir elementos políticos em jogos”. Afinal, por mais que um protagonista não deixe a própria visão de mundo explícita, um jogador atento não demora a interpretá-la. E, devido ao desprezo à política, a recepção tende a ser negativa.

O medo existe porque pode afastar certos jogadores que têm essa tendência de repúdio à política, que é um movimento global, fazendo-os não se interessar pelos próprios jogos.”

Se os jogos costumam evitar temas politizados, a onda de políticos que, ironicamente, mantém discurso “anti-política”, também virou moda. Erick afirma que figuras públicas que buscam essas pautas “geralmente são os que querem se afastar da política tradicional”, diz. “Temos Bolsonaro e Kim Kataguiri, por exemplo. Parte do pessoal do MBL tem essa pauta também”. Fazendo isso, políticos dizem a grupos despolitizados (como o dos gamers) que eles estão sendo notados.

Mas o que torna esse público relevante enquanto eleitor? De acordo com Erick, a resposta está na rejeição à política tradicional. Mirar em jovens que acabaram de chegar à idade de votação (16 anos no Brasil), e que ainda estão por formar sua própria percepção política, assim, se torna parte da estratégia para conquistar o espectro de brasileiros que não ligam para política. 

“Esse é o candidato dos games”, define a desenvolvedora de games e produtora cultural Tainá Felix, em entrevista ao Bitniks. “Pode ser que a intenção não seja de fato construir estratégias e atender demandas para a melhoria do setor, e que seja só um discurso vazio e superficial para angariar votos de pessoas que amam muito aquela arte”, afirma.

Os 89 milhões de jogadores brasileiros gastaram um acumulado de R$ 11,7 bilhões só em 2020. Não à toa, propostas de “políticos dos games” costumam girar em torno da diminuição de impostos. Acontece que o consumidor é apenas uma fração da indústria. “[A diminuição de impostos] não é um argumento que amplia as possibilidades de trabalho, formação e desenvolvimento do setor. O consumidor é só uma parte. Vemos que essas promessas, inclusive, não são reais (considerando que o dólar não coopera e os consoles estão cada vez mais caros)”, diz Tainá.

A desenvolvedora lembra que, em 2018, o Ministério da Cultura apresentou editais para investimento de R$45 milhões no setor. “Vi projetos incríveis, vindos de várias partes do país, que possivelmente não iriam existir se não fosse a grana do poder público. Infelizmente, de 2018 para 2019, o Ministério virou Secretaria e as pessoas não receberam esse valor”, conta. O discurso dos políticos, por sua vez, recorre a questões tributárias por esse ser justamente o ponto mais palpável ao consumidor.

Vez e voz

Ainda que tente dialogar com questões da comunidade gamer, o discurso de desprezo pela política tradicional pode ser perigoso. Isso porque ele pode impactar outras formas de expressão política, como questões de diversidade — comumente associadas à militância. Essa repulsa abre campo para o repúdio a pautas mais progressistas e para a reprodução de preconceitos, verbalizados por discursos machistas e racistas.

Para Erick, esta acaba sendo a parcela mais vocal da comunidade gamer — representada, especialmente, por streamers e influenciadores da comunidade. “Como é um padrão reproduzido pela sociedade e em qualquer jogo online, isso dialoga com o que os políticos (que querem conversar com o público gamer) pregam ultimamente”, opina.

Erick, ativo em diversos debates (e defensor de causas sociais em suas redes) foi essencial para a exposição, que no futuro levaria à derrubada, de um grande canal gamer acusado de reproduzir falas racistas no YouTube. Ele opina:

“Não acho que jogos ‘devem’ ser políticos. Mas é inevitável que eles tenham uma colocação política, ainda mais quando temos uma diversificação das pessoas que desenvolvem jogos, cada vez com mais visões diferentes.

Quem “lacra” não lucra?

Alavancados por uma visão de mundo mundo mais progressista, certos estúdios de jogos vêm decidindo tomar partido ao contar suas histórias. A escolha de quem será o protagonista, o cenário e até a distribuição das mídias são capazes de passar uma mensagem. O grande exemplo vem de The Last of Us II. O jogo, lançado há pouco mais de um ano, foi o terceiro mais vendido da história para os consoles da Sony, e contava com três personagens LGBTQ+ de destaque.

A questão de gênero de TLOU não é o centro da narrativa, mas, mesmo assim, há brecha para a representatividade. Logo, um jogo não precisa mirar sempre em agradar todo o público gamer. “No fim das contas, o mundo é diverso. Temos nichos e você vai vender o seu jogo para um tipo de público. É impossível você criar um projeto de venda para seu produto que atenda todo mundo”, explica Tainá. 

Mesmo que um jogo feito por estúdios grandes afaste parte do público por trazes mensagens explícitas (e visão política menos camuflada), ele, ainda assim, vai vender. “É uma escolha que afasta a parcela de jogadores mais politizados que não vão aceitar a mensagem política, ou a parcela mais anti-política”, esclarece Erick.

O sucesso do game prova que desenvolvedores de médio e grande porte também podem abordar assuntos com um alinhamento político, ainda que para desenvolvedores independentes essa escolha de posicionamento possa parecer mais fácil. Afinal, mirando em menos gente, menor será o tombo no caso de um fracasso.

“O [desenvolvedor] independente, como o nome diz, não depende de determinados parâmetros da indústria ou de um publisher para ser criado. O independente tem mais liberdade de criação para arriscar mecânicas, histórias e personagens e principalmente o teor, se é mais ou menos, se vai ter aquilo como um ponto de partida dentro do seu jogo ou não”.

Desse lado do espectro gamer, encontramos os “jogos diversos“, classificação dada a games que apostam na representatividade. “Enquanto desenvolvedores pretos, somos poucos”, diz Tainá. Ela, que há 12 anos trabalha com games junto de seu sócio, Jaderson Souza, gradualmente teve interesse em descobrir quais outros criadores de jogos aplicavam um recorte racial em suas obras. “Comecei a fazer esse recorte e essa pesquisa também dentro dos jogos, para investigar a imagem e representação de corpos pretos dentro dos videogames.”

À parte de pesquisas e cursos, a dupla decidiu que iria começar a desenvolver jogos. Tainá é também produtora no estúdio Game e Arte, sua criação. A Nova Califórnia e Amora foram dois jogos produzidos e distribuidos pelo estúdio, ambos com storytelling focado em conscientizar quanto a pautas sociais. 

Ela também diz ser importante a identificação com os personagens na tela. Tainá conta já ter ouvido de amigos, colegas e de crianças (que participam de seus projetos) sobre “o quanto elas se empolgam infinitamente mais quando veem um semelhante na tela”. Santos diz que isso ganha mais peso do lado feminino, pois após a representação de mulheres não ser mais sexualizada, o interesse tende a aumentar. Afinal, corpos mais próximos à realidade diminuem esse espaço entre real e virtual. 

De acordo com a Pesquisa Games Brasil, cerca de 75% dos brasileiros jogam algum tipo de jogo eletrônico. O público está bem dividido, visto que mais da metade são mulheres. Há também um mínimo equilíbrio em relação à cor da pele: 46% são brancos, 36,7% são pardos e 13,6% são pretos.

Jogadores que não representam minorias também podem ganhar com a diversificação. Afinal, estar nos sapatos de um personagem que passa por determinadas situações pode levantar novos pontos de vista. Segundo Erick, o protagonismo vem carregado se um jogo se assume politicamente. “O jogador está controlando, então ele vai ter, em algum momento, que refletir sobre as escolhas que ele toma, o rumo que a história vai, porque é a ‘sua’ história”. 

Por fim, Erick diz acreditar que um game se assumir político não é um dos maiores problemas. “Acho que o desafio, hoje, seria alguém que se dispõe a se fazer um jogo que não tenha nenhum elemento político. Boa sorte para quem quiser tentar.”