Cultura

Por que as produções asiáticas crescem na Netflix brasileira?

Entenda a popularidade das novelas asiáticas (aqui e fora do mundo) e o interesse da Netflix nelas

21 de julho de 2021

Entre as intermináveis séries e filmes da Netflix, as produções sul-coreanas passam a ganhar cada vez mais destaque. O interesse da gigante de streaming por essas produções, também chamadas de K-Dramas, é tanto que, em 2021, ela pretende investir US$ 500 milhões em produções do país.

Às vezes, o serviço parece fazer questão de esbanjar as próprias séries feitas do outro lado do mundo. Há inclusive uma seção dedicada dentro do site para os dramas específicos da Coreia do Sul onde, vez ou outra, “escapa” uma do Japão (J-Drama) ou da China (C-Drama).

As produções asiáticas, normalmente, são generalizadas como doramas. E o interesse dos brasileiros no assunto só cresce, como evidencia o Google ao mostrar o crescimento por “doramas” nos últimos cinco anos no Brasil.

Mas não se engane: embora o termo dorama seja utilizado para generalizar as produções asiáticas, ele originalmente se refere apenas aos dramas japoneses. Seja como for, a verdade é que os K-Dramas, assim como o K-Pop e tantos outros produtos da indústria cultural sul-coreana estão fazendo a cabeça dos brasileiros.

De Ji-min a Bong Joon-ho

Não por acaso, a Coreia do Sul tem este aspecto de identificação cultural mais evidente se comparada aos outros países asiáticos. A tal onda cultural sul-coreana, que engloba a divulgação de músicas e filmes pelo mundo, ganhou até nome: hallyu. Isso explica o fato de um grupo musical (indicado ao Grammy) como BTS e o filme (vencedor do Oscar) Parasita serem responsáveis por voltar a atenção do mundo para o país. 

A ideia preconcebida de que doramas são sinônimo de novela logo se tornaram forma de diferenciar as produções. “Não estou assistindo uma ‘novela asiática’, estou assistindo um dorama. Com esse termo, as pessoas conseguem fazer parte de uma comunidade, e isso é positivo”, conta Carol Akioka, diretora do portal KoreaIN, no qual está há mais de uma década. Ela resume:

“Quando uma pessoa se interessa e vai pesquisar [sobre BTS], ela se depara com um mundo audiovisual muito grande. Clipes diferentes, filmes para todos os gostos, artistas de k-pop que também atuam. É uma porta de entrada para outros aspectos da cultura”.

O roteirista e diretor Bong Joon-ho é exemplo do sucesso da Coreia do Sul nos EUA. Ele teve dois absolutos cases cinematográficos na última década: Parasita, ganhador de três prêmios do Oscar (que vai ter uma série spin-off na HBO), e Expresso do Amanhã, adaptação de um quadrinho francês que depois virou série da Netflix. O diretor também se envolveu com a Netflix em 2017 com o longa Okja.

Após o final de 2019, perto da estreia de Parasita, o serviço passou a investir ainda mais na Ásia. Em cinco anos presente no continente, foram mais de 220 produções originais asiáticas.

Ainda que a Netflix seja americana, o espaço conquistado pelos sul-coreanos na plataforma atraiu o público asiático que já não se vê tão satisfeito com o conteúdo das TVs.

Um dos maiores sucessos de K-Drama na plataforma é Pousando no Amor (em inglês, Crash Landing On You). A série bateu recordes de audiência na Coreia do Sul e foi oficialmente distribuída pela Netflix ao redor do mundo. No Brasil ela chegou legendada quase imediatamente após a exibição na TV. Com o último episódio indo ao ar em fevereiro do ano passado, houve uma estimativa de 1,75 bilhão de visualizações globais para episódios e clipes em diversas plataformas online – destes plays, 110 milhões foram só repetições de trechos, pelos mesmos usuários.

O sucesso de Pousando no Amor dentro da Coreia do Sul é curioso quando levamos em conta a sua premissa: um amor proibido entre cidadãos da Coréia do Norte e do Sul. Yoon Se-ri faz um passeio de parapente quando é levada por um tornado para além da fronteira, onde é encontrada pelo militar Ri Jeong-hyeok. Pousando segue o oposto do modelo tradicional nam nam, buk nyeo — clichê coreano onde o homem do sul se apaixona por uma mulher do norte. Parte do público sul-coreano critica a produção por “glamourizar” a vizinha do norte.

Ji-min, indicado ao Grammy 2021, e Bong Joon-ho, vencedor de 3 Oscars. Arte: Allan Camilo

Contudo, Akioka conta que os dramas de lá às vezes não chegam com o mesmo sucesso aqui no Brasil. “Existem muitos posts em redes sociais da Coreia do Sul falando sobre determinado drama, sobre atores e como ela quebrou recordes, e aqui no Brasil acaba não refletindo essa popularidade. Em parte não há interesse, por não estar em fácil acesso na Netflix”.

Na Coreia, a televisão ainda é muito forte. Mesmo assim, Akioka diz que “muitos coreanos têm trocado TV para acompanhar as séries pela Netflix”. Eles têm dramas que já terminaram e chegam aqui com meses de atraso, mas outros saem quase ao mesmo tempo. “É legal, pois o pessoal daqui se sente inteirado sobre a mesma coisa de lá, com as legendas certas”.

Netflix conecta imigrantes

Há também o caso de imigrantes coreanos que veem na plataforma uma chance de se conectar com seu país. É o caso de Eunjae Kim, sul-coreana de 29 anos que mora em São Paulo. Ela, que é doutoranda em relações internacionais na Universidade de São Paulo, conta que suas atuais músicas favoritas são as trilhas sonoras de novelas dos anos 1990-2000. Para ela, as produções são sinônimo de nostalgia.

A pesquisadora passou a adolescência tratando séries dramáticas como ferramenta para imaginar “relacionamentos entre adultos”. Afinal, quando menor, ainda na Coréia do Sul, seu foco eram os estudos. A restrição de entretenimento por parte dos pais a distanciou as novelas — que só foi retomado na vida adulta, quando por meio do PMP (dispositivo que lembra um player de MP4) ela dividia downloads com amigas, intercalando as aulas e os programas de TV.

No Brasil desde 2013, ela precisou aprender a alimentar sua antiga paixão por K-Dramas por meio da internet. Há tempos, a Netflix vem sendo grande responsável por manter Kim e outros fãs em dia com o que é produzido na Ásia.

Além de Pousando no Amor , outros sucessos coreanos na Netflix incluem a sitcom Me Tira Daqui, o terror Sweet Home, a fantasia Enfermeira Exorcista e o drama Vincenzo, este que tem de tudo para ser uma boa porta de entrada para quem nunca assistiu nada do tipo. 

Diferenças entre países

O termo dorama é popular e propagado ao redor do globo com ajuda da Netflix. Contudo, com o passar do tempo, a generalização se tornou um problema. Pelo menos é isso que defende Mayara Araújo, pesquisadora de cultura do MidiÁsia na Universidade Federal Fluminense. Ela conta que “dorama” pode não ser tão adequado “por uma questão geopolítica da Ásia”, pois quando outros países começaram a emular o formato japonês houve o peso do caráter nacional em cada produção. 

K-dramas, por exemplo, podem ter uma fórmula semelhante ao que vemos nos chineses, mas há grande diferença do cenário cultural das séries. Para Araújo, as séries coreanas têm mais fácil aceitação no Brasil do que as japonesas, por exemplo, por ter mais semelhanças culturais conosco. “Essa linguagem híbrida [de misturar gêneros] que a Coreia do Sul usa, acaba funcionando melhor do que uma linguagem mais específica, como a do Japão – e isso é mais atrativo para a Netflix”, diz a pesquisadora.

Mas há também diferenças de formato. Enquanto as séries americanas populares de TV possuem várias temporadas de poucos episódios, com duração variada, as sul-coreanas têm poucos episódios com duração de uma hora. Já as japonesas lembram o formato americano e as da China costumam fazer o oposto: condensar uma história em dezenas de episódios de uma hora e meia, em uma única temporada.

Como assistir aos K-Dramas na Netflix

A Netflix não demorou a introduzir seus formatos nas produções coreanas também. Hospital Playlist, a mais vista pela Coreia do Sul na plataforma ano passado, ganhou renovação para segunda temporada logo depois de sua estreia. No Japão, Alice in Borderland finalizou com um enorme gancho para sequência, seguindo a filosofia de “temporada piloto” que costumamos ver na Netflix americana – a tática aguarda feedback do público antes de anunciarem a renovação do programa.

A duração dificulta que uma série seja apreciada em uma maratona, pegando emprestado os costumes televisivos dos países. O drama coreano Vincenzo, por exemplo, estreou há poucos meses e traz 20 episódios com duração média de 80 minutos. A não ser que você dedique 26 horas do seu fim de semana à série, ela é feita para ser assistida com parcimônia.

O paralelo mais claro com as coreanas está no fato de, ocasionalmente, haver exibição dupla de episódios. Ganchos podem ter um peso diferente quando pensamos na exibição em streaming. A narrativa pressupõe um padrão de exibição em “levas” de episódios.

De olho nisso, a Netflix tem aproveitado a flexibilidade tecnológica para experimentar novos formatos de exibição. A coreana O Mito de Sísifo, por exemplo, foi ao ar semanalmente em quartetos – cada um com 60-70 minutos. Em Busca do Smash Perfeito fica em exibição até julho, indo ao ar todas as segundas e terças-feiras, coisa que também foge do modelo semanal de séries ocidentais. 

E a China?

Professora de mandarim há mais de quatro anos no Brasil, MiaoFang Guan nasceu na China e morou por lá desde que veio estudar (e lecionar) aqui. Dramas chineses formaram sua infância, mas muito mudou desde então. Com a Netflix barrada por lá, foi só em São Paulo que ela descobriu o que o serviço mostrava sobre sua terra natal.

Atualmente Miao assiste uma ou outra série de drama por mês, mas foi algo que fez parte da vida dela por mais de 20 anos. “Eram as que mais representavam nossa cultura – em termos de ‘vender’ essa ideia para o resto do mundo. Elas não mostravam só nossa história como também a estética e os pensamentos filosóficos da época”.

Para ela, o bom drama chinês está atrelado a muitas especificidades culturais chinesas — o que acaba afastando espectadores de outros países. Empresses in the Palace é um bom exemplo de uma série popular, que teve grande apreciação do público chinês, mas não circulou tão bem fora de lá. Parte da prova disso foi o corte brutal quando chegou na Netflix: 76 episódios de 45 minutos viraram apenas seis filmes de 90 minutos. A série de 2011 fala sobre como a honesta Zhen Huan se torna uma mulher cruel (escondendo a tristeza), enquanto tenta relevar seu poder no Palácio. Quem não é familiarizado com a dinastia Qing vai ficar perdido – e muito também se perde na tradução, como a professora conta. 

No streaming de hoje, Guan vê uma diferença de gêneros e de tom ao que ela estava acostumada. “O que chega na Netflix aqui no Brasil é basicamente: metade dramas de fantasia, metade romances clichês. Esses romances ainda seguem muito do mesmo padrão, que seria ‘a menina bobinha, fofa e inocente’ com ‘o cara rico, bonito e frio’”. Ela cita como exemplos Eternal Love, The Perfect Match e The Princess Weiyoung. Para Guan:

“Magia oriental, artes marciais e mitologia são mais atraentes para o público ocidental. Para quem é de fora, parece que é o oriente misterioso, coisa que atiça a curiosidade. Você não precisa saber nada sobre a história”

Não é segredo que a China barra redes sociais, séries e filmes caso isso não se alinhe aos interesses de divulgação da cultura exterior pelo país. Crash Landing on You, a coreana citada anteriormente, foi excessão. A hashtag promovendo a conclusão da série teve 460 milhões de interações no Weibo (o “Twitter” deles).

Em contrapartida, uma das alunas de Miao, que tem mais de 20 anos de idade, gosta da inocência das novelas chinesas. Há grande disparidade entre produções americanas, pois o casal se gosta sem ser muito expressivo, e essa “fofura” é levada ao longo da temporada inteira. Assim como nas séries da Coreia, os romances chineses também conquistam por conta de seus protagonistas atraentes e pela música, que cria uma estética singular.

Fato é que doramas estão em constante produção e alteração pela Netflix, que até chamou doramas de “tendência” em um material divulgado em março. Independente do gênero e do país, certamente há uma forte concorrente para ser maratonada por você no próximo final de semana.