Bagagem emocional, projeção astral e arquétipos são termos que estão no dicionário de quem joga Psychonauts. Conversamos com um psicólogo e uma psicanalista para entender o que tudo isso realmente significa.
Lançado em 2005, o primeiro Psychonauts fez sucesso com a crítica especializada e desempenhou bem no boca a boca. Mas tudo isso não aconteceu logo de cara. O jogo é um daqueles casos típicos da indústria dos games cujas vendas estacionaram de início: o game demorou uma década para ser visto como um verdadeiro sucesso e vender mais de 1 milhão de cópias (na versão de PC). Por conta disso, sua sequência levou mais de 15 anos para acontecer – mas ela finalmente saiu.
Psychonauts 2, jogo lançado em setembro de 2021, dá sequência à história do jovem Razputin Aquato (apelidado de Raz), em sua jornada lidando com elementos psíquicos, poderes sobrenaturais e uma trama de investigações. Ambos os jogos exibem situações do cotidiano representadas de forma concreta, com metáforas e outros impasses bem típicos do “nosso” mundo real. Para interpretar os principais conceitos do game, conversamos com um psicólogo e uma psicanalista.
Marcelo Alves dos Santos, psicólogo e professor da Universidade Mackenzie de Campinas, diz em entrevista ao Bitniks que o jogador de Psychonauts pode “transpor [para o game] parte do que ele não conseguiria [fazer] na vida”. Os eventos diversos e obstáculos, afinal, têm capacidade de empoderar o jogador.
“O jogo desmistifica doenças mentais, tirando um pouco do estereótipo do ‘doente mental’. Ao mesmo tempo, traz uma ilustração em que a pessoa enfrenta os seus medos e faz com que ela se envolva com aquilo de maneira corajosa.”
Marcelo Alves dos Santos
Conversamos também com Ràckél Samtos, terapeuta e psicanalista transpessoal, que se convenceu a dar atenção ao poder dos videogames após ser introduzida à beleza de jogos recentes, como Ghost of Tsushima.
“Achei incrível a dinâmica apresentada nesse Psychonauts. Pode trazer, para os jogadores, um universo gigante dentro de alguns processos existenciais a serem aprendidos.”
Ràckél Samtos
Um dos itens colecionáveis nos mapas de Psychonauts e Psychonauts 2 é a bagagem emocional. O objetivo nos games é coletar etiquetas perdidas pelas malas e levar até a sua correspondente. Para encontrar as bagagens basta seguir o constante choro dos objetos — isso que é levar a palavra “emocional” ao pé da letra.
As bagagens mudam de tamanho e forma, e podem comportar vários itens. Com isso, pode-se fazer uma analogia bem direta à memória afetiva. “É comum carregarmos essa memória com eventos ou fatos que acontecem ao longo da vida. Quanto mais impactante, mais gravado ele ficará”, esclarece o professor.
Não é por isso que necessariamente todas as malas deveriam ser carregadas. “Algumas são bem-vindas, como nascimento de alguém. Outras destas ‘malas’, não tanto, como em acidentes ou traumas”, prossegue Santos.
“O sentimento passa por uma racionalização. A emoção, nem sempre. Podemos ser instigados por nosso meio, por exemplo, para fazer um movimento que todos fazem”, Rackel explica ao lembrar também de ocasiões como a Black Friday. “Quando uma pessoa não tem conteúdo interno para a bagagem emocional ser equilibrada, ela compra coisas mesmo que esteja cheia de dívidas.”
Os cofres de memória são criaturas (que parecem cachorros) encontradas dentro da mente, correndo de Raz em sua exploração e sendo difíceis de capturar e abrir. Dentro deles há memórias que podem ser reais ou fabricadas, boas ou ruins. Do ponto de vista interpretativo, são similares às memórias afetivas das bagagens emocionais. Para memórias boas, você sempre tem acesso.
Porém, como Marcelo conta, o evento pode ser apagado da memória no caso de traumas graves. “É como se você jogasse a memória para um cofre. Você pode saber que há uma combinação, mas você não sabe exatamente qual é”. A terapia poderia ajudar a “encontrar a combinação” quando for necessário acessar esse cofre.
Uma das bases para o jogo funcionar é a projeção astral — quando, na teoria, o físico e o mental se separam. Este poder psíquico permite que você entre na mente de outra pessoa. A projeção é representada como uma cópia do corpo físico (neste caso, de Raz) e explora-se todo o mundo mental daquela pessoa. No primeiro jogo, isso é utilizado como ambiente seguro para treinar poderes psíquicos; no segundo, serve mais como forma de obter informações.
“A grosso modo, a projeção astral é usada para você se conectar com uma consciência mais elevada, dentro do que se propõe a técnica”, define a psicanalista.
Vale aqui um disclaimer: ainda que seja estudada por psicólogos e psicanalistas, experiências de projeção astral não são reconhecidas do ponto de vista científico.
Por meio de uma projeção mental, Raz pode criar o Arquétipo, figura desenhada em uma folha de papel (escala 1:1) que o auxilia a passar por barreiras estreitas. O Arquétipo literalmente abre portas e te ajuda a prosseguir. Em nossa conversa, Marcelo comenta que essa ideia é totalmente derivada de Carl Jung, o pai da psicologia analítica.
“O fato de fazer um autorretrato (uma representação de si mesmo) é uma projeção de como você se vê. Os arquétipos são usados na psicologia jungiana para fazer uma análise da personalidade e dos conflitos que uma pessoa pode enfrentar”, explica ele.
Como Jung elaborou, há o rebelde, criador, herói, cuidador, inocente, entre outros. Ràckél conta que, na visão transpessoal (a mais amplificada do ser humano), há uma ligação com vários destes arquétipos. “Nos relacionamos mais com um ou outro, de acordo com aquilo que traz de crenças e da maneira que fomos educados”.
Desenhar a si mesmo criando um arquétipo poderia ajudar, dentro da visão da especialista, a encontrar as subpartes internas – ou seja, no autodescobrimento. “O problema é que, muitas vezes, as pessoas acabam ficando muito no tripé do orgulho, vaidade e arrogância. Elas podem se colocar em um arquétipo daquilo que elas gostariam. Já o arquétipo do fora-da-lei ninguém quer ser”, explica a terapeuta.
Certos inimigos dispensam explicações. Já outros são mais complexos. O Arrependimento (criatura voadora que carrega pesos de aço) e o Julgamento (juiz com um malhete gigante) seriam dois dos mais descomplicados — ambos aparecem pela primeira vez em Psychonauts 2.
Em múltiplos mundos encontramos as Dúvidas, criaturas pequenas, gosmentas e difíceis de derrotar. “A dúvida está pautada na necessidade de garantia que queremos de nunca errar. E isso é impossível”, Rackel diz. “Isso acontece com quem também tem muita insegurança pessoal”, conclui.
Já o Mau Humor foi mais bem concebido pelos criadores do game. O inimigo dificulta a visão de Raz com uma nuvem escura – na prática, a tela da televisão fica quase toda preta. Os rabiscos de sua formação remetem ao caos, incômodo e más energias. Para derrotá-lo devemos usar o poder de clarividência para ter seu ponto de vista e descobrir qual objeto está causando sua existência, destruindo-o.
“Quando procuramos uma forma de matar o inimigo — e, geralmente para conseguir isso você busca a raiz do problema –, você faz nada menos que um processo análogo à terapia”, conta Marcelo.
Um dos inimigos mais irritantes, desde o primeiro game, é o Censor. O repulsivo homem engravatado funciona como mecanismo de defesa às mentes, como a autocensura. “Na vida real, temos isso dentro do repertório de valores que carregamos. (…) A censura parte da socialização que a gente recebe, principalmente da primária: a socialização em casa, com nossos valores”, Marcelo conta.
A criação dos valores compõem sua personalidade, segundo ele, sendo “regulatórios ao seu comportamento; é necessário para que você, diante de uma situação, avalie o que será bom para si”.
Psychonauts 2 está disponível para PC, PlayStation 4, Xbox One e Xbox Series X/S (também via Game Pass).