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O que muda com a aprovação do Marco Legal das Startups?

Marco Legal das Startups

O Brasil deve ganhar uma nova legislação para startups em breve. O chamado Marco Legal das Startups passou pela Câmara e foi aprovado pelo Senado no fim de fevereiro. Com as mudanças no texto, o projeto precisa passar novamente pela Câmara. A nova lei promete destravar investimentos em empresas inovadoras e facilitar a contratação dessas companhias tanto pelo setor privado quanto pelo setor público.

“O Marco Legal vem para facilitar, destravar e incentivar os investimentos em empresas voltadas para inovação”, diz Helder Fonseca, advogado especialista em mercado de startups do escritório GVM Advogados. “Todo o arcabouço jurídico vem no sentido de proteger a startup de um lado e proteger o investidor de outro lado, além de facilitar a busca de negócios.”

Para atingir esse fim, o Marco Legal define o que são startups, cria parâmetros para o investimento em empresas desse tipo e facilita a contratação dessas companhias por governos.

Tem anjos investindo nesta startup

Segundo o texto, startup é uma empresa que trabalha com um produto ou serviço inovador, tem faturamento anual de até R$ 16 milhões e tem CNPJ aberto há menos de dez anos. 

Outra novidade é que o texto define que o investidor — seja ele um investidor-anjo (pessoa que faz um aporte de capital em uma empresa de risco) ou uma empresa de seed capital ou venture capital — não precisa se tornar sócio da empresa. “Até então, qualquer investidor anjo que aportasse capital no novo negócio poderia ser responsabilizado legalmente por questões como processos trabalhistas ou falência do negócio”, explica Marcelo Nicolau, diretor da Play Studio, consultoria de inovação e venture builder.

Até então, essas definições eram feitas de forma “contratual e artesanal”, comenta Fonseca. “Muitas vezes, a questão virava uma negociação que inviabilizava o investimento. O Marco Legal das Startups, principalmente nesse ponto do investimento, já traz um desentrave, com regras mais claras.” Com a nova lei, essas negociações prometem ser mais ágeis. “Para nós, assessores legais, o trabalho fica muito mais fácil, porque a gente já chega com uma receita ‘pronta’ tanto para a startup quanto para o investidor.”

Apesar disso, o Marco Legal também prevê que o investidor pode ou não participar das decisões da empresa, desde que não seja sócio-controlador — isto é, o que manda. “Por vezes, o fundador não quer ninguém dando pitaco na empresa. Por vezes, ele quer que o investidor participe das reuniões do conselho, de estratégia, por ter uma visão de produto e de mercado diferente”, explica Fonseca. “O que vai definir de um lado e de outro é a expectativa de cada uma das partes.”

Stock options fora do projeto

Uma das novidades do projeto está, por enquanto, descartada: a regulamentação do pagamento com stock options, como são chamadas as opções de compra de ações da empresa. Durante a discussão do Marco Legal das Startups na Câmara dos Deputados, partidos de esquerda votaram contra o projeto por não concordar com essa parte do texto, alegando que ela daria margem para enfraquecer relações trabalhistas. No Senado Federal, a regulamentação das stock options acabou sendo removida, e o projeto foi aprovado por unanimidade. O entendimento foi de que a questão precisa de uma regulamentação específica.

“Hoje, a grande discussão em torno das stock options é: elas têm natureza trabalhista ou não? A resposta vai levar a discussão de qual a natureza tributária”, explica o advogado Fonseca. “Se é uma remuneração pelo trabalho, e a tributação é uma; se é um ganho de um bem que só será tributado quando o colaborador vender aquela participação e obtiver ganho de capital.”

A exclusão do ponto do texto é lamentada por Nicolau. “O uso das stock options permite que startups que não têm muitos recursos tragam profissionais mais qualificados ao conseguir pagá-los com as próprias ações”, explica o diretor da Play Studio. “O instrumento é uma forma não só de atrair talentos, mas também de criar maior engajamento, uma vez que os funcionários também se remuneram com o crescimento da empresa.”

Fonseca discorda da visão de que as stock options poderiam ser usadas para enfraquecer relações trabalhistas. “Por ser um direito, o colaborador pode aceitar ou não. O fundador, para conceder um pedaço da sua empresa, que ele cultivou, viu crescer e tudo mais, para alguém, tem que ter uma contrapartida de porque esse colaborador vai receber esse pedaço. Ninguém dá nada de graça.”

Apesar de o texto ter voltado para a Câmara por ter sofrido alterações no Senado, o advogado não acredita que a questão será novamente incluída. “O Congresso é formado muito por consensos. Eu acho difícil a Câmara tentar reinserir o tema no projeto, porque iria atrasar ainda mais a aprovação.”

Contratação pelo setor público também será facilitada

Outra novidade relevante do Marco Legal das Startups é facilitar a contratação de empresas desse tipo pelo setor público. Como explica Rodolfo Fiori, especialista em gestão pública e cofundador da startup de govtech Gove, as empresas de inovação têm muitas dificuldades na hora de vender para governos. 

Muitas vezes, o gestor público desconhece a fundo as soluções disponíveis para poder abrir uma licitação, e a lei impede que as empresas colaborem com o setor público na elaboração do chamado termo de referência. “É diferente de um município comprar um copo, uma caneta, uma cadeira, uma ambulância”, diz Fiori.

Mesmo se o gestor conseguir estudar o tema e escrever sozinho o termo de referência, as dificuldades não param por aí. Ele vai precisar de três referências de preço para a licitação, mas muitas vezes, não há empresas comparáveis com soluções inovadoras. Outra opção é fazer a chamada dispensa de licitação, que corre risco de encontrar resistência de órgãos de fiscalização. 

“Startup hoje não consegue vender para o governo. Tem pouco caixa, o fluxo de venda é lento. O mercado de govtechs no Brasil é quase inexistente”, relata Fiori. “Tem municípios que compram, mas esse processo é ultra sofrido. Na média, os municípios abandonam.

Com o Marco Legal, a promessa é que essa situação mude. O setor público poderá apresentar seus problemas e permitir que as startups tragam possíveis soluções. Pode, inclusive, haver um período de teste antes da contratação definitiva. A limitação, porém, fica por conta do valor: até R$ 1,6 milhão. Fiori, porém, acredita que isso não será problema. 

“O preço de até R$ 1,6 milhão deve abarcar mais de 90% das soluções de startups. Eu não conheço startup brasileira que venda para governo que tenha um preço nem próximo disso. Para coisas mais complexas, que vão custar muito mais caro, já existem outras leis, como a de encomenda tecnológica. Se você vai contratar alguma coisa que vai custar mais do que isso, é ok que seja mais lento.”

Outro ponto importante é que pode haver uma antecipação do pagamento às startups. Isso é um diferencial relevante, já que empresas deste tipo costumam não ter um caixa muito grande para arcar com os projetos e esperar o pagamento depois da conclusão do serviço.

Impactos para além do setor

Tanto mercado quanto setor público devem colher os frutos dessa regulamentação mais moderna, quando ela finalmente estiver mais aprovada. E nós, consumidores, também veremos mudanças.

Fiori apresenta três pontos que têm a ganhar com o uso de startups por governos: a digitalização de serviços, o engajamento cidadão e a melhoria no processo de tomadas de decisão. “Hoje, o gestor público muitas vezes toma decisões com base em papéis, em sentimento, com quase nada de informação de qualidade.”

Os benefícios serão sentidos também pelos consumidores, aponta Fonseca. Ele acredita que destravar investimentos levará a produtos com preço menor. “O ganho é em escala, com queda nos preços. Isso é fruto de um ambiente bem regulado, com menos risco para o investidor. Quanto menos risco para o investidor, mais disposto ele fica a botar dinheiro para fazer o negócio ir para frente”, explica o advogado.

Nicolau concorda. “Esta é a grande contribuição das startups: tornar o consumidor o centro econômico. Com o marco legal que vai viabilizar mais investimentos para startups, novas soluções que nem imaginamos ainda devem surgir e o consumidor será em última instância o maior beneficiado.”

O futuro é brilhante, mas não muito

O Marco Legal das Startups traz novidades importantes, mas não vai resolver tudo do setor. Burocracia, impostos, falta de mão de obra especializada e ambiente econômico desfavorável ainda vão jogar contra a inovação no Brasil.

“Primeiramente, a burocracia para abrir uma empresa é grande e, por esse motivo, muitas startups acabam iniciando na informalidade”, diz Nicolau. “Para se ter uma ideia, o Brasil caiu 15 posições no Doing Business 2020, ranking do Banco Mundial que analisa o ambiente regulatório e a facilidade para fazer negócios, da 109.º para a 124.ª colocação.”

“A carga tributária encarece o produto final. Ao encarecer o produto final, você dificulta o acesso pela população, ou você dificulta o crescimento de uma empresa em escala, que ia gerar mais riqueza”, comenta Fonseca. “A discussão do Marco Legal poderia vir com uma discussão de tributação, que poderia ser mais progressiva. Assim, o dinheiro reservado para tributos poderia ser alocado em novos investimentos.”

Contratar pessoas para tirar do papel também é uma dificuldade, de acordo com Nicolau. “Um outro fator é a escassez de mão de obra especializada em tecnologia, o que encarece também a contratação de programadores”

O diretor da Play Studio também ressalta que a economia brasileira, que não apresenta crescimento forte há anos, também atrapalha. “Há algum tempo nossa economia encontra-se estagnada. Após a crise dos anos de 2015 e 2016, em que houve uma forte retração do PIB, registramos um pífio crescimento anual, em torno de 1% e, em 2020, voltamos a registrar queda forte da economia, provocada por fator externo (pandemia). A ausência de crescimento econômico e o ambiente pouco favorável inibem o empreendedorismo.”