O governo aprovou a lei de govtech, ou do governo digital. O que muda com ela?
Se você já precisou ir até um órgão público para realizar algum serviço, provavelmente deve ter se perguntado se aquilo era realmente necessário — afinal, é possível fazer quase tudo pela internet: de compras de supermercado a abrir conta em banco. A pandemia também escancarou essa necessidade: em tempos de restrições para evitar o espalhamento do coronavírus, como fazer para ser atendido? A Lei 14.129 pode ser um primeiro passo nessa direção.
Também conhecida como Lei do Governo Digital, ela foi sancionada no dia 29 de março de 2021 e define instruções e regras para a prestação de serviços públicos digitais. Além disso, o texto define os prazos de 90 dias para o Governo Federal adotar a lei, 120 para estados e Distrito Federal e 180 para municípios.
“Essa lei cria uma prioridade para existirem serviços digitais”, explica Christian Perrone, coordenador da área de Direito e Tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio).
A lei cria a exigência de que esses serviços existam e a instrução de que eles prezem pelo autosserviço — isto é, a operação feita completamente pelo próprio cidadão, sem necessidade de um funcionário. Além disso, o texto também aborda a necessidade de linguagem acessível e facilidade de uso.
Para Perrone, o Brasil está em uma posição intermediária em relação a outros países no que diz respeito à existência de um governo digital — nem na vanguarda, nem atrasado. O pesquisador, porém, destaca que muitas das iniciativas são apenas a digitalização de processos já existentes e não serviços criados do zero pensando no digital.
“A lei cria diretrizes e contornos das iniciativas que os diferentes entes e poderes da administração pública devem se engajar para promover a digitalização, transparência, desburocratização e envolvimento dos cidadãos e empresas na prestação de serviços no setor público”, explica Rodolfo Fiori, especialista em políticas públicas e cofundador da startup Gove.
Tudo isso parece muito bonito, mas sabemos que a prática é diferente dos discursos. Daí, vem a pergunta inevitável: o que vai mudar para nós, cidadãos, que usamos serviços públicos?
“A expectativa é que a Lei de Governo Digital venha a tornar os serviços públicos mais céleres e desburocratizados a partir da sua disponibilização em ambiente online”, diz Thaís Covolato, da Câmara Brasileira de Economia Digital.
Fiori, da Gove, diz que podemos esperar “melhoria na transparência, acesso e qualidade dos serviços públicos a partir das adequações dos órgãos públicos conforme a nova lei”.
Perrone, por sua vez, alerta que muito ainda vai depender da implementação. “Será que vamos ter serviços digitais acessíveis ou eles vão ser burocráticos, bizantinos, complexos? Vamos ter serviços digital first ou apenas uma digitalização de processos já existentes?”
A definição de que municípios também precisarão seguir a nova lei, ainda que com mais tempo para se adaptar, também gera alguma apreensão. O Brasil tem atualmente 5.570 municípios, sendo 3.797 deles com até 20 mil habitantes. Essas prefeituras de cidades pequenas terão condições de se digitalizar?
“Os municípios, de maneira geral, terão muita dificuldade na implementação das diretrizes dadas pela nova lei. Por exemplo, se observarmos uma federação mais ou menos parecida com a nossa, os EUA, um CTO (Chief Technology Officer) municipal é um cargo presente e muito importante na maioria dos governos locais”, comenta Fiori. “No Brasil, diferentemente, estas lideranças quase inexistem nas cidades, em especial as pequenas e médias. Precisamos ter lideranças e servidores na administração pública municipal capazes de entender os desafios e soluções que um governo digital impõe.”
Perrone lembra também que a lei de licitações ainda é muito engessada e dificulta as contratações, já que exige que o gestor público defina parâmetros que, às vezes, não são bem conhecidos. “Dificilmente a gente tem corpo técnico em todos os níveis do Estado para desenvolver esses parâmetros. Talvez a União consiga, mas um município pequeno, não.” Mesmo assim, ele acredita que a digitalização pode ser uma oportunidade para o Estado ganhar eficiência, reduzir custos e liberar pessoal para outras tarefas.
A digitalização de serviços públicos pode deixar muita gente animada, ou pelo menos, menos desanimada na hora de lidar com burocracias. Quem acompanhou os primeiros meses do noticiário de tecnologia em 2021, porém, pode ficar preocupado: foram muitos vazamentos de dados, incluindo um gigantesco, com mais de 200 milhões de CPFs.
Perrone destaca que o Brasil já conta com uma Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que “conversa” em muitos momentos com a Lei do Governo Digital. A LGPD, aliás, é aplicável em grande parte dos serviços digitais.
O pesquisador, porém, diz que o problema é a implementação. “Quando você faz isso [unifica todos os dados em uma só base], você coloca um alvo vermelho nela.”
Covolato, da Câmara Brasileira de Economia Digital, também comenta esse aspecto. “As boas práticas defendem a descentralização das bases de dados, com comunicação ou interação entre elas apenas se respeitadas as delimitações da finalidade legal do uso desses dados pelo ente público.”
Outro ponto importante da lei é que ela define CPF e CNPJ como identificadores únicos para diversos serviços — o CPF vai passar a constar em vários documentos emitidos a partir de agora. “Em si, isso não é um problema, mas traz uma série de riscos”, diz Perrone. “Quando você pega um numerozinho e consegue ter acesso a todas as informações de uma pessoa, você tem uma quantidade exponencial de dados que pode obter a partir daí.”
Já Fiori não acredita que o uso do CPF e do CNPJ como identificadores únicos venha a ser um problema. “Temos uma lei geral de proteção de dados moderna que, se implementada juntamente com iniciativas de melhoria de segurança cibernética, provavelmente colocará o governo num caminho de garantir segurança e privacidade das informações de cidadãos e empresas.”
Para Perrone, o uso de CPF e CNPJ como números fixos é uma mostra do desafio de lidar com tecnologias legadas dos serviços analógicos. Ele explica que esses documentos poderiam ser substituídos por um token dinâmico. Assim, os cidadãos e as empresas conseguiriam se identificar nos sistemas sem a necessidade de recadastrar o mesmo número em múltiplas bases de dados.
Por mais que os serviços digitais sejam o futuro e um desejo de grande parte da população, não podemos ignorar que o Brasil é um país muito desigual. Segundo dados da última pesquisa TIC Domicílios, de 2019, 20% da população nunca acessou a internet. Felizmente, a Lei de Governo Digital não esquece desse ponto. “Ela cria uma obrigação do Estado de manter outros mecanismos que não sejam digitais”, diz Perrone, do ITS Rio.
“Governos devem se preparar para identificar e corrigir este tipo de desigualdade no acesso, não somente relacionado à disponibilidade de aparelhos ou cobertura de internet, mas também à capacidade do cidadão de entender o serviço oferecido no meio digital”, diz Fiori. Ele lembra que, em muitos casos, o funcionário que atende o cidadão não apenas operacionaliza o serviço, mas também instrui a pessoa em relação ao que deve ser feito naquele órgão e em outros. “Nos meios digitais, este contato humano e possibilidade de adequar a comunicação ao perfil do cidadão pode ser perdida, por isto é muito importante que governos estejam atentos a isto para implementar a lei de uma maneira que funcione para todas as pessoas, sem aumento de desigualdades.”