Ciência

Crianças deveriam ser atletas de alto rendimento?

Especialistas levantam questões importantes sobre a saúde de jovens atletas e a importância de respeitar limites

6 de agosto de 2021

Quando eu era pequena, queria ser jogadora de futebol. Não qualquer uma. Queria vestir a camisa da seleção e representar o Brasil. Joguei futebol na rua, em quadra de barro, na escola, nos ginásios, disputei campeonatos. Até que fui convidada para jogar no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa Marechal Mário Ary Pires (COTP), em São Paulo. Eu tinha apenas 14 anos quando isso aconteceu. 

Num breve momento, me vi conciliando treino, escola, adolescência, família, amigos, treino, mais treino e treino de novo. Eu precisava ser boa, queria ser a melhor. Num infeliz incidente, quebrei a perna. Meu objeto de trabalho – ou lazer – o que me sustentava, o que me fazia alcançar o meu objetivo: o gol. Gesso durante três meses e para voltar a jogar, teria que fazer fisioterapia. Não fiz. E com essa decisão, morreu um sonho.

Eu desisti, mas muitas crianças e adolescentes encaram o esporte como um modelo de vida, não só aquilo que dá prazer. Querem fazer disso seus trabalhos, suas conquistas, seus futuros.

Essa linha entre lazer e trabalho é tão tênue que precisa ser dosada, acompanhada e respeitada. Afinal, até onde o esporte para crianças é lazer e até onde é trabalho?

Rayssa Leal, a “Fadinha” do skate, medalhista Olímpica aos 13 anos – a mais nova do Brasil – conquistou o mundo. A atleta que nasceu em 2008, já foi notada quando tinha seis anos por ninguém mais ninguém menos que Tony Hawk, um dos maiores ídolos desse esporte. Com a conquista da prata nas Olimpíadas de Tóquio (2020), uma série de entrevistas, patrocínios e até mesmo comercial da Nike, a Fadinha ‘dominou’ tudo. 

Mas ela também levantou debates. Será que é possível manter uma distância entre obrigação e lazer no esporte? Para o Presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte e autor de cinco livros sobre psicologia esportiva, João Ricardo Cozac, “não há uma fórmula mágica, cada caso é um caso”. 

Em entrevista ao Bitniks, Cozac disse que antes de ser atleta, a criança precisa ser criança. “Ela precisa ter prazer na prática esportiva, fazer amigos, ampliar o autoconhecimento, frequentar a escola, ter apoio dos familiares e partir desse ponto para um desenvolvimento saudável”. 

Foi exatamente esse ponto que fez diferença na vida do jogador de futebol Gustavo Sant’ana, brasileiro de 26 anos, que atualmente joga no Quang Ninh, no Vietnã. “Perdi muitos momentos da minha infância e adolescência. Eu precisava ter uma rotina regrada, não podia dormir tarde, muitas vezes precisava me alimentar bem e aos finais de semana, quando havia encontros familiares ou com amigos, eu estava sempre ocupado por conta dos jogos”, disse ao Bitniks

Sant’ana é hoje o que eu sonhei em ser, e o que muitas crianças ainda sonham. Quando iniciou no futebol, tinha apenas 11 anos. Ele conta que aos 13, já jogava nas categorias de base do São Paulo Futebol Clube e, aos 15, recebia algum tipo de salário pela prática do esporte. Foi nesse momento que, segundo o jogador, ele percebeu que ‘havia muitas cobranças, treinos diários e que o esporte deixou de ser lazer e virou profissão’. 

Esse debate de ‘trabalho infantil” foi levantando quando o Deputado Federal Sóstene publicou em sua rece social um comentário sobre a vitória de Rayssa:

“As crianças brasileiras de 13 anos não podem trabalhar, mas a skatista Rayssa Leal ganhou a medalha de prata nas Olimpíadas… Ué! É pra pensar… Parabéns a nossa medalhista olímpica! E revisão do Estatuto da Criança e Adolescente já!” 

“Eu não entendo como trabalho infantil você treinar uma criança com o objetivo de que ela se torne um atleta. Seria exploração infantil se a família dependesse disso”, disse por mensagem, o treinador e coordenador da Ginástica Artística do COTP, Caio Guilherme. 

O treinador explica que alguns atletas recebem dinheiro do programa ‘Bolsa Atleta’, e nesse momento eles podem comprar um celular, uma roupa ou comer um lanche, mas não sustentar a família. “É lógico que eles têm que levar a sério, porque aqui o nosso foco é o alto rendimento. Não vou dizer para você que nosso treinamento é recreativo 100% do tempo, mas também não vou dizer que é um trabalho e que há uma cobrança exacerbada 100% do tempo”, disse. 

“Eu não entendo o termo ‘trabalho infantil’ no caso do esporte” 

Cozac disse que “muitas vezes as próprias famílias têm um desejo muito grande que os filhos sejam grandes atletas e vencedores, e às vezes a criança nem ao certo sabe definir qual esporte ela deseja praticar”. Para o psicólogo, o esporte de alto rendimento, em alguns casos, acaba restringindo muito a criança quando o que ela mais precisa, naquele momento, é ampliação.

Esporte e educação

De acordo com o capítulo V,  Art. 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente. “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. (Vide Constituição Federal)”. O mesmo estatuto assegura o direito à prática desportiva e à educação. 

Segundo Caio Guilherme, a educação é um dos pré-requisitos para os atletas permanecerem no COTP. “Aqui no Centro Olímpico só pode treinar a criança que estiver estudando. O que eu falo para as crianças é que aqui também é uma escola, só que aqui é uma escola de ginástica”. 

Sant’ana disse que conseguiu conciliar bem. “Meus pais sempre me incentivaram no futebol, mas me incentivaram principalmente a estudar. Ao contrário de alguns jogadores, tive sorte de trabalhar em times próximos de onde eu morava (dentro de SP), isso facilitou para eu concluir meus estudos, não perdi nenhum ano e fui além do que muitos colegas de profissão, consegui até mesmo concluir o ensino superior. Mas essa não é a realidade da maioria.”

Cozac, contudo, alerta para o desenvolvimento infantil. De acordo com o psicólogo, “se você delega uma criança ao universo do alto desempenho sem oferecer a ela o ambiente, as atividades e tudo que ela precisa para se desenvolver antes de ser atleta, enquanto um ser humano de forma saudável, você está expondo a criança a um lugar que ela não terá possibilidades internas para se sustentar dentro do ambiente esportivo”. 

O debate também é quente no meio jurídico. Luísa Carvalho Rodrigues, coordenadora do Grupo de Trabalho Atletas Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (PR), disse no programa MP na rádio que o esporte pode ser educacional, pode ser de formação, de participação e de rendimento, mas que, dependendo da forma como se manifesta e é praticado, pode ser sim uma situação de trabalho. “Quando o esporte perde o caráter educacional, lúdico e de diversão, ele passa a ter como propósito apenas um alto rendimento, pode se configurar um trabalho. A partir disso, uma legislação trabalhista de idade mínima, de direitos, deve ser respeitada”.

O psicológico dos jovens atletas

Um grave acidente com uma skatista de 12 anos, em 2020, levantou um debate sobre idade mínima para a prática da modalidade. Na ocasião, a atleta sofreu várias fraturas no crânio, estômago, pulmão e braços. Bia Sodré, skatista e especialista em jogos Olímpicos disse para O Globo, que “o skate não tem idade, quando a gente tá ali andando, fica muito de igual pra igual, sabe? É da cultura do skate isso, não importa muito no final”. 

Hoje, para disputar a ginástica nas Olimpíadas,por exemplo, as meninas precisam ter 16 anos e os meninos 18. “Isso sim você pode considerar um pouco precoce”, disse Caio Guilherme. Ele pontua que no Centro Olímpico não costuma fazer essa especialização precoce, mas sim com a ginástica voltada para alto nível. As ginastas mirins chegam ao COTP aos 6 anos, e os meninos aos 7.

Apesar disso, Cozac destaca a importância de tratar a criança como tal. “Muitas vezes elas têm sinais de alerta como oscilação de humor, alternância alimentar, insônia, agressividade, reações psicossomáticas; sudorese taquicardia, dor de estômago”. De acordo com o psicólogo, esses sintomas clássicos da proximidade com a síndrome do burnout infantil. “Isso acaba denunciando falhas muito grandes no processo da formação esportiva de jovens”, explicou. “Tudo é uma questão de equilíbrio”, defende.

Essa pressão psicológica foi o que levou a desistência da ginasta Simone Biles, na competição dos jogos Olímpicos de 2020. Embora o episódio tenha acontecido com ela adulta, Biles carrega o fardo desder criança. Em 2013, aos 16 anos, foi campeã mundial de ginástica artística ,e desde então, colecionou uma sequência de vitórias, tornando-se um dos maiores nomes desse esporte. 

E o corpo?

Do ponto de vista físico, a Federação Internacional de Medicina Esportiva (FIMS) publicou um artigo alertando sobre o treinamento excessivo em crianças e adolescentes. Os especialistas pontuam a importância da atividade física na infância para estimular que haja um crescimento normal. Apesar disso, destacam que a atividade em excesso pode prejudicar tanto o sistema esquelético da criança, aumentar o número de lesões ou até mesmo, em algumas atividades, a elevação da pressão arterial. Os autores escreveram:

Por muitas razões que serão apresentadas, esse treinamento intensificado não tem justificativa fisiológica nem educacional. Ademais, leva com freqüência a um estresse físico e mental extremamente grande durante o treinamento e a competição.”

A endocrinologista infantil, Daniela Takamune, falou por mensagem que a prática de atividade física competitiva por atletas de elite, caso seja associada a uma dieta sem a quantidade adequada de macro e micronutrientes, pode prejudicar o crescimento da criança, a mineralização óssea e também pode levar a um atraso da puberdade.

Apesar disso, ela destaca todos os benefícios que a atividade física lúdica pode trazer à formação desses jovens. “É muito importante para o desenvolvimento da socialização da criança e da capacidade de trabalhar em equipe. Além disso, o exercício ajuda no ganho da massa óssea e muscular, na prevenção da obesidade e do diabetes, no controle do colesterol e da pressão”.

Ainda assim, alerta que “a musculação em excesso, praticada por crianças e adolescentes pode ser prejudicial, se não for realizada sob supervisão, já que há um potencial risco de lesão na cartilagem de crescimento”.

Questionado sobre os cuidados físicos dos atletas, Caio Guilherme disse que no COTP existe uma equipe multidisciplinar, desde médicos, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, treinadores para trabalhar em conjunto visando a saúde do atleta. “Qualquer sinal de que algo não vai bem, a gente já começa a se reunir e trabalha para ajustar o que precisa ser ajustado”. 

Por isso, a FIMS recomenda uma série de precauções antes de submeter as crianças ao esporte de alto rendimento:

  1. Realizar um exame clínico antes das competições;
  2. O treinador deve fazer a função de pedagogo e entender funções sociais, físicas e psicológicas dos atletas;
  3. Submeter as crianças a diversas atividades para assegurar que elas possam identificar os esportes que melhor se adaptam às suas necessidades;
  4. Em esportes de contato, avaliar as condições, dimensões corporais, sexo e não apenas idade;
  5. O levantamento de pesos e o halterofilismo não devem ser recomendados antes do fim da puberdade, entre outras instruções.