A corrida das vacinas contra Covid-19 está longe de acabar com o lançamento dos primeiros imunizantes. Laboratórios continuam evoluindo.
Entre março e dezembro de 2020, vimos a pandemia mudar nossas vidas, mas também presenciamos uma façanha impressionante da ciência: o desenvolvimento e a aprovação em tempo recorde de vacinas seguras e eficazes contra a Covid-19. O imunizante desenvolvido pela Pfizer e pela BioNTech cruzou a linha de chegada primeiro, com algumas fórmulas vindo logo atrás. Além dela, a Organização Mundial da Saúde já aprovou outras cinco vacinas: a da Moderna, a da AstraZeneca/Oxford, a da Janssen, a CoronaVac e a da Sinopharm.
Mas a corrida não acabou, e um pelotão está atrás: segundo o monitor de vacinas do jornal The New York Times, mais de cem fórmulas estão em testes de fase 1, 2 ou 3. Uma delas ganhou as manchetes do Brasil recentemente: a ButanVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com o Instituto de Vacinas e Biologia Médica do Vietnã e a Organização Farmacêutica Governamental da Tailândia. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária já autorizou o início dos testes de fase 1.
A ButanVac não é a única: ao todo, 17 imunizantes estão em desenvolvimento com o apoio de instituições brasileiras. Uma delas é a Versamune, desenvolvida pela startup Farmacore Biotecnologia em parceria com o laboratório americano PDS Biotechnology e com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
Luiz Gustavo de Almeida, doutor em microbiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e membro do Instituto Questão de Ciência, considera que ainda há muitos motivos para continuar desenvolvendo imunizantes contra a Covid-19. “As primeiras vacinas foram desenvolvidas com o objetivo emergencial de diminuir casos graves e mortes”, diz o cientista. Ele acrescenta que novas podem tentar também bloquear a transmissão do coronavírus.
Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), comenta que ainda há outros motivos para desenvolver vacinas, como menor custo, processos mais simples e menor número de doses.
Além de uma maior eficácia na contenção da pandemia, ainda há a questão de superar a escassez de doses, já que as vacinas atuais são produzidas por poucas empresas, destaca Almeida. Atualmente, o mundo ainda enfrenta grandes gargalos na produção de vacinas, e países pobres vacinaram parcelas muito pequenas de suas populações adultas.
Almeida destaca que a ButanVac, caso funcione, poderá ser fabricada nacionalmente de modo bastante barato e com processos mais simples, sem depender de insumos importados, já que usa técnica semelhante à da vacina da gripe: ovos de galinha são inoculados para produzir os vírus da doença de Newcastle — que causam sintomas nas aves, mas não nos humanos — que carregam a proteína spike do Sars-CoV-2. Essa tecnologia foi desenvolvida por cientistas na Icahn School of Medicine no Mount Sinai, em Nova York.
Helena Faccioli, CEO da Farmacore Biotecnologia, diz que, além de um preço menor, um imunizante nacional poderia trazer melhorias na logística e na distribuição, permitindo que o País alcance uma cobertura vacinal maior em menos tempo. A ideia da Versamune, da Farmacore, é usar uma subunidade da proteína spike do Sars-CoV-2 chamada S1 e acoplá-la a uma nanopartícula a ser injetada no corpo humano. Ela também poderia ser 100% produzida no Brasil.
“A dependência de insumos importados faz parte de toda a indústria farmacêutica, e precisamos ter autonomia na produção, pelo menos, de nossas vacinas”, diz Faccioli. “A produção nacional de uma vacina pode incentivar outras indústrias a retomarem a produção interna de seus insumos.”
Almeida também acredita que será possível usar a próxima geração de vacinas já na atual campanha de vacinação. Ele menciona que a ButanVac tem conclusão de testes prevista para dezembro. As novas vacinas serão comparadas com as que já estão disponíveis e serão aprovadas caso tenham números equivalentes ou até superiores a elas. Além disso, não são feitos mais testes com placebos — as próprias vacinas já aplicadas na população funcionam como uma base de comparação. “Com a disponibilidade de outras vacinas, passa a ser até antiético usar um grupo placebo”, comenta Almeida.
Kfouri, da SBIm, não é tão otimista. Ele lembra que é pequena a proporção de vacinas que chegam ao licenciamento definitivo para uso. “De 100, 200 em desenvolvimento, uma dúzia chegam ao fim. Você tem um grande afunilamento”, diz o médico. Ele acha que ainda é cedo para esperar que estas cheguem em larga escala para ajudar no combate à pandemia. “Nenhuma fé é exagero, mas a gente tem dois acordos de transferência de tecnologia, do Butantan e da Fiocruz. É muito mais fácil apostar nessas vacinas do que as que nem foram começadas a ser estudadas em humanos.”
Kfouri considera que essas novas vacinas servirão para a imunização futura. “Todo ano nasce um monte de gente não vacinada. Você precisa vacinar continuamente a população porque ela cresce”, comenta. Em grande parte do mundo, somente adultos estão recebendo as doses atuais, e a aplicação em crianças e adolescentes ainda tem poucos estudos. Mesmo assim, a fórmula da Pfizer já foi liberada nos EUA a partir dos 12 anos de idade, por exemplo.
Outra questão que pode demandar uma quantidade maior de vacinas é o surgimento de variantes. “Precisamos ter uma estratégia de ‘remodelagem’ rápida das vacinas, para efetivamente proteger a população, principalmente por causa do surgimento cada vez mais rápido de novas variantes”, explica Faccioli, da Farmacore.
A ButanVac, do Instituto Butantan, já está sendo desenvolvida com um vírus inativado da variante Gamma — também conhecida como P.1, ela se tornou predominante no Brasil durante os primeiros meses de 2021.
As mutações do vírus podem fazer com que a imunização precise de reforços periódicos, a exemplo do que acontece com a gripe. Kfouri, da SBIm, faz a ressalva de que ainda não há dados que confirmem ou descartem essa possibilidade. “Nós não sabemos se as vacinas atuais vão dar imunidade para seis meses, um ano, dois anos, três anos ou mais.” Almeida, do ICB-USP, e Faccioli, da Farmacore, acreditam que precisaremos nos vacinar todo ano.
Criar vacinas não é um processo fácil, como você deve imaginar. A coisa fica ainda mais difícil quando falamos de Brasil — recentemente, o governo federal vetou R$ 200 milhões em financiamento para vacinas brasileiras, mas o Congresso conseguiu um crédito suplementar de R$ 415 milhões para o desenvolvimento de imunizantes nacionais.
A falta de financiamento, porém, é só um dos problemas. Almeida, do ICB-USP, diz que faltam estruturas no País para fabricar os imunizantes desenvolvidos — uma consequência da opção por importar produtos farmacêuticos da China há 30 anos. “A gente não tem essa capacidade de produzir e processar vacinas a toque de caixa.”
“O Brasil tem grandes gargalos para poder desenvolver um produto do começo ao fim, como estruturas adequadas para testes em animais, falta de estrutura para produção de lotes pilotos”, diz Faccioli. “É preciso implementar uma política de trabalhar uma inovação de ponta a ponta. Existem fontes de recursos, mas muitos direcionados para a pesquisa básica, e não para o desenvolvimento tecnológico.”
Almeida também destaca que esse problema não será resolvido rapidamente, mas precisa de investimentos para o futuro. Afinal, essa não foi a primeira pandemia e não será a última. “Muitos pesquisadores com quem eu converso dizem que essa pandemia foi um treinamento”, comenta o cientista.