A produção retrata um ambiente latino nos EUA, mas recebeu críticas pela falta de atores negros retintos
Lin-Manuel Miranda ganhou os holofotes no ano passado com o lançamento de Hamilton pela Disney+. Porém, antes do fenômeno, ele já havia criado outra peça de teatro: In the Heights. O show estreou na Broadway em 2008 e ganhou quatro Tonys. No próximo dia 23 de julho, a versão cinematográfica chega ao Brasil, no catálogo da HBO Max, com o nome traduzido de Em um Bairro de Nova York.
O musical, baseado em um livro de Quiara Alegría Hudes, conta a história de uma vizinhança latina no bairro Washington Heights, na cidade de Nova York, onde todos os imigrantes sonham com uma vida melhor. Nas telas, acompanhamos o personagem Usnavi, um jovem da República Dominicana que planeja construir um bar em sua terra natal. Logo no começo do filme também conhecemos Nina, que volta ao local após o seu primeiro ano de faculdade.
As músicas são animadas e a alegria e esperança dos integrantes do bairro nos contagiam o tempo todo. As vozes também impressionam — com destaque para a personagem da avó Claudia, interpretada por Olga Merediz. Miranda, que é filho de porto-riquenhos, afirmou que pensou na produção pois “não via representatividade no cinema”.
Porém, apesar do filme discutir sobre racismo e a vulnerabilidade daqueles que chegam no país com o “sonho americano”, a obra levantou o debate sobre a falta de afrolatinos retintos (quem tem mais melanina na pele) nos papéis principais.
A jornalista de origem afro-cubana Felice León, do portal The Root, publicou um artigo dizendo que os protagonistas “poderiam se passar por brancos” e que os únicos atores e atrizes negros aparecem com poucas falas e, em geral, nas cenas de dança.
Quando questionado sobre colorismo, o diretor Jon M. Chu respondeu: “Contratamos as pessoas que eram as melhores para os papéis. Não é nossa culpa se não foram suficientemente bons”. Por sua vez, a atriz mexicana Melissa Barrera, que interpreta Vanessa, uma cabeleireira que quer sair do bairro, declarou que “o processo de seleção do elenco foi muito longo e havia muitos afro-latinos de pele mais escura, mas eles estavam buscando as pessoas adequadas para o papel”.
A partir dessas falas, claramente problemáticas, o público passou a discutir a escalação do filme sob a ótica do colorismo.
Segundo a antropóloga Denise Ferreira da Costa Cruz, esse é um termo criado pela pensadora norte-americana Alice Walker para que as pessoas negras reflitam sobre a “passabilidade” — ou seja, a probabilidade de alguém ser considerado membro de um grupo diferente do seu. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. “Nesse sentido, as pessoas de pele mais clara teriam maiores acessos e oportunidades do que pessoas retintas”, explica ao Bitniks.
“O conceito [de colorismo] serve para a análise sobre as hierarquias de opressão que nós estabelecemos no seio de nossa convivência. Apesar disso, essa discussão não deve servir como mais um mecanismo colonialista de segregação [entre negros de diferentes tonalidades], mas de aproximação e de aceitação mútua”.
Por mais que o tema tenha tomado a internet recentemente, a especialista ressalta que a diversidade capilar e epidérmica é muito grande e, por isso, não se pode cobrar que todos os membros da comunidade negra sejam iguais.
Uma pesquisa do departamento de ciências sociais da Universidade da Califórnia (UCLA) divulgou, em 2019, um estudo sobre a representatividade no cinema norte-americano. O artigo mostra que apenas 19,8% dos protagonistas são negros. Além disso, personagens latinos constituem apenas 5,2%, enquanto asiáticos estão em 3,4% dos papéis de destaque. Entre as pessoas negras, os homens ainda são mais representados do que as mulheres. Uma outra pesquisa, essa do Instituto Geena Davis, revelou em março deste ano que quase 80% das personagens femininas negras têm tons de pele claros ou médios.
Em 2016, por exemplo, houve protestos contra o fato de Zoe Saldana interpretar Nina Simone em seu filme biográfico, já que a cantora tinha a pele mais escura. Saldana precisou usar maquiagem e até uma prótese de nariz. Porém, a atriz chegou a se desculpar, dizendo que nunca devia ter aceitado o papel. “Eu pensei naquela época que tinha permissão [para interpretá-la] porque eu era uma mulher negra”, afirmou.
Para a diretora Sabrina Fidalgo, o problema nunca é dos atores ou atrizes, mas da direção. “Quando alguém é convidado para o elenco, é quase certo que a pessoa vai aceitar. Nesse caso, quem não gostaria de interpretar o ícone que foi a Nina?”, declara ao Bitniks.
Em paralelo a isso, a antropóloga Denise Ferreira da Costa Cruz ressalta que precisamos prestar atenção em como o racismo no cinema afeta mulheres e homens de formas diferentes. Isso porque ele recai sobre o feminino a partir de uma cobrança muito forte em relação a aparência. É esperado que mulheres estejam sempre produzidas e bem vestidas, uma vez que serão sempre vigiadas com mais afinco pela sociedade.
De fato, os dados do Geena Davis ressaltaram que 57% das protagonistas negras de filmes populares na última década são retratadas com estilos de cabelo que estão em conformidade com os padrões europeus de beleza, em oposição aos penteados negros naturais. Ainda assim, é importante lembrar que a sexualização dos homens negros nas telas também é recorrente.
Atrás das câmeras, a desigualdade é ainda mais forte. A UCLA revelou que só 12,6% dos diretores são negros ou negras, numa porcentagem que se mantém estável desde 2014. No caso das séries de televisão, o número cai ainda mais: 90,6% dos criadores ainda são brancos enquanto 9,4%, negros. Quando falamos de premiações e reconhecimento, a tendência se confirma — 80% dos troféus são entregues a diretores brancos, e 80% vão para atores brancos.
“Para atingirmos uma democracia racial, é preciso cada vez mais diversidade entre os diretores e produtores. Não adianta existir só diretores brancos escalando um elenco diverso”, opina Fidalgo. “Precisamos de outras visões que vão transformar as narrativas e contar diferentes histórias. Isso é algo que vai fazer muita diferença no mercado cinematográfico.”
Ao criar um filme, as escolhas são feitas a partir da posição e conceitos dos diretores, dos produtores e da equipe artística. “A responsabilidade é fundamental”, diz a produtora e atriz Tainá Felix. “Quando retratamos um fato, por exemplo, a equipe deve ser escolhida a partir da narrativa real. Se falamos de um bairro latino, é importante que pessoas retintas também estejam ali.”
Partindo dessa ideia, em uma fala para o The New York Times, León relembra que pelo menos 90% dos dominicanos são afrodescendentes. “Então, por que não há destaque?”, questiona. No entanto, vale lembrar que, na República Dominicana, 73% são mestiços (como os protagonistas) e 11% negros autodeclarados.
“Quanto ao que a equipe poderia ter feito de forma diferente, parece simples. Eles poderiam ter contratado mais atores negros e latinos, não para preencher uma cota de diversidade, mas porque isso refletiria a realidade do bairro”, questiona Leon ao NYT. E o que se perde com isso? Bom, lembramos que é a partir da representação em espaços midiáticos que as crianças se reconhecem e que criam em seu imaginário a ideia de que podem ocupar diferentes lugares, por exemplo.
Em todo caso, falar sobre diversidade é necessário, mas também é preciso reformular o pensamento coletivo. “Quando pensamos que todos que não são brancos fazem parte da diversidade, partimos do pressuposto de que os brancos são universais”, diz Felix. “Nós somos todos diversos, o fato é que existe uma parte desse grande grupo que sempre deu as cartas e mostrou sua perspectiva. Encarar isso e dar espaço para outros tipos de produção, história, personagens e narrativas é o primeiro passo para a mudança.”
Em relação ao Em um Bairro de Nova York, sabemos que a profissão cinematográfica é sempre passível das críticas e, nesse caso, ouvir com humildade o que as pessoas tentam lhe dizer é a melhor forma de lidar com o conflito. Por sua vez, Miranda reconheceu o erro e escreveu nas redes sociais: “Acompanho a discussão sobre a representação dos afro-latinos em nosso filme e está claro que essa comunidade não se sente suficientemente representada, sobretudo nos papéis principais. Eu ouço a dor e a frustração com o colorismo (…). Ao tentar pintar um mosaico desta comunidade, falhamos. Sinto muito. Estou aprendendo com suas respostas. Obrigado por lançá-las. Eu os escuto.” Agora, esperamos que sua próxima produção mostre mudanças efetivas nas telas.