Streamers se uniram contra a Twitch pedindo para que plataforma dê repasses mais justos. Movimento gera debate sobre profissionalização.
Manifestos, greves e uma paralisação. Pode parecer algo cotidiano de um sindicato com funcionários reivindicando seus direitos ou melhoras em uma empresa, mas no caso os trabalhadores são criadores de conteúdos da Twitch: uma das maiores plataformas de streaming em que o número de acesso chega na casa dos milhões.
Nas últimas semanas, os streamers – usuários que transmitem jogatinas, conversas, co-working e tudo que envolva a produção de conteúdo digital – estão se mobilizando pedindo melhorias na plataforma como transparência e isenção em imposto no pagamento que vêm das inscrições.
O assunto movimentou as redes sociais gerando o debate se streamer deve ser levado como profissão e a importância de falar sobre condições de trabalhos em criadores de conteúdo.
Desde maio, a Twitch (que foi comprada pela Amazon em 2014) vinha trabalhando para diminuir os valores das inscrições — também conhecida como subs — dos canais dos streamers. Em 27 de julho, foi divulgado que a inscrição regular passa a custar R$ 7,90, valor 65% mais baixo que o original que era R$ 22,99.
Por mais que pareça bom para quem assina – sendo uma chance de poder apoiar mais de um canal ou economizar, os streamers enxergam essa mudança com receio pois, para conseguir arrecadar a quantia de antes, seria preciso mais horas de lives, o que poderia ser insalubre.
Guilherme “guigoakirah” Alves é um desses casos, o jornalista faz streams na plataforma roxa desde 2018, mas só começou a fazer com mais frequência no ano passado, como forma de hobby. Por conta do trabalho, as lives aconteciam em quatro dias das semana, mas devido à crise, foi demitido no começo de julho e agora Guilherme intensificou os dias e horas de live e tenta se sustentar criando conteúdo tanto na Twitch como nas redes sociais.
Em entrevista ao Bitniks, Alves conta que mesmo quando não está ao vivo, fica o resto do dia planejando o conteúdo ao longo da semana. “Antes, para o streamer atingir essa meta mínima de 100 dólares, ele precisava de mais ou menos 60 inscritos para resgatar esse pagamento. Com as mudanças, ele precisa do triplo, algo muito irreal para streamers menores e que têm uma média pequena de visitantes em suas lives”.
Em entrevista ao Globo Esporte, o vice-presidente de Monetização da Twitch, Mike Minton explicou que já aplicaram essa mudança em outros países e os resultados indicam que os streamers acabam lucrando mais. “Fizemos alguns testes, temos uma quantidade de dados e estamos confortáveis de que os preços mais baixos não vão diminuir o lucro dos streamers”.
Porém, com a mudança, muitos streamers não estão contentes com o quanto a companhia repassa pra eles. A Twitch afirma que 50% do valor que arrecada vai para o produtor de conteúdo com um contrato padrão, porém os streamers dizem que o desconto é maior e há ainda os 30% de impostos que vão ao governo dos EUA com as subs.
O valor por inscrição, pago em dólar, é de cerca de US$ 0,40 (o que dá algo em torno de R$ 2,10 na cotação atual). “Ele [o streamer] só consegue tirar 35% de todo lucro que dá à plataforma a partir da criação de conteúdo” explica Alves.
Alves, assim como outros que protestam, apoia a redução dos valores das inscrições, pois acreditam a política vai ao encontro da atual realidade econômica brasileira. Mas, eles acham que o repasse precisa ser justo, assim como acontece em outras plataformas.
Insatisfeitos com as decisões da plataforma, Matheus “Picoca” Tavares, streamer da PaiN Gaming, e Daniel “danielhe4rt” tomaram a frente e lançaram a “União dos Streamer” em 13 de agosto. “Eu sabia o quanto isso impactaria os criadores pequenos e médios, assim como me impactou. Utilizei da minha plataforma para compartilharmos nossas frustrações e procurarmos algumas soluções, assim nasce a União”, disse Tavares em entrevista ao Bitniks.
Antes foi utilizado o nome de “Sindicato”, mas no próprio site do movimento eles explicam que o termo é uma “forma de chamar a atenção”. Atualmente, são mais de dez pessoas que atendem demandas específicas da União, mas todas as decisões passam pelos mais de 1100 membros da comunidade.
Eles criaram um manifesto contra a Twitch alegando a “postura nebulosa que a plataforma tem adotado nos últimos tempos” e que pedem quatro itens:
O manifesto ganhou repercussão na comunidade e nomes importantes como “Rakin”, “sasa” e “Maethe” assinaram o documento (é utilizado uma ferramenta para garantir a autenticidade das assinaturas).
Tavares afirma que esperava conseguir um alcance pois sabia que muitas pessoas seriam afetadas, mas confessa que não esperava que ganhasse tal proporção o movimento. “Sofri muitos ataques mas também tive muitas pessoas boas vindo me ajudar e contribuir com a luta. Eu tive que procurar assessoria jurídica, de imprensa e intensificar a terapia”.
Com isso, o grupo conseguiu mais de 3.2 mil assinaturas e anexou junto ao manifesto – enviado para a Twitch no começo dessa semana. Desde o envio, eles adicionaram um cronômetro que indica há quanto tempo a Twitch não respondeu o coletivo.
No dia 19, surgiu uma conta no Twitter chamada “Apagão da Twitch” , em que promoveram um ato ontem (23) pedindo para streamers e espectadores a não fazerem lives e acessarem a plataforma como forma de “conscientizar as pessoas sobre o descaso da plataforma com os criadores que a utilizam”, segundo afirmou um dos representantes do grupo ao Bitniks. Por questões de segurança, tanto a fonte como os outros integrantes preferiram permanecer anônimos.
Segundo o representante, o grupo é formado por aproximadamente quarenta pessoas. São streamers de pequeno e médio porte – alvo mais afetados com a mudança – e se consideram anticapitalistas. Eles deixam claro que não têm nenhuma ligação com a “União Streamer”, que são a favor da reivindicações do grupo e entendem a importância da criação da União. Porém, eles discordam em relação às táticas e, como resposta, foi criado o Apagão.
Além dos streamers, o grupo também chama os espectadores para participar, pois eles são uma porcentagem fundamental da ação. “Assim como os streamers, os espectadores são a base que constitui a Twitch. Sem eles, não existiria a plataforma e nem o trabalho dos streamers”, afirma um dos representante.
Com a repercussão, muitos streamers e personalidades do nicho aderiram a causa:
Até a Sâmia Bomfim, deputada federal pelo PSOL-SP, se manifestou a favor do ato:
Alguns são contra, como foi o caso de Alexandre Borba Chiqueta, o “Gaulês”. Um dos maiores streamers brasileiros e um dos que está no top no ranking global da plataforma, ele falou sobre o assunto em live do dia 17 de agosto. Chiqueta acredita que a relação entre streamer-empresa é de parceria e que é preciso cada um se reinventar para se manter na plataforma. “O streamer precisa entender que a Twitch é uma empresa e que isso é uma parceria. A Twitch é meu patrão? Não. Eu sou patrão da Twitch? Não. Então eu preciso fazer coisas que agreguem a Twitch e buscar que a Twitch faça coisa que me agreguem”.
Além desses embates, houve streamers que se manifestaram a favor do protesto, mas precisavam fazer lives pois isso afeta a meta de subs do mês.
Alves desabafa que pretendia fazer uma live, mesmo apoiando a causa, mas foi acusado de “fura greve”. “”Sou a favor de um movimento por um repasse mais justo aos streamers em geral, mas não me senti tranquilo pra abrir live hoje por medo de ser atacado por todos os lados, com ataque de bot e com moralismo sem sentido”, afirma.
O Kotaku americano noticiou que os streamers do exterior estão se unindo e também fazendo um boicote contra a plataforma, com o #ADayOffTwitch. Além da taxa que a Twitch cobra, a principal causa dos protestos são as “raids de ódio” (ou hate raids) – em que os espectadores usam o recurso “raid” da plataforma para inundar o chat do streamer com xingamentos e ameaças contra a pessoa. Os maiores alvos são pessoas negras, LGBTIA+ e outras minorias.
No começo do mês, os streamers internacionais levantaram a tag #TwitchDoBetter (que a União dos Streamers traduziram a #TwitchMelhore) como forma de levantar os problemas para a plataforma. Entretanto, agora pretendem fazer uma paralisação em 1º de setembro como uma forma mais radical de chamar a atenção da plataforma. “Tenho certeza que a Twitch sabe de tudo o que estamos fazendo, as “raids” de ódio são parte de um problema maior, que é a falta de uma ponte de comunicação da Twitch com seus criadores de conteúdo, já que essa é uma reivindicação de muitos meses, a real questão aqui é se a plataforma vai nos atender ou não”, afirma Tavares sobre o movimento gringo.
Questionados sobre o evento internacional, o representante do “Apagão” disse que fica feliz de saber também está acontecendo uma mobilização, apesar de não saber se houve uma inspiração ou uma questão de timing. “O debate sobre as raids de ódio é muito importante e também é uma das nossas pautas; preocupada só com os números, a Twitch expõe criadores de conteúdo e espectadores a um ambiente tóxico e inseguro para minorias”.
Ao anunciar a mudança dos valores, a Twitch também criou um programa de auxílio que vai durar 1 ano e será gradual. A empresa vai cobrir as perdas de 100% dos streamers nos primeiros três meses, depois vai cobrir 75% nos meses seguintes, depois 50% e 25%.
“Muitos acreditam que haverá uma desistência em massa de streamers que dependem das lives para sobreviver, pessoas que encontraram nas lives uma forma de fugir do desemprego que assola o nosso país” – Guilherme “guigoakirah” Alves, jornalista e streamer
Porém, para conseguir essa ajuda o streamer precisa fazer live 85% das horas médias dos últimos três meses, em um mínimo de cinco horas. Para Alves, isso vai fazer com que muitos produtores desistam de lucrar com o site. “Nas conversas que temos, muitos acreditam que haverá uma desistência em massa de streamers que dependem das lives pra sobreviver, pessoas que encontraram nelas uma forma de fugir do desemprego que assola o nosso país” diz preocupado.
Em resposta ao Bitniks, a assessoria enviou a seguinte nota sobre as manifestações no Brasil. “Apoiamos os direitos de nossos streamers de se expressarem e chamarem a atenção para questões importantes em nosso serviço. Estamos ouvindo este feedback e continuaremos a trabalhar para fazer da Twitch o melhor serviço para os criadores de conteúdo criarem e promoverem suas comunidades”.
Os movimentos geraram um debate acalorado nas redes sociais sobre se os streamers devem ser considerado trabalhadores – assim como acontece em outras plataformas como o YouTube e redes sociais.
Para Alves, existe sim um trabalho por trás, não só o investimento de equipamentos e criar métodos para atrair novos públicos. Há os riscos de ser julgado e ameaçado como tem acontecido com streamers gringos.
Para ele, há um preconceito com pessoas que querem seguir essa carreira pois acreditam que é uma forma de “ganhar dinheiro fácil” e aponta a questão cultural de trabalho em que os streamers quebram esse paradigma. “É algo que não é tão novo, mas que ainda causa estranheza nas pessoas, talvez pela nossa cultura de que trabalho duro é aquele que a gente tem que acordar cedo, pegar um busão, passar nervoso durante todo o dia”.
Letícia Dallegrave é mestra em Comunicação Social e, em seu recente artigo sobre a relação entre stream e trabalho, afirma que, mesmo que não haja um vínculo entre streamer e a plataforma, existe uma dinâmica que se assemelha ao trabalho, uma vez que há regras e metas. “Temos uma situação análoga às condições de trabalho, onde existem metas, horários, expectativas e em algumas vezes até contrato de exclusividade, em troca de uma remuneração previamente combinada”, escreve.
“Existe uma relação de criação de um produto que é consumido por milhares de pessoas. Nesse sentido, acreditamos que não há motivo para que esse não seja considerado um trabalho como qualquer outro.” – Representante do “Apagão da Twitch”
Para o representante do “Apagão da Twitch”, os streamers precisam serem vistos como trabalhadores pois, por mais que pareça uma atividade casual, existe por trás uma dedicação de tempo e investimento financeiro. “Háuma relação de criação de um produto que é consumido por milhares de pessoas. Nesse sentido, acreditamos que não há motivo para que esse não seja considerado um trabalho como qualquer outro”, explicou o representante.
Enquanto Tavares está estudando mais sobre o assunto. afirma que cada vez mais streamers estão se reconhecendo como trabalhadores. “A União dos Streamers está se tornando um canal de comunicação rico para a comunidade de criadores de conteúdo, não só estamos lutando pelo fim da bi-tribuição, transparência da Twitch e valorização do criador de conteúdo brasileiro, como também estamos nos ajudando a nos tornars cada vez melhores em nosso trabalho.”