Ciência

Perguntamos sobre ciência a estes 5 líderes religiosos

Conversamos com Padre Júlio Lancellotti, Monja Coen, Pai Rodney William, Pastor Henrique Vieira e Sheikh Mohsin Ben Moussa AlHassani

27 de julho de 2021

Líderes religiosos

Há quem diga que existem muitos conflitos entre religião e ciência. O estereótipo comum de um pesquisador é o de que, por ser pautado pela racionalidade e experimentações, ele não acredita em divindades e rituais. E as religiões, por acreditarem em uma força maior, negam os avanços científicos e se protegem do que é negativo a partir de suas crenças. Porém, a realidade não é essa. Em um momento no qual a ciência se tornou a protagonista da vida humana, conversamos com cinco líderes religiosos de diversas correntes para saber quais são as semelhanças e as diferenças entre a religião e a ciência na visão deles. 

Padre Júlio Lancellotti

Pároco da Paróquia de São Miguel Arcanjo

Foto: Wikimedia/Commons

Lancellotti não acredita na incompatibilidade das duas, ainda que os saberes sejam autônomos. Para ele, a semelhança entre elas é a defesa, humanização e a salvação da vida. “Enquanto a ciência cria vacinas, a Igreja precisa disseminar a confiança e questionar a falta do imunizante para todos”, diz.

No entanto, há a preocupação para que um saber não assuma o papel do outro. “O que não pode acontecer é a ciência assumir o papel de religião e nem a religião o da ciência. Esses são campos que interagem, mas um não pode se sobrepor e nem tomar o lugar do outro”, afirma. “Quem tem que cuidar da saúde da população é a ciência e não a religião. Porém, pesquisadores não devem negar os aspectos específicos da religiosidade, como a transcendência e a espiritualidade”. 

Embora os dois assuntos pareçam opostos, o padre concorda que eles podem, sim, andar juntos: um cientista pode ser religioso e um religioso pode ser cientista. “Temos vários exemplos disso: Gregor Mendel, considerado pai da genética, é um frade agostiniano; o padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin foi um antropólogo e realizou pesquisas sobre a evolução humana que, na época, não foram bem entendidas pela Igreja; e o Vaticano tem diversas comissões científicas e um dos planetários mais sofisticados do mundo”.

No contexto da pandemia de Covid-19, o padre ressalta que é a medicina e a Organização Mundial da Saúde (OMS) que precisam ditar os caminhos da cura. Enquanto isso, a religião é responsável por confortar os corações daqueles que perderam pessoas queridas e lutar pela democratização da saúde. Ele afirma:

“As religiões que acreditam que Jesus salva e, por isso, não é preciso se cuidar, não são sérias e, ainda por cima, são desumanas. A ignorância não é religiosa. Pregar o negacionismo é falta de conhecimento, de discernimento e de padrões de desenvolvimento intelectual. As pessoas que ficam doentes precisam ir para o hospital e ficar em casa — tomar água sagrada não é uma recomendação.”

Porém, por mais que a ciência tenha beneficiado milhares de pessoas, Lancellotti pensa que a ética deve estar no topo da pirâmide do desenvolvimento. Além disso, a população precisa prestar atenção em tudo o que vê, lê e consome. “A tecnologia tem seus benefícios e desafios. O advento do 5G, por exemplo, irá tornar a realidade cada vez mais virtual. Isso interfere no nosso cotidiano a ponto de já estarmos em um momento em que não é possível acreditar em tudo o que se vê. Precisamos estar atentos o tempo todo”, opina. “Sobre esses assuntos, a igreja deve refletir e manifestar sua opinião mas nunca impor aos fiéis suas crenças”. 

Sheikh Mohsin Ben Moussa AlHassani 

Doutor e professor de estudos religiosos sobre o islã e Conselheiro Sênior da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras)

Imagem: Divulgação

Segundo o islamismo, enquanto não havia ciência também não havia nada e o mundo vivia em uma escuridão de ignorância. A primeira palavra revelada por Alá, divindade muçulmana, ao profeta Muhammad, também conhecido como Maomé, foi uma orientação científica: “Lê, em nome do teu Senhor que criou o ser humano a partir de um coágulo de sangue; lê e aprenda a sabedoria divina do Senhor generosíssimo e honrado”. Assim, a ordem do profeta aos seres humanos é a de adquirir conhecimento desde o nascimento até a morte.

Nesse sentido, é preciso lembrar que o termo medicina foi derivado de Ibn Sina, nome do filósofo mulçumano que escreveu diversos tratados sobre saúde. A civilização islâmica também tem protagonismo na matemática, já que foram eles que criaram os algarismos que usamos hoje. “Ficou marcante que a nossa religião trata dos problemas e das catástrofes humanas na base da ciência e do conhecimento. Para nós, uma pessoa sábia é bem mais relevante do que uma pessoa que apenas pratica a religião”, afirma o Sheikh. “No próprio Alcorão está escrito que aqueles que sabem jamais serão iguais aos que não sabem”.

O Islã também acredita que, para cada campo da dimensão humana, é preciso seguir um especialista. Ou seja, ao ficar doente, procura-se um médico; ao exercer o jornalismo, pergunta-se às fontes qualificadas e; ao querer aprender, encontra-se um professor. “Para jejuar, peregrinar e até tratar com instituições financeiras precisamos saber das regras para entendermos todos prós e contras. Assim, não somos injustiçados ou cometemos injustiças contra os outros”, explica. “Principalmente no século 21, precisamos ser científicos. A ciência não impede o muçulmano de ser muçulmano. Ao contrário, ela ajuda e fortifica a nossa crença”.

O líder relembra que milhares de surtos e epidemias ocorreram na época do profeta e foram enfrentados pela nação islâmica. Em uma delas, que aconteceu em Damasco, na Síria, Muhammad orientou que todos ficassem em casa. “Foi o primeiro regime sanitário para o povo e se assemelha ao distanciamento social que estamos vivendo agora. Isso foi feito para não levar as doenças para outras localidades e é o que devemos seguir”, conta. “Acompanhamos todas as recomendações das organizações de saúde para garantir a salvação da humanidade”.  

Sobre a vacinação, AlHassani reflete que é um dever de todos os fiéis se imunizar, pois é assim que se cumpre a função de cidadão, protege toda a população e diminui os índices de contágio de doenças. “Somos totalmente contra qualquer bate-papo irresponsável de contrariar a ciência e o desenvolvimento humano. Se não há pessoas vivas, não há religião”. 

Monja Coen Roshi

Monja zen budista e missionária oficial da tradição Soto Shu 

Imagem: Divulgação

Um dos grandes desafios da ciência é conhecer a mente humana como um todo. Para o budismo, essa é uma jornada de vida a ser seguida. Segundo monja Coen, desde o começo de sua trajetória, Buda fala sobre a percepção de si e isso se dá a partir do conhecimento da própria mente. “Conhecê-la é conhecer Buda, a sabedoria e o estado do despertar. Isso pode ser feito por cada indivíduo a partir da respiração consciente e da meditação”, explica. 

Para ela, tudo o que a tecnologia está desenvolvendo, como robôs, algoritmos e inteligência artificial, é uma cópia rudimentar de nós mesmos. “Nenhum equipamento se assemelha à mente. Isso porque nós ainda não a entendemos como um todo. Ela é capaz de realizar coisas incríveis e atingir objetivos praticamente impossíveis a partir de uma determinação consciente”. 

Ainda assim, é essencial que a ética esteja em primeiro lugar porque mesmo as descobertas positivas podem destruir a humanidade. “Quando Einstein descobre o átomo, resolve diversas questões. No entanto, o que ele criou também acabou sendo usado para bombas atômicas — que prejudicaram milhares de pessoas”, ressalta Coen. A missionária acredita, ainda, que as vacinas são essenciais durante a pandemia e isso é comprovado com o estudo realizado na cidade de Serrana, em São Paulo, que imunizou grande parte de sua população e reduziu 95% dos óbitos. “Eu lamento que as pessoas neguem os esforços dos pesquisadores. Já tomei as duas doses e não virei jacaré, estou lúcida e saudável. Alguns dizem que não querem ser cobaias, mas a experiência vida é ser cobaia o tempo todo, já que nunca sabemos o que vai acontecer conosco”.

O budismo também parte do questionamento para desenvolver sua filosofia. O que é a vida, a morte e qual é o sentido da existência são algumas das dúvidas que a religião procura responder. “Buda tem uma jornada que busca essas respostas. Ele passa por ioga, jejum e vai de um extremo ao outro até encontrá-las dentro dele mesmo”, relata Coen. “É aí que ele encontra o chamado caminho do meio, onde há paz, compaixão e sabedoria”. 

Segundo ela, estamos vivendo uma fase de negacionismo, que pode surgir por causa da alienação, por medo de encarar a realidade ou por teorias conspiratórias. Mas acreditar na imunidade de rebanho, por exemplo, vai contra o exercício da democracia. “A diferença entre regimes totalitários e democracia é que, nesta última, o governo tem a responsabilidade de ajudar os mais fracos. Se há alguém que precisa se alimentar, ele ajuda. Não é possível aceitar a morte de alguns para a sobrevivência de outros”. 

Pastor Henrique Vieira

Imagem: Acervo pessoal

Pastor da Igreja Batista do Caminho, ator e poeta

O pastor Henrique Vieira diz: “Eu acredito que Deus deu à humanidade a possibilidade de conhecimento para o bem da vida. Portanto, a ciência é uma dádiva que reflete a capacidade que o ser humano tem de pesquisar, observar e conhecer. É por isso que eu não vejo conflito entre ela e a religião” . Para ele, os cientistas e a igreja cumprem papéis diferentes: enquanto os primeiros trabalham para criar novos sistemas para a humanidade, os outros lutam para que esse conhecimento seja benéfico e acessível a todos. 

Lembrando que, dentre as religiões, há quem desacredite desses avanços, o pastor diz que essas são camadas fanáticas que não entendem a própria narrativa sagrada. “Quando olhamos para a Bíblia, vemos que Deus nos dá a responsabilidade de cuidar da vida e que coisas ruins acontecem com todas pessoas. Ou seja, isso desmonta a lógica de que se eu caminho com Ele, nada vai acontecer”, explica. “Crer não é ter uma bolha de proteção que nos imuniza. Podemos perceber isso com tantos irmãos e irmãs que se foram durante a pandemia. Quem pensa assim está agindo de forma irresponsável e colocando várias vidas em risco”. 

Especialmente durante o surto de Covid-19, o líder revela que é essencial se posicionar a favor do distanciamento social. “Em um momento de genocídio, a igreja deve orientar sobre os cuidados para diminuir o contágio e lutar por mais vacinas. Isso porque já estamos vendo um recorte de classes e um recorte racial no sistema de imunização”, diz. “Além disso, cabe a nós consolar os fiéis, chorar com aqueles que choram, confortar os abatidos e combater a fome com redes de solidariedade e denúncia da desigualdade social”. 

Já em relação aos avanços da robótica, Vieira teme a desumanização dos indivíduos, uma vez que a falta de contato com o outro impede o desenvolvimento da empatia. “Não podemos perder a compaixão, a sensibilidade, o amor ao próximo e a sociabilidade afetiva pois é isso que nos faz humanos”, afirma. 

Ainda que o pastor seja munido de fé, ele ressalta que ela não é uma certeza absoluta. “Ela se desenvolve na dúvida e no questionamento. Jesus de Nazaré, em uma passagem da Bíblia diz: ‘Deus meu, por que me abandonaste?’. Ou seja, a própria narrativa contempla a possibilidade da dúvida, do grito de desespero e da possibilidade de dizer que não entendemos a vida”, explica. “Eu prefiro pensar a fé mais no campo da experiência do amor do que propriamente uma certeza objetiva do divino”. 

Pai Rodney William

Imagem: Divulgação

Babalorixá, escritor e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP

O candomblé não é só uma religião, é uma forma de pensar o mundo que assume a magia. Além disso, ele é a expressão da civilização africana a partir da ressignificação de sua memória coletiva. O valor da ancestralidade é o que pauta suas crenças, que passam pelos orixás, divindades da mitologia representadas pela natureza. Cuidar do mundo e respeitar o outro são alguns de seus princípios básicos, uma vez que estamos todos vivendo em comunhão.  

“O candomblé acredita que seus ritos ativam princípios mágicos que transformam a vida das pessoas”, explica o Pai Rodney William. “Nossos orixás mostram que não há divergências entre a religião e a ciência. Isso porque temos Omolu, que domina e conhece a doença a partir do sintoma; Ossain, que traz a cura a partir das folhas; e Ogum, que é o nosso patrono da tecnologia e dos avanços”. 

Para William, os saberes são produzidos através da observação, da vivência e da pesquisa. Ainda assim, eles são dinâmicos e podem (muitas vezes, devem) ser transformados ao longo do tempo. “Pensar a ciência no século 19, por exemplo, é relembrar o racismo científico, que justificava a inferioridade das raças a partir de princípios técnicos”, afirma. “Nesse sentido, também é importante reconhecer uma produção de saberes dentro das nossas tradições e entender que eles não foram codificados da forma como a ciência faz hoje”.

Ainda que a crença acompanhe um grande número de pessoas, ela ainda sofre por conta de preconceito e racismo. “Quando eu não reconheço o direito do outro acreditar e praticar seus rituais sagrados, eu estou sendo sectário, equivocado e, mais do que cometendo um erro, estou cometendo um crime”, relata William. “Eu acho que precisamos respeitar as diferenças que são construídas socialmente, sobretudo em relação às pessoas negras — que estão mais suscetíveis a violência”. 

O babalorixá acredita, também, que o conceito de religião atual foi transformado para pautar a agenda política do Brasil. “Essas crenças que negam a ciência existem para a ascensão política e para manter os lugares sociais da população”, reflete. “Muitos dizem para não tomar a vacina, por exemplo, mas foram para o exterior garantir a imunização. Isso é charlatanismo”. Ele ressalta, ainda, que para o candomblé, a cura é a resolução das mazelas sociais, como o saneamento básico, a fome, e a pobreza. “A doença tem uma construção social e, muitas vezes, é usada como sistema de necropolítica. O deixar morrer é o que está sendo praticado nos dias de hoje”.