Tecnologia

Qual a relação entre vigilância e combate à pandemia?

21 de julho de 2021

Mais de um ano de pandemia se passou e uma das medidas fundamentais para controle e acompanhamento da Covid-19 ainda não engrenou no Brasil: o rastreamento de contato. A técnica é usada para identificar pacientes que testaram positivo para o novo coronavírus e quem foram as pessoas com as quais eles se encontraram desde a confirmação do diagnóstico. Em contrapartida, países como China, Nova Zelândia e Coreia do Sul adotaram, com sucesso, um rígido sistema de monitoramento de seus cidadãos para rastrear novos casos e evitar novos surtos.

Mas até que ponto o uso desse método, que envolve toda uma questão de saúde pública e controle dos novos casos de Covid-19, pode representar um risco à sua privacidade? O Bitniks conversou com especialistas para entender o que isso significa, por que o rastreamento de contato por aqui sequer começou e como equilibrar respeito à privacidade e cuidados com saúde pública numa pandemia.

Como funciona o rastreamento de contato

Imagine que você precise fazer uma viagem para fora do Brasil mesmo agora em meio à pandemia. Por conta dos números altos de novos casos e óbitos, o País ainda é considerado um local de risco elevado — tanto é que são pouquíssimos os lugares que aceitam a entrada de brasileiros. Mas vamos supor que não exista essa última hipótese e você viaje para algum país em que a doença está controlada.

Chegando no aeroporto daquele país, você é obrigado a fazer uma quarentena de pelo menos 14 dias. Se durante ou depois desse período você apresentar sinais do novo coronavírus, os órgãos de saúde então passam a rastrear os locais onde você foi e as pessoas que você teve contato mais próximo. Por fim, todas elas são instruídas a ficarem isoladas por duas semanas (a partir do dia que elas estiveram perto de você).

O principal objetivo do rastreamento de contato é evitar que você e todas as pessoas incluídas nessa cadeia de possível transmissão circulem por aí sem ter a certeza de que não carregam o vírus. Lembre-se que muita gente se contamina e fica assintomática, mas isso ainda não impede essas pessoas de infectar as outras com o SARS-CoV-2.

Esse cenário da viagem é apenas uma das várias situações hipotéticas que podem desencadear o rastreamento de contato. Mas, tecnicamente, o método pode ser implementado em estratégias de maior ou menor escala. “O rastreamento de contato é extremamente importante para conter a transmissão [do vírus] e evitar novos surtos. Só que é necessário ter um sistema muito bem desenhado em que seja possível acompanhar as pessoas por algum tempo”, explica Marcia Castro, cientista, doutora em Demografia e professora da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Castro, que desde fevereiro de 2020 trabalha e analisa dados relacionados à Covid-19, principalmente os que dizem respeito a hospitalizações, afirma que as autoridades precisam de um sistema confiável para computar uma grande quantidade de informações dos pacientes. Além disso, destaca a importância de outras peças para que esse rastreamento de contato dê certo, o que inclui o uso de agentes de saúde para visitar cidadãos, testagem em massa e do amparo do governo.

De olho em você

Castro cita como exemplo a Coreia do Sul, um dos poucos países do mundo a não adotar um lockdown mais rígido. “O país tem um sistema que monitora as pessoas 24 horas por dia, sete dias por semana. Então, quando alguém testa positivo para o novo coronavírus, o governo olha para o registro de mobilidade daquele cidadão e manda uma mensagem para todas as pessoas que tiveram contato com ele, sugerindo que elas façam um teste para comprovar se foram ou não infectadas”, diz.

A Coreia do Sul não é o único país que se baseia em um poderoso sistema de vigilância e coleta de dados para monitorar possíveis pacientes com Covid-19. China, Reino Unido e o próprio Brasil criaram soluções específicas para a situação pandêmica. Na Inglaterra, foi desenvolvido um aplicativo que, por meio do sinal Bluetooth do celular, identifica quando as pessoas estão próximas umas das outras e as avisam em uma mensagem para adotarem o distanciamento social. A Nova Zelândia, que virou referência global no combate à doença, foi além e divulgou no site do Ministério da Saúde uma campanha bastante transparente sobre quais dados dos cidadãos são usados para controlar o rastreamento de contatos no país.

Aqui no Brasil, o governo federal não recorreu a nenhuma ferramenta para monitorar os brasileiros. Na verdade, por decisão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em abril de 2020, foram vetadas medidas que previam o uso de dados de celulares para checar se as pessoas estavam em suas casas praticando isolamento social. 

Como os estados e municípios têm autonomia para tomarem as decisões que acharem melhores no combate à pandemia, foi exatamente essa a ação adotada por grande parte dos governos estaduais. Nos primeiros meses de quarentena em 2020, o governo do estado de São Paulo fechou parcerias com operadoras para usar dados de GPS dos celulares dos paulistas e definir os níveis de isolamento social, além de traçar políticas públicas de saúde mais otimizadas de acordo com a região.

Por telefone, a assessoria de imprensa do governo estadual de São Paulo disse ao Bitniks que o levantamento de dados é feito individualmente por cada prefeitura. O governo do estado agrupa essas informações dos municípios para então fornecer as porcentagens de isolamento social, que já chegou a mais de 60% entre os paulistas, mas que agora fica em uma média entre 35% e 50%.

Araraquara, uma das cidades que viu o número de novas internações, casos e mortes por Covid-19 despencar após um lockdown rigoroso, reforçou ainda mais o rastreamento de contato, que desde abril de 2021  foi intensificado como parte das medidas de contenção do vírus. A Secretaria de Comunicação de Araraquara afirma que, com a testagem em massa e acompanhamento de pacientes, a cidade tem reavaliado as estratégias de enfrentamento da pandemia na região.

“Com esse objetivo, teve início a ação de testagem de RT-PCR na Rede Básica de Saúde, com foco nas famílias que residem em áreas de cobertura do programa Estratégia de Saúde da Família (ESF). Equipes compostas por técnicos de enfermagem, juntamente com agentes comunitários de saúde (ACS), estão aplicando testes nos bairros. De acordo com o plano de ação, esses profissionais da saúde, divididos em 10 equipes, estão percorrendo diariamente as áreas de cobertura do programa ESF, devidamente identificados, das 7h às 13h”, conta a Secretaria.

Desde o início da pandemia, Araraquara, que tem quase 239 mil habitantes, já aplicou mais de 101,2 mil testes, divididos entre uma ampla testagem feita em parceria com a Unesp e a Universidade de Araraquara. É um dos maiores índices de testes aplicados no Brasil.

Limites

Mariana Rielli, coordenadora geral de projetos do centro de estudos sobre privacidade Data Privacy Brasil, comenta que, devido à pandemia, foram necessárias algumas flexibilizações quanto ao uso de dados. Em contrapartida, a pesquisadora ressalta que, mesmo em um momento crítico como o atual, não se deve ignorar o que autoridades farão com essas informações quando enfim voltarmos a uma certa normalidade.

“O que acho importante ter em mente é que um cenário como uma pandemia, que é claramente excepcional, não significa que estamos diante de ausência de regras. E isso para todas as coisas, não somente para privacidade e proteção de dados. Temos indicativos de que o fato de haver uma pandemia em andamento não quer dizer que a proteção de dados vai ser minimizada”, diz. 

Rielli acrescenta que também é necessário o quanto antes definir se os dados dos cidadãos serão usados apenas durante o período de pandemia ou se terão algum outro destino depois que a questão sanitária envolvendo o coronavírus estiver sob controle. Muito sobre como essas informações deverão ser tratadas é baseado na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que foi aprovada em 2018 e começa a funcionar para valer em agosto de 2021.

“O que acontece é que a pandemia complexificou um pouco essa relação entre as normas. Mas ainda precisamos ter todos os princípios respeitados, incluindo a legalidade, finalidade e existência de um ciclo de vida dos dados. Eu acredito que os governos querem que a própria pandemia seja um fator determinante para normalizar a vigilância em massa, seja agora e, principalmente, depois que ela acabar”, completa.

De acordo com a pesquisadora do Data Privacy Brasil, ainda não é possível definir como os dados usados nesses sistemas de vigilância da pandemia vão perdurar (se perdurarem). “Com base na LGPD, cada tratamento de dados tem que ter sua finalidade informada de forma clara, e esse ciclo de dados requer transparência. É plenamente possível que, passado o contexto de pandemia, as tecnologias hoje usadas sejam aproveitadas. E a questão dos dados e da inteligência de dados geradas nesse período precisam ser analisadas com cuidado”, alerta.

Privacidade e vigilância coexistindo

É quase impossível imaginar que as coisas possam voltar atrás quando o assunto são sistemas de monitoramento dos cidadãos. Esses mecanismos podem não ser focados nos dados pessoais, e para isso surgiram e devem continuar surgindo novas leis. Contudo, softwares de inteligência talvez nunca mais desapareceram. E por este motivo é que são feitas adequações que, ao mesmo tempo que mantém o funcionamento dessas plataformas, não interfiram na privacidade dos usuários.

Em contrapartida, Marcia Castro, de Harvard, acredita ser difícil replicar sistemas de vigilância de outros países aqui no Brasil. Pegando como exemplo novamente a Coreia do Sul, Castro reforça que o sistema rígido de lá deu certo porque as pessoas já estão acostumadas com esse tipo de monitoramento 24 horas por dia. Isso em partes devido ao impacto causado pelo surto de SARS-CoV, outro coronavírus, “quando eles se preparavam para caso houvesse uma nova emergência de saúde pública para que fosse possível dar uma resposta”. 

“É preciso que haja uma relação de confiança muito grande entre a população e o governo. Mas é muito importante salientar também que nem tudo o que dá certo em um país dá certo em todos, ainda mais com tantos níveis de cultura e desigualdade”, explica Castro.

Para Rielli, o uso de dados continuará sendo uma pauta relevante tanto para grandes e pequenas empresas quanto para o poder público. Este último, inclusive, com a promessa de políticas públicas baseadas em dados e evidências, e não necessariamente em dados pessoais. Segundo a pesquisadora, esse é um processo que acabaria acontecendo mais cedo, mais tarde — a pandemia só deu uma forcinha e antecipou sua chegada, intensificando processos que já estavam acontecendo.

“A pandemia tem muitas preocupações de sobrevivência. O assunto que envolve os dados é uma questão no meio delas”, diz.