Em nosso primeiro texto, fizemos um rápido percurso dos processos que fazem parte do desenvolvimento independente de games. Como tudo começou, a ascensão dos motores de jogos e sua acessibilidade, além da publicação através dos grandes marketplaces.
Também chegamos a tocar em um ponto importante: o entendimento dos videogames enquanto cultura. Que tal seguirmos por ele?
Se você joga, é provável que não seja muito difícil concordar com a ideia. Façamos um exercício. Primeiramente, lembre do último jogo que você jogou. Seja ele um game de puzzle, ação ou aventura, não importa. Quais conhecimentos que você identifica no jogo, sejam através da narrativa ou das mecânicas? Certamente, também há regras. Quais são elas? E o estilo da arte, te lembra alguma coisa? Haveriam morais e costumes que a comunidade do jogo costuma seguir?
Frequentemente, meus pensamentos me pegam para sessões de autocrítica. Por que estudar videogames? Por que defender os games como objetos capazes de transmitir culturas?
Tenho que confessar uma coisa. No início, um dos motivos que e trouxeram até aqui era o mais simples de todos: eu gosto de jogos. Ora, se gostamos de algo, tendemos a defendê-lo, não? Creio que atualmente isso tenha diminuído um pouco, mas, com frequência, videogames servem de bode expiatório para problemas estruturais de nossa sociedade, como no caso da violência.
Atualmente, gostaria de chamar a atenção para a democratização do próprio conceito de cultura, ou de uma cultura popular dos videogames. Explico: em primeiro lugar, quando nos colocamos a estudar algo e fazê-lo em sua defesa, podemos buscar a sua legitimação – ou seja: o jogo alçando o patamar da cultura.
O próprio conceito de “cultura” está, a princípio, ligado a um sentido de “sala de ópera”, “alta cultura”, ou seja: um controle, um refinamento e uma domesticação do homem por ele mesmo. Nesta concepção, fala-se de uma pessoa “culta” como alguém que desenvolveu seus comportamentos com base em um padrão estipulado.
Mas que padrões são esses? Quem os inventa? E por quê? Se não tomarmos cuidado, podemos nos pegar com frequência almejando padrões culturais que dizem serem os corretos. Acontece que o conceito de cultura apresentado anteriormente é uma abstração aristocrática e classista dos séculos XVIII e XIX.
Assim, quando falamos por aí que “videogames são cultura”, podemos estar diante de um certo padrão vislumbrado. Padrão elitizado, “cult” como dizem por aí. A cultura enquanto posição de status social, em uma lógica conservadora, constrói padrões que seriam de “jogos bons” e “jogos ruins”; de “músicas boas” e “músicas ruins”. Depois de desqualificar conteúdos que não lhes tragam benefícios (em sua maioria, comerciais), esta visão elitizada chancela apenas aquelas culturas conferidas como virtuosas e carimbadas pela “sociedade de bem”.
Às vezes, é diante desta falácia que nos colocamos a serviço. Enquanto o formato almejado é o padrão imposto por quem possui os meios de produção, passamos as nossas vidas almejando chegar neste lugar: as salas de ópera do século XVIII e XIX.
Felizmente, o uso antropológico da palavra “cultura”, atualmente, parte para uma noção que foge ao elitismo. Ao invés do refinamento das pessoas por elas mesmas, trata-se de um processo de aperfeiçoamento das pessoas para o coletivo. De uma moderação de desejos e instintos pessoais a favor da sociedade.
Neste ponto, o pesquisador Roy Wagner nos diz que o cerne de nossa cultura reside em nossa ciência, arte, tecnologia, invenções e descobertas. Ela reside no todo – e também em suas peculiaridades.
Eu gosto de jogos. E você provavelmente também. Mas se pensarmos no videogame enquanto um fenômeno da cultura nos dias de hoje, precisamos pensá-lo a partir de um crescimento coletivo. Neste ponto, surgem estudos recentes em jogos digitais, ou game studies, que passam a problematizar questões que não víamos antes, na época em que (muito provavelmente) dávamos risadas de piadas como daquelas do Pânico na Tv.
Assim, questões de gênero, raciais, do modelo capitalista, etc… fazem todo o sentido de serem pensadas quando falamos dos videogames enquanto cultura, ao passo que não se tratam de pautas particulares, mas coletivas. Muitas veze saímos da “caixinha” que estuda videogames e passamos a observar conhecimentos de outras áreas, formando, desta forma, o que chamamos de estudos interdisciplinares. É muito difícil, mas absolutamente necessário.
Se quisermos continuar nos aprimorando em prol do coletivo, é mais do que necessário olharmos para fora. O interesse se inicia nas telas, nos consoles, no nosso setup gamer. Nossos gostos pessoais são muito importantes, mas eles não podem se impor ao coletivo – que, através da máquina pública e dos meios de produção monopolizados pelo capitalismo, acaba reproduzindo nossas opiniões pessoais e transformando-as em estrutura. É assim que um preconceito individual pode se transformar em racismo e fobias estruturais.
Referências e indicações
Um jeito bem rápido de começar a compreender sobre os conceitos de cultura é acessar a nossa tão querida Wikipedia. Dá uma olhada nesse artigo aqui.
Contudo, se você está interessade em saber um pouco mais, Roy Wagner escreveu um ótimo livro chamado A invenção da Cultura. O texto original é de 1975, e possui reimpressões pela Editora Cosac Naify.
Em termos de pesquisa acadêmica, comecei a estudar os videogames através do TIDD, programa em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, da PUC-SP.
Lá no TIDD, desenvolvi uma dissertação de Mestrado chamada “ Paradigma Shift: uma aventura em busca do jogo”. Embora o foco seja o estudo do jogo nas esferas da educação, o trabalho compreende o videogame enquanto objeto capaz de promover culturas. O material atualizado encontra-se aqui.
Por último, mas talvez um dos conceitos mais importantes de todos, seja a questão estrutural. Para compreendê-la melhor, faço uso de leituras na esfera do racismo. E um dos livros mais interessantes para se compreender este fenômeno é a obra Racismo Estrutural, do Prof. Silvio de Almeida. O livro é este aqui.
* Jaderson Souza é doutorando em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela FFLCH, na USP e Também é mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. É presidente da Game e Arte, que desenvolve jogos e facilita processos educacionais por meio deles.