Por toda a sua história, a interação com jogos digitais e analógicos tem proporcionado momentos de emoções e sentimentos. Seja a alegria dos encontros nos fliperamas, o senso de pertencimento em espaços públicos (virtuais e presenciais), ora a amplificação de comportamentos hostis em videogames de competição online. Através deles, podemos experimentar a intensa sensação de humanidade.
Comecemos pelo começo. Quando penso em afetividade, a primeira referência que encontro vem de uma série de reflexões na terapia. Em primeiro lugar, é surpreendente o quão é importante tirarmos um tempo pra pensarmos sobre nós mesmos. Presos na cordinha entre trabalho cansativo e entretenimento massificado, não é nada óbvio que tiremos algumas horas da semana para simplesmente pensar.
Esta “cordinha” que escrevi acima foi registrada por uma pesquisadora super importante: Hannah Arendt. No seu livro “A Condição Humana”, ela coloca como situação predominante na vida da cidade um ciclo nada virtuoso e que dificilmente pode ser quebrado. Se por um lado trabalhamos cada vez mais, o fazemos por um motivo: aumentar nossa capacidade de consumo. E enquanto não estamos trabalhando, precisamos descansar. E é aí que entra a indústria cultural.
Aliás, a publicação do livro coincide com o auge do processo de industrialização no Brasil, no governo Kubitschek, e que tinha como jargão “crescer cinquenta anos em cinco”. Haveria alguma ligação entre ideias dos anos 1950 e os dias de hoje? Cada vez mais acelerado, me arrisco em dizer que esse movimento entre trabalho-entretenimento passa a ter uma função importantíssima para a manutenção da indústria de videogames massificada.
Será que gostamos pra valer dos videogames AAA?
Talvez a linha entre o sentimento de “gostar” de alguns jogos ou submeter-se a repetições de mecânicas infinitas seja bem tênue.
Não tenho um arcabouço teórico para falar sobre cognição e videogames. O que poderia dizer sobre mecânicas é algo bem prático e que faz parte dos trabalhos de um game designer. Enquanto sistemas em loop, as mecânicas de videogame constroem repetições. E nosso cérebro adora isso. Desvendar padrões de jogo, buscar estratégias que funcionam bem, repetir. Juntar o looping da mecânica principal do jogo com um bom sistema de recompensas é a fórmula para criar uma palavra em nossas bocas: “Topzera”.
Particularmente, prefiro exprimir essa sensação com um “dahora”, ou “massa”. Não importa.
Enquanto jogadores, é bacana sabermos dessas coisas. É importante compreendermos o quanto um jogo se apoia (ou não) no exagero de repetições e recompensas. Sim, a enxurrada de baús, moedas e estrelinhas que você recebe em um jogo pode liberar descargas de dopamina, capazes de te darem a sensação de prazer e humor. É daí que surgem algumas relações de videogames e vício.
Mudemos um pouco o fio da meada. Embora a questão de “gostar” de algo esteja relacionada com a satisfação cognitiva, emoções e sentimentos com videogames também remetem a histórias do nosso cotidiano.
Quando adultos, muitas dessas histórias remetem à nostalgia. Momentos no fliperama, encontros com amigos para jogar, zoação geral. Para alguns de nós, o tempo dos videogames passou. Como sabiamente disse Huizinga em 1938, a seriedade procura excluir o jogo, tirando a importância da ludicidade em nossas vidas, nos punindo por algo que não é nossa culpa: crescer.
Tudo bem. Esta mesma seriedade presente no trabalho é contraditória. Ao mesmo tempo que surgem frases do tipo “videogame é coisa de criança”, o próprio capitalismo trata de desmentir essa informação. Afinal, jogadores de Mega Drive e Super Nintendo cresceram, e agora formam parte fundamental do mercado consumidor de videogames.
Dentre todas as histórias possíveis com videogames, o que mais me chama a atenção neste momento é a sensação de preenchimento de um vazio que a vida nos traz quando ela não cumpre determinadas funções.
Como o trabalho é sério demais, o videogame chega a cumprir a função do descanso. O círculo mágico abarca todos os nossos sentidos, muitas vezes nos levando pelo flow, pelo clicar dos botões. Nas sábias palavras de uma querida aluna de 85 anos, dona Eda, o game é capaz de nos fazer esquecer da vida cotidiana e, mesmo que momentaneamente, “queimar o nosso feijão”. E está tudo bem. A condição que gostaria de reiterar aqui, é que não deixemos perder a noção de que estamos jogando.
Mas que também haja espaço para experiências mais profundas. Aquelas presentes nas grandiosas narrativas dos RPGs. E também nos videogames autorais, independentes, pequeninos. Gentis pedaços de código na tela, feitos com muito carinho, que nos permitem viver histórias e perspectivas diferentes. Imergir. Mas também emergir, encontrar pessoas por aí. Jogar com elas. Ou também ter a feliz surpresa de trombar com desenvolvedores que colocam suas criações debaixo do braço, procurando mostrá-la para você. Sim, você mesmo.
Enfim, afeto em forma de jogo.
Vejo você no futuro. Abraços!
Referências e indicações
- Creio que as ideias mais importantes presentes neste texto façam parte do livro de Hannah Arendt, “A Condição Humana”. Nesta maravilhosa obra, a pesquisadora discorre sobre totalitarismo, tradição e sua relação com atividades fundamentais do ser humano, como o trabalho, a ação, a obra e a fabricação de coisas.
- Mais uma vez, não poderia deixar de citar o livro mais famoso sobre jogos. Trata-se do “Homo Ludens”, de Johan Huizinga, de 1938. Mandou bem, Johan!
- Quando me refiro à jogos AAA, me refiro á parte da indústria que detém os maiores orçamentos para a produção de videogames. Como de praxe, há um bom artigo na Wikipedia sobre isso.
- Por fim, quando falo de trombar desenvolvedores por aí, não consigo parar de lembrar dos tantos espaços culturais que estivemos presentes. A pandemia interrompeu a circulação. Desde então, sentimos muita falta de encontrar pessoas e levar videogames pra vocês. Enquanto não podemos voltar, vale aquela moral de sempre nas redes sociais e também com reviews na página dos nossos jogos.
* Jaderson Souza é doutorando em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela FFLCH, na USP e Também é mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. É presidente da Game e Arte, que desenvolve jogos e facilita processos educacionais por meio deles. As opiniões do autor não necessariamente refletem as do Bitniks.