A foto de Daniel está na televisão mais uma vez. Minha garganta fica seca sempre que vejo os jornais falando dele. Tudo ainda é amargo. Pego o controle remoto para trocar de canal, mas minha mãe me impede, dizendo que quer assistir. Penso em sair da sala, mas apenas respiro e fico imóvel, devolvendo o controle para um canto do sofá, me perguntando por que diabos escolheram justo aquela foto. Daniel não gostava dela.
Sei disso, porque, além de irmão mais velho, ele era meu melhor amigo.
Minha mãe começa a soluçar. Essa semana os jornalistas não vieram, mas a dor continua. Tudo foi tão rápido. Do nada tinha um monte de gente querendo falar com nossa família. Entrevistas, matérias especiais, convites para manifestações. As pessoas estão na rua, agora mesmo, é isso que o noticiário mostra. Milhares de pessoas em todo o país pedindo justiça. Mais uma vez. Não só por ele, mas também por outras pessoas que a polícia matou. Outros nomes são lembrados, o de Daniel é apenas o mais recente. Tampouco será o último.
Me levanto. Não aguento mais ver isso. Não aguento mais ver minha mãe chorando e dizendo que o certo é os filhos enterrarem os pais, não o contrário. Ou me olhando como se eu também pudesse deixá-la a qualquer momento, sumindo em um piscar de olhos. Ela só tem a mim agora. E é por isso que vou ter que procurar um emprego. Meu irmão pagava a maior parte das contas e ficava me dizendo que eu precisava continuar estudando, pois só assim teria um futuro melhor. Sei exatamente o que ele me diria se soubesse que há dias não apareço na escola. Desde que cheguei em casa no meio da tarde e soube do ocorrido. Assim, em plena luz do dia.
Quero ir para o meu quarto, mas é o pior lugar da casa. Eu dividia o espaço com Daniel: a cama, as roupas, tudo dele está lá. Eu quase rasguei o par de ingressos que ele colocou na parede para lembrar que o jogo estava próximo. Mesmo morando tão perto, nunca fomos ao Maracanã. E o maior sonho dele era ver o Flamengo jogar em uma final. Eu nem gosto tanto assim de futebol, mas também estava animado porque iríamos juntos.
Por causa disso e de todo barulho na mente, saio de casa sem minha mãe perceber. Normalmente eu avisaria, mas como está de noite, ela tentaria me impedir. Ontem mesmo veio falar comigo sobre horário de voltar para casa, que eu preciso ter cuidado. Mas enquanto falava, fiquei pensando em como Daniel sempre foi muito cuidadoso, trabalhador e honesto. E nada disso impediu o que aconteceu.
De qualquer forma, se tudo der certo, quando eu voltar para casa ela não vai mais estar chorando. Daniel vai estar aqui com a gente.
Vou até a casa de Júlia, que fica a uns cinco minutos de distância da minha. O caminho parece mais longo porque estou andando mais devagar. Talvez esses passos lentos sejam por que ainda estou em dúvida e com medo. Nós não testamos o artefato o suficiente, não fomos muito longe e não sabemos se é possível mudar algo. Mas ele funciona, disso temos certeza. Por mais improvável que seja.
Não sabemos se é magia ou tecnologia, e o objeto é pequeno demais e não conseguimos abri-lo. Aquele metal é mais resistente do que parece. Não sabemos quem criou ou de onde veio. Encontramos por acaso na esquina da nossa escola dois meses atrás. Talvez alguém tenha deixado cair, talvez o dono ou a dona esteja até procurando por ele agora. Só sei que demoramos semanas para descobrir uma forma de ativá-lo. É um objeto muito delicado e há partes que precisam ser deixadas em posições exatas. Um milímetro a mais ou a menos e ele não funciona.
Bato na porta de Júlia e ela abre. Ela tem cabelos cacheados volumosos, a pele negra como a minha e uma pinta próxima ao lábio superior. Seus olhos demonstram saber minhas intenções. Ela sai e fecha a porta, não quer que alguém na sala nos ouça e muito menos que eu pegue o artefato antes de pelo menos termos uma conversa.
— Douglas, você não está pensando em…
— Sim — digo sem deixar ela terminar. — Não tenho escolha. Minha mãe precisa dele, eu preciso dele.
— Mas isso pode ser perigoso… mexer com o passado. A gente falou que não ia tentar mudar nada. A gente prometeu.
— O que você faria se fosse com a Jéssica ou alguém da sua família?
Ela engole em seco. Sei que no fim não vai me impedir, só está tentando colocar um pouco de razão na minha cabeça. Mas já pensei demais. E estou cansado de só pensar, e pensar, sem fazer nada sabendo que posso ao menos tentar reverter a situação.
— Tudo bem. — Júlia suspira e começa a abrir a porta. — Só espero que funcione.
— Eu preciso tentar.
Depois de alguns minutos na sala, porque a mãe de Júlia quer saber como minha família está, vamos para o quarto da minha amiga. Sem demorar ou voltar a tentar me fazer mudar de ideia, ela vai até seu guarda-roupas e tira dele uma caixa de sapato. Certamente não é o lugar mais seguro, mas ninguém desconfiaria do que aquele pequeno objeto guardado dentro da caixa é capaz de fazer.
Júlia me entrega o artefato. Ele parece uma joia. Não é tão grande, então poderia até ser usado como pingente de um colar. Tem cor dourada com algumas partes enferrujadas e seu formato se resume a uma ave dentro de um círculo. As pernas da ave são afastadas uma da outra, e tanto as penas da cauda quanto a cabeça são móveis. Além disso, na barriga do pássaro há um pequeno painel digital.
— Quer que eu vá com você? — pergunta Júlia.
O artefato leva apenas quem o segura, também testamos isso.
— Não, preciso fazer isso sozinho.
Mexo nas penas daquele pássaro estranho e com isso ajusto o tempo no painel para dez dias atrás, aquela segunda-feira. Olho para Júlia antes de terminar e me despeço enquanto meus olhos pedem perdão por quebrar nossa promessa. Mas uma promessa não é nada diante da falta que faz meu irmão. Respiro fundo, porque não haverá volta. Respiro fundo, porque nunca fui corajoso, mas agora é preciso coragem. Giro o pescoço da ave totalmente para trás e sinto meu corpo tremer, toda minha existência entrando em erupção, todo meu ser se desfazendo no passado a caminho de um tempo ao qual não mais pertenço. A viagem se inicia. O passado é destino. E meu único desejo é conseguir salvar meu irmão.