Há oito anos, em maio de 2021, a atriz Angelina Jolie escreveu um artigo, publicado no The New York Times, sobre a sua decisão de realizar uma dupla mastectomia — cirurgia para retirar os seios. O motivo foi uma mutação no gene BRCA1, que indicava uma probabilidade de 87% de ela desenvolver câncer de mama. Na época, a artista disse que esperava incentivar outras mulheres a realizar exames genéticos, mas lamentou que o exame custasse US$ 3 mil, o que seria um obstáculo para muitas pessoas.
Desde então, o campo da genética continuou evoluindo e novas tecnologias diminuíram o tempo e os custos para se fazer um sequenciamento de DNA. Atualmente, diversas empresas brasileiras já oferecem esse tipo de serviço com foco em ancestralidade e saúde. Além da vertente comercial, estudos também vêm revelando aos poucos os benefícios de conhecer melhor o genoma humano para desenvolver novos tratamentos ou prevenir doenças. Por outro lado, os pesquisadores alertam que as pesquisas ainda são iniciais e nem sempre podem oferecer uma verdade absoluta sobre o perfil de um indivíduo.
O que é sequenciamento de DNA
Antes de falar sobre os benefícios e limitações do sequenciamento de DNA, vale explicar o que é exatamente esse processo. Ricardo Di Lazzaro Filho, fundador e co-CEO da Genera, empresa que faz sequenciamento genético, explica que o DNA é uma molécula extremamente comprida que está presente nas células do corpo humano. “É uma espécie de manual de instruções com três bilhões de letras. Cada pessoa tem uma sequência de letras específica, sendo que 99,9% dessa sequência é igual. Mas é o 0,1% que nos diferencia.”
O processo de sequenciamento começa com a coleta de saliva. “Quando você cospe naquele potinho, o que está indo ali junto com a sua saliva são células da boca, principalmente da bochecha. E nessas células é que está o DNA. Após a extração, é realizada uma série de reações bioquímicas em laboratório que permitem que a gente determine a sequência de nucleotídeos”, conta Lygia da Veiga Pereira, pesquisadora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP).
Caso você não se lembre das aulas de biologia da escola, o DNA é composto por milhões de nucleotídeos, que, por sua vez, contém quatro tipos de bases nitrogenadas: Adenina (A), Guanina (G), Citosina (C) e Timina (T). São essas “letras” que formam o “manual de instruções” e que são analisadas no processo de sequenciamento.
Pereira diz que dentre as 3 bilhões de letras, no máximo, 1 milhão delas são analisadas. E isso já é suficiente para obter algumas informações, como a ancestralidade.
Segundo o fundador da Genera, o sequenciamento completo do DNA é um processo caro e geralmente utilizado mais em pesquisas. Ainda assim barateou muito: o primeiro processo do tipo feito com genoma humano custou cerca de US$ 3 bilhões, mas agora já é possível fazer por menos de US$ 1 mil.
Mas como os custos caíram tanto assim? A geneticista Lygia Pereira explica que isso foi graças aos avanços da tecnologia:
O que causou uma grande revolução foi uma nova tecnologia que a gente chama de ‘sequenciamento de nova geração’. Isso surgiu por volta de 2007, 2008 e permite que a gente sequencie vários DNAs ao mesmo tempo, em paralelo, em vez de pedacinho por pedacinho como era antigamente. Assim, agora é possível sequenciar muito mais DNA, em um tempo mais curto e com um custo muito mais baixo.
O que o sequenciamento de DNA pode te oferecer?
Se antes o sequenciamento de DNA era restrito a pesquisas, agora qualquer pessoa pode ter acesso às informações guardadas em suas células para diferentes fins, seja para descobrir a ancestralidade, encontrar parentes ou cuidar melhor da saúde. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, as empresas estão conseguindo oferecer o serviço a preços cada vez mais baixos.
No caso da Genera, são vendidos três pacotes: Básico (R$ 199), Standard (R$ 499) e Completo (R$ 799). Os serviços contemplados abrangem as linhas Ancestralidade, Bem-Estar e Saúde oferecidas pela empresa, sendo que esta última está disponível apenas no pacote completo.
Ao adquirir o pacotes que abrangem as linhas Bem-Estar e Saúde, é possível ter acesso a uma série de informações, incluindo: deficiência de determinadas vitaminas, eficácia da dieta low carb, armazenamento de gordura, performance atlética, capacidade cardiorrespiratória, predisposição ao alcoolismo, impulsividade, resposta a certos medicamentos e risco de desenvolver doenças. Estes são apenas alguns exemplos da extensa lista disponível no site da empresa.
A oferta de tais serviços foi possível graças às pesquisas que continuam avançando no campo da genômica e que, além de auxiliar na medicina preventiva, também contribuem para o tratamento de doenças que já se manifestaram em um paciente. No caso do câncer, por exemplo, o sequenciamento do DNA do tumor pode ajudar a escolher a melhor terapia para cada indivíduo, aumentando a eficácia e reduzindo o custo do tratamento, conforme explicou Lygia Pereira em uma live realizada pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Por meio do sequenciamento do DNA, é possível descobrir as chamadas características “mendelianas” — ou seja, aquelas que são determinadas por um único gene. A hemofilia é classificada como uma dessas doenças que são consideradas 100% genéticas.
Voltando ao caso da Angelina Jolie, a mãe da atriz já havia falecido de câncer aos 56 anos de idade, e o exame genético apenas confirmou a alta probabilidade da artista também manifestar a doença. No entanto, apenas 10% dos casos de câncer são hereditários. Portanto, o fato de você não ter uma predisposição não é garantia de que você está livre de qualquer chance de receber um diagnóstico algum dia.
Outros tipos de predisposição, como a hipertensão, não dependem de um único gene, mas de centenas deles e ainda têm influência do ambiente ou estilo de vida de uma pessoa. Chamadas de características “complexas”, elas podem se manifestar ou não dependendo dessa interação entre o nosso genoma e nossos hábitos, conforme explica Pereira:
Se você fuma, come muita gordura e é sedentário, mesmo que você não tenha uma predisposição genética forte para desenvolver hipertensão, o seu estilo de vida é tão ruim que isso causa uma hipertensão. E o reverso também pode acontecer; você pode ter uma porção de genes de predisposição à hipertensão, mas se você tiver um estilo de vida saudável, talvez não manifeste isso.
Entre as características mendelianas e aquelas determinadas pelo ambiente (como a probabilidade de ter sarampo, por exemplo), existem inúmeras características complexas. Ou seja, apesar de a genômica já oferecer muitas possibilidades, também há muitas limitações que mostram que o sequenciamento do DNA nem sempre oferece uma resposta para tudo. E essa é uma das principais críticas feitas por pesquisadores em relação à comercialização do procedimento.
As limitações do sequenciamento de DNA
A geneticista Lygia Pereira afirma que a genética das características complexas é algo que ainda está sendo estudado e que não há conhecimento suficiente para interpretar o genoma de uma pessoa com precisão. “Ao meu ver, essas empresas que falam direto com o consumidor, sem passar por um médico, estão vendendo um serviço cedo demais. É algo pouco preciso e que o público que está comprando não entende ainda as limitações desse resultado.”
Mayana Zatz, professora de Genética do Instituto de Biociências da USP e coordenadora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-tronco, diz que “existem empresas confiáveis e as não-confiáveis” e que a melhor forma de se oferecer um serviço de forma ética é informando a população.
Ricardo Di Lazzaro Filho, fundador da Genera, também reforça que a genômica ainda é uma área muito nova e que há muitas coisas que as ferramentas e a ciência atuais não conseguem explicar. Segundo ele, sua empresa mantém parcerias com pesquisadores e estuda diferentes variantes para entender a probabilidade de certas características se manifestarem. Conforme mostram os exemplos disponíveis no site, os resultados trazem alguns detalhes como o genótipo e a população de estudo em que foram baseados. Na avaliação de “armazenamento de gordura”, a parte de “Sugestões” também traz a seguinte advertência: “Para uma avaliação mais detalhada e prescrição de uma dieta balanceada e/ou um treino personalizado, consulte seu médico, nutricionista e/ou profissional de educação física.”
Mesmo em relação à ancestralidade, Elena Calvo Gonzalez, professora no Departamento de Sociologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que é preciso cautela ao passar as informações. “É preciso levar em consideração que existem muitas ancestralidade sub-representadas e que os marcadores continuam crescendo. Se eu analisar o mesmo indivíduo daqui a 15 anos, os resultados podem ser diferentes. Por isso, não se pode passar as informações como verdades absolutas.”
Outra preocupação com a qual a empresa tem de lidar, segundo Di Lazzaro, é em relação às informações sobre doenças que podem não ter cura. Embora Zatz, da USP, afirme ser contra o diagnóstico em pessoas jovens, o fundador da Genera discorda. “Eu entendo que isso é importante mesmo para doenças que não tem cura. Primeiro porque pode surgir uma cura no futuro ou tratamentos capazes de atrasar o desenvolvimento da condição. Você também pode levar a vida de uma maneira diferente ou ainda realizar uma organização patrimonial”. Ele ressalta, no entanto, que isso é uma escolha individual que deve ser respeitada. O mesmo se aplica ao processo de encontrar parentes. Di Lazzaro diz que é um ponto extremamente sensível e, por isso, a empresa requer um consentimento para que as pessoas participem.
Um dos grandes obstáculos é que a própria história do sequenciamento do genoma humano já se iniciou de forma limitante. Grande parte do material coletado é proveniente de populações europeias e esse viés acaba por influenciar o próprio desenvolvimento da medicina relacionada à genômica. “Mutações se manifestam de forma diferente dependendo da ancestralidade”, explica a professora Mayana Zatz. No ano passado, a equipe liderada por ela concluiu a maior análise genética já feita com idosos em toda a América Latina. Foram dez anos de trabalho e 1.171 brasileiros estudados, com o objetivo de entender melhor como podemos envelhecer de uma forma saudável.
Ela conta que a análise de genes depende de um banco de dados, daí a importância da pesquisa com idosos. “Se acharmos uma mutação em um jovem que também está presente no banco de dados de idosos saudáveis, sabemos que aquilo não causa uma doença necessariamente.” Prova disso foi uma das descobertas feitas com uma idosa de 93 anos que apresentava o mesmo gene identificado na família da Angelina Jolie, e que era associado ao câncer de mama, mas que nunca havia manifestado a doença.
Zatz também já participou de estudos que analisaram a relação entre a genômica e a Covid-19 na população brasileira. Entre os casos analisados, ela cita casais que convivem juntos, mas que apenas um dos indivíduos manifesta a doença. Isso pode ser atribuído à existências dos chamados “genes de resistência” e de “suscetibilidade”. As pesquisas sobre o assunto ainda estão em fase inicial, no entanto, e são necessários mais dados para compreender melhor de que forma o DNA pode influenciar os casos de Covid-19.
Outro estudo que está sequenciando DNAs de brasileiros é o Projeto DNA do Brasil, liderado por Lygia Pereira. O objetivo é sequenciar o genoma de 40 mil brasileiros e disponibilizar as análises em bancos de dados públicos para auxiliar pesquisas. Embora essas iniciativas sejam extremamente importantes para entender melhor as características da população brasileira e como as variantes genéticas se manifestam de diferentes formas, Gonzalez, da UFBA, também alerta sobre o risco de uma análise populacional ser levada para o nível do indivíduo. “ Em uma clínica, deve ser analisado o indivíduo que está ali na frente, não com base em características de uma população inteira. Afinal, não existe uma população que não seja multiétnica; mesmo a ancestralidade europeia não é toda igual.”
Por fim, uma das grandes preocupações, assim como tudo que envolve o armazenamento de dados, é a privacidade. “A Genera entende que as informações pertencem às próprias pessoas. Não vendemos os dados dos nossos clientes; eles ficam armazenados em nuvem e são criptografados. Além disso, também contratamos consultorias externas para garantir que estejamos sempre de acordo com a LGPD”, afirma Ricardo Di Lazzaro Filho.
Lygia Pereira, da USP, também ressalta que apesar de todos os benefícios do sequenciamento do DNA, a privacidade pode representar um risco grande, com uma série de consequências para o indivíduo que tiver suas informações expostas:
É muito bom eu saber que tenho a predisposição para um câncer de mama porque eu posso tomar medidas preventivas. Eu vou começar a fazer muito cedo as minhas mamografias, talvez eu faça duas vezes por ano, ou talvez eu resolva simplesmente retirar as mamas como fez a Angelina Jolie. Mas, por outro lado, se a minha seguradora de saúde sabe disso? Será que ela tem o direito de aumentar o custo da minha apólice de seguro? Será que se eu tentar fazer um seguro de vida não vão deixar? Será que um empregador não vai querer me contratar porque acha que eu vou faltar muitos dias por causa da doença? É importante pensar sobre que uso será feito da informação do nosso genoma. Que isso seja utilizado em benefício das pessoas, e não como uma forma de preconceito, de segregação.