No texto de março, escrevi sobre o conceito de “cultura” como uma sala de ópera. Na dita “alta cultura”, a sociedade espera um padrão elitizado do conhecimento, nada popular, construída a partir de ideias de aristocratas e classistas dos séculos 18 e 19. Após ressignificações do conceito, passamos a compreender a ideia de cultura como invenção, como um aprimoramento das pessoas para o coletivo.
Durante este mês, uma das questões que vieram me inquietando é sobre a produção de saberes. Este incômodo, na verdade, nasce na longínqua época da escola. Pouco questionador, o modelo de estudos pelo qual passei foi o tradicional: aulas expositivas em sua maioria, perguntas e respostas bem óbvias durante as aulas, provas com pouco teor interpretativo.
Pois bem. A vida passa, e agora assumo também uma posição de escrita. E quando nos colocamos na posição de falar, também levamos conosco os modelos que aprendemos na escola. A noção de bom ou ruim está aqui. A coesão lógica e estética, também. Lógica aristotélica de começo, meio e fim: presente!
Gosto do exercício da escrita. O método que uso é mais ou menos assim. Em primeiro lugar, escolho escrever logo depois do café da manhã. A mente tá fresca, a barriga está satisfeita, e o texto sai mais espontâneo. Sento em frente ao computador, com o tema já na cabeça, e abro o editor. Aproveito pra pegar todas as referências que vou utilizar. Escrevo.
Mas nem tudo sai como esperado. Uma tela em branco aceita tudo! A tela aceita, mas nossos ideais de coerência, não. Geralmente, apago no mínimo metade das escritas que faço. Na pesquisa, jogo fora dezenas de versões. Não que estejam tão ruins, mas as frases teimam em fugir das amarras que aprendemos a criar. Pra você ter uma ideia, na versão anterior desse texto aqui, haviam frases sobre leituras, praia, escravidão e… fazer café.
Falando desse jeito, a junção de todas essas temáticas pareça bizarra. Só que mais doloroso ainda é apagá-las. Seguindo um modelo esperado por eu mesmo para um texto de coluna, busco na lógica, na linearidade e na construção de um “todo” o padrão de qualidade a ser perseguido.
Há diversas formas de produção de saberes. Não me refiro aos formatos midiáticos, como textos, vídeos ou games. A alusão aqui é aos caminhos percorridos para a construção de conhecimentos e concepções que adotamos, muitas vezes por padrão, como a linearidade ou a impossibilidade de revelarmos os arredores dos nossos textos, sob a perspectiva de que vamos “fugir demais do assunto”.
Uma das formas de produção de conhecimentos é revelada através da hipermídia. Hipermídia, segundo o Prof. Dr. Sérgio Bairon, é “a expressão não linear da linguagem, que atua de forma multimidiática e tem sua origem conceitual no jogo”.
Na verdade, esse formato não é tão novo assim. Ao contrário, ele se aproxima bastante da forma com que vivemos nossas vidas. Já em comparação com os modelos mais tradicionais, principalmente os encontrados em escolas e universidades, ela acaba trazendo concepções bastante diferentes.
Não se trata de utilizar videogames na escola. Ou de transformar conteúdos complexos em algo mais palatável. Trata-se de um manifesto por um modelo de produção de saberes transformador, que emancipa, trabalhando a partir de matrizes de pensamento que se aproximam mais da forma com que nossos pensamentos ocorrem diariamente. Explico.
A hipermídia não é linear. Ela não tem começo, meio ou fim, podendo ser acessada através de vários pontos. Imagine um labirinto, com várias entradas e saídas. Você escolhe por onde entrar, mas seu percurso certamente será diferente de outras pessoas.
Atuando no meio digital, a hipermídia também é multimídia. Ela pode conter textos, fotos, vídeos, sons, jogos, etc. Quando “inaugurada” a world wide web, tivemos um encontro do hipertexto (leitura e escrita não sequencial) com outras formas de mídia. A produção fechada e ambientes interativos em CD-ROM se juntou com a coletividade e interação manifestada pela internet.
Tento me esforçar para adotar o formato hipermídia (ou hipertexto) de produção de conhecimentos. Por vezes, faço o exercício de escrever frases que vêm à minha cabeça, sem que necessariamente haja uma ordem predefinida. Bem, depois de muitos anos sendo treinado a produzir de maneira linear, me pego com frequência traindo a nova iniciativa. Dá medo de produzir algo e, no final, ficar com a sensação de que fiz algo errado. Nessas terras, acho que sou um imigrante digital.
Contudo, é aqui que as estruturas podem mudar. Trata-se do fim da predominância da metodologia clássica, do texto linguiça, da lógica de Aristóteles. De fugirmos da ideia de certo ou errado, assumindo a complexidade em tudo o que fazemos. De que a completude está também no não dito.
Neste ponto, o Prof. Dr. Sérgio Bairon nos aponta para um novo caminho: o diálogo como conclusão. Ao invés de nos vermos obrigados a dar uma resposta certa, que possamos ver, ouvir e argumentar. O valor passaria a ser mais do processo e menos de um resultado “esperado”. Ora, cada vez menos temos a possibilidade de afirmar, de maneira indiscutível, o significado de um texto.
Me lembro fortemente dos encontros com o Prof. Bairon, na Universidade de São Paulo. Durante os seminários de Pós-Graduação, frequentemente ele incentiva os pesquisadores a experimentar novos modelos de produção de saberes. Embora a universidade ainda seja bastante fechada para estas empreitadas, já houveram dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas no formato de performances ou até mesmo de jogos digitais.
Já pensou em fazer seu TCC no formato de um game?
Penso que este modelo mais complexo também é mais democrático. Ele foge do padrão centrado na figura do professor como o grande e único produtor de saberes, ou do modelo acadêmico massificado. Na hipermídia, nossa posição de audiência muda radicalmente, pois, caso tomemos uma posição passiva, não sairemos do lugar. Deste modo, somos coautores, na medida que que escolhemos o caminho percorrido do conhecimento. Inventamos e reinventamos nossa cultura.
Vejo você no futuro. Abraços!
Jaderson Souza
@talktojaderson
Referências e indicações
Neste texto, a principal referência utilizada é o livro “O que é hipermídia”, do Prof. Dr. Sérgio Bairon. A leitura é bastante fluida, e o texto é fundamental para compreendermos as possibilidades do meio digital.
Outra referência bem interessante que apresenta reflexões sobre novas mídias e dinâmicas presentes na cultura é “O chip e o caleidoscópio”, da Prof. Dra. Lucia Leão.
Deixo aqui três exemplos do conceito de hipermídia aplicado em produções acadêmicas.
- Dissertação de Mestrado à respeito do CD-ROM Diadorim: histórias da região de Diadema construídas através de hipermídia. De Zilma Maria Cavalheiro.
- Paradigm Shift: uma aventura em busca do jogo, de Jaderson Souza
- A produção do game acadêmico Ilha Cabu, de Arlete dos Santos
* Jaderson Souza é doutorando em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades pela FFLCH, na USP e Também é mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP. É presidente da Game e Arte, que desenvolve jogos e facilita processos educacionais por meio deles. As opiniões do autor não necessariamente refletem as do veículo.