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Herança digital: como funciona a partilha de NFTs, criptomoedas e skins de games

Imagem: Lindon Johnson/Bitniks

Itens digitais já viraram algo tão comum que, aos poucos, estão se tornando também uma preocupação jurídica. Se você tem aí na sua coleção uma arte digital em NFT, um punhado de bitcoins, dogecoins ou qualquer outra criptomoeda, é bom pensar em qual será destino delas caso você bata as botas. O mesmo vale para aqueles bens sem um valor tão palpável, como itens digitais em games, skins ou acessórios de jogos. Será que esses valores podem ser partilhados com o seu marido ou a sua esposa em um eventual divórcio? Ou seria possível deixá-los como herança aos seus descendentes?

O assunto motivou discussões pela internet — como esta, no Reddit, na qual brasileiros buscavam entender se era mesmo necessário incluir skins do CS como patrimônio em uma eventual futura partilha de bens em um processo de divórcio. Para entender o que é legal ou não em termos de bens digitais, o Bitniks conversou com Jorge Rosa Filho, advogado que é membro da comissão especial de direito de família e sucessões da OAB federal e pesquisador na UFSC. 

Em resumo, descobrimos que a maioria das coisas está numa área cinzenta. Ou seja, não há tanta clareza de detalhes (ou então, eles dependem dos contratos firmados previamente). Mas uma coisa é certa: tentar “evadir” seus bens por vias digitais, como especularam os redditers no post que citamos acima, pode ser uma péssima ideia. 

Partilha de itens digitais é direito

As leis que regem a partilha de bens entre um casal são diferentes das leis que estabelecem a forma de dividir uma herança entre os herdeiros.

No caso da partilha de bens de um casal, onde ambos estão vivinhos da Silva, tudo vai depender do regime de partilha estabelecido no momento do matrimônio. No Brasil, quando duas pessoas se casam, elas podem escolher os regimes de comunhão total de bens (onde tudo que cada uma das partes possui é dividido posteriormente entre o casal), comunhão parcial de bens (tudo o que foi adquirido pela dupla após o casamento é dividido entre as duas partes) ou separação total de bens (onde há independência de cada cônjuge, basicamente).

Quando o casal não faz nenhuma escolha específica, o regime da comunhão parcial de bens é considerado uma espécie de “padrão” nos casamentos. De acordo com Rosa Filho, esse regime legal considera que se partilham os valores e ativos na data da separação de fato. “Se eu coloquei, por exemplo, R$ 200 mil em skins de jogos, não importa se eu posso ter um valor de resgate maior lá na frente [devido a qualquer valorização]. O que importa é o quanto ele vale na data da separação de fato”, explica o especialista.

Existe também a possibilidade de o juiz da separação estabelecer a necessidade de convocar um especialista — conhecido judicialmente como perito — para estabelecer o valor real daqueles ativos digitais. “Pode ser um jornalista ou um gamer reconhecido, contanto que seja alguém neutro e que tenha conhecimento técnico suficiente para consultar o mercado e cotar quanto aquele bem vale”, detalha Rosa Filho. 

É importante ressaltar que em um processo de partilha quem elenca os bens do casal são as partes que estão se divorciando. Ou seja, se você tem uma companheira que tem muitos ativos digitais em games, NFTs e criptomoedas, é preciso lembrar de fazer essa listinha na hora de partilhar os bens em uma separação.

“Se a pessoa [que está se separando] não sabia [dos ativos digitais], ela não vai fazer acrescentar [esse item] no divórcio”, confirma Rosa Filho. No caso elencado no Reddit, se a esposa desse usuário não soubesse dos milhares de reais que ele pode ter alocado em games, talvez ela não se lembrasse de colocar as skins de jogos entre a lista dos bens a serem partilhados, por exemplo. 

No entanto, se você for o cônjuge, saiba que você ainda tem espaço legal para reclamar esses bens que não foram compartilhados. Isso porque se depois do divórcio uma das partes chegar a descobrir que o companheiro ou companheira tinha ativos desconhecidos, pode estabelecer a chamada “sobrepartilha” — que permite incluir mais itens com base em fatos novos. “É uma maneira de complementar o meu pedido de partilha”, ressalta Rosa Filho.

Termos de uso

Na partilha, quem tem os direitos sobre os bens estão vivos e o que rege as possibilidades legais é o direito de família. Já na herança, o proprietário dos itens digitais já não está mais por aqui — e, neste caso, a legislação que determina o que deve ser feito está sob a alçada do direito de sucessão.

Resumindo em português: se a passagem dos bens digitais acontece quando o proprietário ainda está vivo, a regra é diferente de quando o dono dos ativos virtuais não está mais aqui para decidir. E aqui a coisa é um tanto mais complicada do que na partilha, porque vai depender muito do tipo de ativo digital que estamos falando e das regras que regem aqueles bens ou serviços.

De acordo com a experiência de Rosa Filho, a herança de ativos digitais só acontece com mais facilidade quando esses bens são efetivamente uma propriedade de quem faleceu — como é o caso de NFTs e criptomoedas. “[Esses ativos vêm de] uma ideia que se destina a circular no mercado, têm a proposta de alienação e de suceder. [Quem compra] pode vender por um preço maior, pode “testar” [colocar em testamento] ou, se morrer sem testamento, os herdeiros dele vão, ao menos aqui no Brasil, receber os direitos à titularidade”, detalha o advogado. 

No entanto, outros itens digitais — como as skins de jogos, as bibliotecas de música ou de livros digitais — estão sempre sujeitos aos termos de uso das plataformas onde são compradas. Muitas dessas plataformas têm por hábito colocar em seus termos (aqueles que a gente sempre aceita sem ler) instituir que os direitos são de uso do ativo digital enquanto o proprietário for vivo. Com o falecimento de uma das partes, é como se o contrato fosse simplesmente desfeito, e os ativos não precisam ser repassados a ninguém. 

Pois é, você leu direitinho: aquela sua linda biblioteca de livros digitais não vai virar herança dos seus herdeiros. Ao menos não por padrão.

Um dos jeitos de evitar que isso aconteça é se preocupar em estabelecer um testamento contendo as senhas e usuários de acesso, deixando-o sob os cuidados de um advogado. “Havendo um testamento, que é a manifestação de última vontade, o juiz da causa pode considerar os termos do testamento e dentro do possível observar a vontade da pessoa”, reforça Rosa Filho. “Hoje, isso não é mais coisa apenas para pessoas de 80 anos, também serve para pessoas de 20 ou 30 anos”, recomenda, aos risos.  

Outra alternativa é manter os códigos de acesso, senhas e logins anotados em algum lugar ou sob a tutela de alguém em quem você confia. Assim, caso você venha a falecer, essa pessoa pode cuidar de fechar a conta ou até de transferir a titularidade da sua conta para outros usuários designados por você.

“Hoje, o ambiente virtual trabalha na base de senhas. Se eventualmente uma pessoa vem a falecer, e alguém tem a senha, se não houver a comunicação de que aquela pessoa morreu, os herdeiros vão poder continuar usando infinitamente aquela conta. As senhas hoje são, na minha opinião, a chave da administração de bens virtuais”, explica Rosa Filho.