Apesar de ter ido até a casa deles, aquele homem não era um vendedor que saia batendo de porta em porta. Sua oferta era limitada e restringida a uma parcela pequena da população. Heitor concordou em recebê-lo por insistência de um amigo do trabalho, que mencionou a oportunidade no meio de uma conversa. O vendedor agradeceu quando Heitor o convidou para entrar e ocupou um lugar no sofá, colocando sua maleta de couro na mesinha de centro.
— Só um instante — disse Heitor. — Vou chamar minha esposa.
— Sem problema — disse o vendedor olhando para os lados como se analisasse a decoração da casa.
Heitor foi até a cozinha. Amanda, com auxílio da empregada, estava preparando um lanche para o filho mais novo do casal, Davi, que brincava no quintal com um amiguinho da escola.
— Meu bem, ele chegou — disse Heitor.
— Mas já? — admirou-se Amanda, pegando um pano de prato para secar as mãos. — Marta, você termina aqui por favor?
— Sim, senhora.
Antes de acompanhar Heitor, Amanda foi até a porta que dava para o quintal e disse para os garotos irem lavar as mãos e esperarem o lanche que Marta serviria. Depois andou até o marido, alisando a frente do vestido.
— Não vamos nos precipitar, Heitor — avisou ela.
— Tudo bem, só vamos ouvir. Não somos obrigados a aceitar.
O vendedor cumprimentou Amanda quando ela e Heitor se sentaram no sofá de frente para ele.
— Muito obrigado pela disposição dos senhores em me receber hoje — disse o vendedor. Ele abriu a maleta e retirou dela duas cartilhas que entregou ao casal. — Infelizmente não posso mostrar fotos da área externa, nem dizer o endereço da instalação. São informações sigilosas e só compartilhadas com os compradores. Mas nessa cartilha vocês encontrarão detalhes de toda parte interna. Peço que deem uma olhada.
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Heitor achou a capa da cartilha meio engraçada. Havia o título “Bunker Paraíso” acompanhada da frase “Sobreviva ao apocalipse com conforto e segurança!”. Toda a informação textual estava em cima da foto de uma família bem parecida deles: pai, mãe, filha e filho. A principal diferença, entretanto, estava nos tons de pele: todos na capa da cartilha eram brancos.
Heitor virou a página e viu uma ilustração descrevendo os 15 andares da instalação subterrânea. Havia uma sala de segurança, quartos, estoque para alimentos e espaços para lazer. O vendedor falava enquanto eles analisavam o material, comentando sobre os altos riscos de uma 3ª Guerra Mundial e reforçando a existência de milhares de mísseis sob controle de vários países.
— Um botão — concluiu o vendedor. — Um botão e nações inteiras podem se destruir em questão de minutos.
— Você acha mesmo que o Brasil participaria da guerra caso ela acontecesse? — perguntou Heitor.
— Tá brincando? Você não assiste ao noticiário? — perguntou o vendedor. — Mas vamos esquecer as áreas que podem ou não ser atingidas. Os danos serão drásticos mesmo para os que estiverem longe. Estamos nos preparando não só para o efeito direto ou próximo de uma explosão, mas também para enfrentar um inverno nuclear subsequente que pode durar anos.
Heitor olhou para Amanda, como que procurando sua opinião. Ela olhava para as fotos que mostravam cada andar mais de perto.
— Isso é uma sala de aula? — perguntou Amanda.
Heitor olhou junto a pequena sala com um quadro negro e algumas carteiras.
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— Sim. Educação da melhor qualidade para seus filhos. Nas outras páginas vocês também podem ver que temos uma modesta sala de cinema, um bar, salão de jogos, uma piscina… Isso tudo para garantir uma estadia mais tranquila. Nos preocupamos, é claro, com produção de energia e alimentação, mas também com nosso conforto e lazer.
Amanda nunca imaginou que um bunker pudesse ser daquele jeito, tão grande e com tantos níveis e coisas que podiam ser consideradas supérfluas como uma piscina, considerando que quando alguém estivesse vivendo ali dentro, o mundo inteiro estaria destruído.
— De quanto estamos falando? — perguntou Heitor por fim.
O vendedor pegou um panfleto no qual havia o preço conforme o número de pessoas da família. A quantidade de zeros no preço foi a primeira coisa que Amanda e Heitor repararam. Eles se entreolharam.
— Também há possibilidade de pagamento mensal — disse o vendedor. Mas, para a família, a situação não melhorava muito.
— Não sei… — murmurou Heitor. — Podemos pensar?
— Infelizmente, não. Só podemos abrigar um pouco menos de 100 pessoas. — disse o vendedor. — Temos uma longa lista de espera. E, olha, só abri uma exceção para vocês hoje porque Calebe pediu e sou muito amigo dele. É pegar ou largar.
— Não podemos tomar uma decisão assim de forma tão precipitada — disse Amanda, tanto para o vendedor quanto para o marido.
— Eu compreendo — disse o vendedor, começando a recolher tudo, inclusive as cartilhas e o panfleto com os preços.
Talvez até conseguissem pagar de forma parcelada, mas isso os deixaria com o orçamento apertado por bastante tempo. Aquele investimento reduziria muito a qualidade de vida da família. Garantir um lugar no Bunker Paraíso seria dar um tiro no escuro. Era um futuro incerto. E, uma vez concretizado, era assim que funcionava? Quem tinha dinheiro o suficiente iria para debaixo da terra nadar em uma piscina enquanto o resto do mundo morria? Olhando o vendedor ir embora, Heitor e Amanda quase pediram para ele esperar mais um pouco. Era uma decisão difícil. Uma escolha entre um presente confortável, com o risco de morrer a qualquer momento, ou um período de privação para aproveitarem o pós-apocalipse com tranquilidade em seu paraíso particular.
* Waldson Souza é escritor. Formado em Letras e mestre em Literatura pela UnB, pesquisa sobre afrofuturismo e literatura brasileira contemporânea.