[Esta entrevista foi gravada em 12 de novembro de 2044. O que se tem aqui é uma versão transcrita e textualizada. As identidades do entrevistador e do entrevistado foram mantidas em segredo.]
AM: Então, ———, por que você não começa nos contando como começou a trabalhar na BluTec Inc.?
FC: Comecei em 2040 por indicação de uma amiga. Eu já tinha trabalhado com desenvolvimento de inteligência artificial, mas em projetos bem modestos para falar a verdade. Então fiquei muito animado quando soube que eles estavam contratando. A vaga era tão concorrida que tenho certeza de que foi a indicação que me colocou na frente dos outros candidatos.
AM: Eles informaram desde o início o que você precisaria fazer?
FC: Não de forma específica. Na entrevista eles falaram sobre funções mais gerais dentro da empresa, então não tinha como desconfiar. Depois, na hora da contratação, apareceram com um contrato de confidencialidade dizendo que eu não poderia falar publicamente ou mesmo com conhecidos sobre os serviços desenvolvidos lá dentro. Pensei que era algo padrão, afinal eles precisavam proteger suas criações da concorrência. Mas havia muito mais coisa encoberta.
AM: Qual era sua função lá?
FC: Eu fazia parte do Setor de Sistema Neurais. Mas isso só durou dois anos.
AM: O que aconteceu?
FC: Me transferiram para o Setor de Finalização, era a penúltima etapa.
AM: E o que você passou a fazer?
FC: Eu não sabia nada disso até ser transferido… A BluTec não estava fazendo androides aleatórios, mas replicando a aparência de pessoas específicas. Por isso a produção era em baixa escala. Dava muito trabalho. Depois que a carcaça de um androide chegava da fábrica, ele precisava passar por configurações individuais baseadas nos dados da pessoa recriada. A BluTec tinha acesso a câmeras e microfones de celulares e notebooks e todos os comportamentos das pessoas em redes sociais. Eram bancos imensos com anos e anos de dados, dependendo do alvo. A voz, o jeito de falar, a forma de se mexer e interagir com outras pessoas, decisões que a pessoa tomaria. Tudo isso era colocado no androide, e meu trabalho passou a ser garantir a liberação de uma cópia o mais fiel e realista possível.
AM: Então esses androides eram praticamente clones?
FC: Exato! Havia uma equipe para fazer as substituições. Imagino que o Setor de Troca eliminava o alvo para então colocar o androide no lugar. Não acredito que a BluTec deixaria os originais vivos, mesmo que presos em um cativeiro… Sobre essa parte, realmente não sei como era o procedimento…
AM: Você deixou de usar seu celular ou redes sociais por causa do seu trabalho?
FC: No começo, confesso que sim. Mas nós só substituíamos pessoas realmente importantes: políticos, artistas, figuras influentes na sociedade e sobre as quais a BluTec e seus clientes queriam ter controle. Eu sou um zé ninguém, não corria risco, por isso com o tempo fui relaxando.
AM: E sua família? Em algum momento você tentou avisá-los, de alguma forma, sobre o uso dos aparelhos?
FC: Só no início, quando estive mais preocupado. Mas eu não podia explicar o motivo, então só pedi para que cobrissem as câmeras e os microfones. Controlar compras em sites e acesso nas redes sociais era impossível. E minha esposa ficava falando que era besteira, teoria da conspiração. Era terrível não poder contar tudo.
AM: Mas você deixou de concordar com o que a empresa fazia. O que mudou?
FC: Trabalhar no Setor de Finalização me fez assistir ao noticiário com outra perspectiva. Não era raro encontrar alguém que ajudei a substituir envolvido na aprovação de leis, andamento de algum golpe, polêmicas, enfim… Fazer tudo isso e continuar nas sombras não é certo. Ter todo esse poder não é certo.
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AM: O que eles falaram quando você tentou pedir demissão?
FC: Ah, eles não gostaram nada da minha atitude. Me repreenderam e disseram que eu não podia quebrar o contrato porque era vitalício. Coisas que eu já sabia. Por isso fugi, fiquei com medo do que poderiam fazer com a minha família… Olha, eu só estou te contando isso tudo porque preciso de ajuda e de proteção. Vocês precisam fazer algo para impedir a BluTec.
AM: Então você não lembra?
FC: Como assim? Do quê?
AM: Por favor, ———, assista a este vídeo.
[silêncio, vozes abafadas distantes, barulho de respiração mais próximo]
FC: Não. Isso não é possível… Eu saberia. Eu teria…
AM: Seu trabalho era fazer com que ninguém percebesse. Como você perceberia?
[soluços, barulhos indistintos, porta sendo aberta, cadeira sendo arrastada e caindo no chão]
FC: Não! O que você está fazendo? Me solta!
AM: Ele está pronto. Podem encerrar a gravação e levá-lo para o Setor de Troca. Não esqueçam de deletar esse teste da memória dele.
* Waldson Souza é escritor. Formado em Letras e mestre em Literatura pela UnB, pesquisa sobre afrofuturismo e literatura brasileira contemporânea.