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Conto: Peça por peça

A dra. Sandra olhou para os resultados da tomografia e suspirou, retirando os
óculos. Estava sozinha na sala, então não precisava se importar em disfarçar o cansaço. Há dias não obtinham avanços significativos com Luiz, os exames mostravam os mesmos pontos do cérebro afetados, praticamente com a mesma intensidade. Aquilo podia significar que a medicação pararia de funcionar a partir daquele ponto. Ainda assim, esse paciente, quando comparado com os outros, tinha o melhor quadro.

Sandra olhou para o relógio e decidiu ir até o quarto de Luiz. O horário de visitas estava perto de começar, e aproveitaria para conversar com o pai do rapaz — ele sempre aparecia, toda segunda e quinta desde que iniciaram o tratamento. Enquanto atravessava o corredor, ouviu tumulto em um dos quartos. A maioria dos pacientes eram quietos, como se vivessem constantemente anestesiados ou permanecessem entre a vida e a morte. Mas estavam vivos de novo, havia indícios suficientes para confirmar isso, e a consciência era recobrada gradativamente. Luiz, por exemplo, já chegara a falar, mesmo com dificuldade.

Sandra entrou em um dos últimos quartos do corredor. Luiz estava sentado na maca, com as mãos juntas em cima do joelho. Levantou devagar o rosto quando percebeu que tinha companhia. Ele ainda estava um pouco pálido, com olheiras e alguns cortes superficiais cicatrizando. Aos poucos, a pele voltava ao tom marrom natural. Mas a permanência daquele aspecto adoecido era um dos fatores que frustravam a doutora. Seria mais fácil ignorar a melhora lenta do cérebro se a aparência dele estivesse mais agradável. Para ela, ainda era como se cuidasse de um monstro, talvez tão perigoso quanto alimentar jacarés direto na boca.

Por isso, ela seguia todos os protocolos de segurança e só chegava perto quando precisava examiná-lo.

— Sinto muito, Luiz, mas não é hoje que você vai voltar para casa.

Luiz foi um dos primeiros resgatados, e a julgar pelo estado em que chegou no hospital, não ficou transformado por muito tempo antes que a cura fosse desenvolvida. Não chegara ao estado de decomposição, nem tinha ferimentos graves que levariam à morte conforme o tratamento avançasse. Os mortos-vivos com muitos danos não tinham chances, e o governo autorizou que fossem eliminados. Aquelas clínicas, que tanto se falava no rádio, na televisão e jornais, não serviriam para salvar a todos.

Luiz ficou calado, sem esboçar nenhuma reação. Encarou a doutora com aqueles olhos perdidos, sem foco, pacífico demais. A mente dele estava fragmentada. Memórias se sobrepondo, cenas fora de ordem. Montar palavras era ainda mais difícil, e, às vezes, quando tentava, deixava escapar um som esquisito, um grunhido muito semelhante aos barulhos que fazia quando vagava sem consciência e com um único objetivo em mente.

Sandra sabia que era importante conversar com ele mesmo assim. E só por conta disso continuou falando, explicando a situação, mesmo tendo certeza de que a única resposta obtida seria aquele olhar fixo.

Alguém bateu na porta. Sandra foi até lá abrir. Era o pai de Luiz, que vinha acompanhado de uma moça. Em vez de dizer que podiam entrar, Sandra fez sinal para que esperassem no corredor e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.

— Que bom que o senhor conseguiu vir hoje — cumprimentou Sandra. — Acabei de receber alguns exames de Luiz e ele permanece estável. Não houve melhora significativa desde a última semana, mas pelo menos ele não está agitado e não tentou atacar ninguém.

— Entendo — disse o pai. — Quando ele vai poder voltar pra casa?

— Talvez no próximo mês — respondeu a doutora, cautelosamente. Era difícil lidar com as famílias. Mais difícil do que lidar com os mortos-vivos.

— Camila pode ver ele hoje? — perguntou o pai, indicando a garota.

— Sim, claro. Vai ser bom para ele interagir com mais uma conhecida. Você é o que dele?

— Amiga — respondeu Camila, parecendo abatida. — Cunhada? Ele namorava meu irmão, na verdade. Sandra não perguntou por que o irmão de Camila não estava ali com eles. Já conseguia imaginar.

— Estou querendo, inclusive, aumentar o número de visitas — contou a médica.

— Ter mais contato com familiares e amigos pode ajudar na recuperação da memória.

O pai de Luiz não disse o que achou da ideia, não queria parecer que estava fazendo corpo mole para a recuperação do filho. Mas estar ali no centro de Brasília duas vezes por semana, dependendo do transporte público depois de um apocalipse, não era tarefa fácil. Os ônibus de Planaltina estavam circulando de forma bem reduzida e com horários incertos. A cidade, como outras áreas periféricas, fora mais afetada que Brasília. A catástrofe atingira bairros diferentes com intensidades distintas. Planaltina ainda estava com as ruas vazias na maior parte do tempo, a não ser por alguns cadáveres empilhados nas esquinas e uma ou outra pessoa saindo para resolver algo importante, mas sempre com pressa, sempre olhando para todos os lados.

— Bom, podem entrar — convidou Sandra.

O pai de Luiz e Camila passaram pela porta que a doutora abrira. Quando estavam no meio do quarto, Luiz ergueu a cabeça em direção a eles. Seus olhos não demoraram muito no pai, um visitante mais recorrente. Toda sua atenção se voltou para Camila.

— Oi — disse a garota com a voz baixa.

Luiz tinha certeza de que não via aquele rosto há muito tempo, mas se percebeu lembrando de outra pessoa que costumava aparecer em suas memórias mais confusas. As que mais lhe causavam sofrimento. O formato dos olhos de Camila, os lábios grossos, a pele negra e o nariz. Tudo era muito semelhante a… alguém. E por mais que Luiz não se lembrasse do nome dele ou como o conhecera, tinha a dimensão de que fora alguém importante na sua vida. Até que…

A percepção da semelhança forçou as memórias que por um instante deixaram de ser tão difusas. Ele se lembrou da última vez que o viu. Suas mãos segurando o outro rapaz com força, a mordida rasgando a carne dele com mais força ainda. Uma expressão que misturava surpresa, medo e dor, tudo ao mesmo tempo. Ele gritando e implorando para que Luiz o largasse, mas sem ter coragem de atirar nele, nem mesmo para se defender. Quando conseguiu se soltar, correu, segurando o ombro ensanguentado. Eles nunca mais se viram. Qual era seu nome?

Todas aquelas sensações aconteceram muito rápido. A lembrança angustiante foi substituída por uma raiva descomunal, mais de si do que de suas visitas, e fez Luiz se levantar com rapidez pela primeira vez desde que chegara na clínica. Com um movimento brusco que fez Camila cair para trás, Luiz se ergueu e tentou correr para atacá-la. Ele só queria se livrar da dor dentro de si causada por aquele rosto. Não conseguiu alcançá-la; a corrente em volta do seu tornozelo esticou ao máximo e o rapaz não conseguiu avançar.

Camila respirava forte, se recuperando do susto e do tombo, apesar de ter reparado na corrente no momento que entrou no quarto. O pai de Luiz ficou parado, quase no mesmo lugar, entristecido ao ver o filho agindo daquela forma de novo.

— Ele te amava — disse Camila se levantando do chão com a ajuda de Sandra.

A sentença final. Uma informação que, naquele momento, só serviria para aumentar a tormenta e o remorso de Luiz. Ele ficou ainda mais nervoso, puxando o pé e fazendo barulho com a corrente, gritando e inutilmente esticando os braços.

A Dra. Sandra, com urgência, retirou o pai e Camila do quarto, com um suspiro cansado. Precisaria da ajuda dos enfermeiros para anestesiar Luiz e não imaginava como aquilo refletiria no quadro dele. O rapaz nunca ficara naquele estado, mas ela já vira muitos outros ex-infectados agindo daquela forma.

Ex-infectados existiam mesmo? Aquela era uma condição que se deixava para trás? A médica tinha suas dúvidas, ainda mais agora vendo seu paciente mais promissor se descontrolando por causa de uma pessoa. O retorno das memórias era um passo importante para que ele voltasse a ser humano por completo, mas ao mesmo tempo devolvia sentimentos difíceis de lidar, já que ofereciam junto a percepção da própria monstruosidade. Quando poderiam afirmar com certeza que Luiz estava no controle?

Isso tudo levava a outra pergunta: o apocalipse chegara ao fim? De que forma e por quanto tempo aquela cura seria suficiente? Todo mundo trabalhava para que a sociedade pudesse ser reconstruída. Peça por peça. O tratamento de Luiz e de outros que tentavam ser salvos era parte disso. Tudo estava se transformando outra vez, mas só o tempo diria se a mudança era positiva. Como uma sociedade se reergueria daqueles escombros?


* Waldson Souza é escritor. Formado em Letras e mestre em Literatura pela UnB, pesquisa sobre afrofuturismo e literatura brasileira contemporânea.