Quando Dani e Gustavo falaram do plano comigo, não acreditei que daria certo. Nós três liderando um assalto (ou seria melhor dizer sequestro?) de uma das naves espaciais que víamos nos noticiários. Uma que foi construída com a ajuda do próprio Gustavo. Não de forma direta, pelo menos. Ele trabalhou em uma das fábricas que fornecia parafusos, ou algo do tipo, para a empresa que desenvolveu o projeto. Não sei direito, mas eram peças significativas o suficiente para que, com o tempo, Gustavo se sentisse no direito de também ir embora. E ele usou isso para plantar a ideia na nossa cabeça.
Sempre que nós três nos encontrávamos no bar nos fins de semana ou em alguma quinta-feira tão cansativa que não conseguíamos esperar até sexta, Gustavo começava a falar a respeito de suas indignações e comentar as últimas notícias em relação aos foguetes. Ele era muito inteligente e tinha aquela capacidade de convencimento. Dani sempre olhou para ele com paixão e admiração, principalmente depois que começaram a namorar. E eu logo comecei a olhá-lo da mesma forma. Por isso, mesmo sem acreditar que daria certo, aceitei participar.
Se não conseguíssemos, nosso destino seria o fim. Fosse durante a tentativa ou pela condenação de precisar ficar na Terra. Não tínhamos nada a perder.
— Tem que ser o último foguete — reforçou Gustavo pela milésima vez. — Antes, estarão mais preocupados com a segurança.
Eu costumava pensar no que aconteceria com nosso plano caso alguém tentasse fazer a mesma coisa no mesmo dia, e pior, com o mesmo foguete que estava na nossa mira. Não seríamos apenas nós três. Gustavo montou um pequeno grupo e tinha contatos com alguns seguranças da base espacial que queriam participar. Eles moravam no nosso bairro, sabiam o que era viver à margem; também estavam revoltados.
O mais estranho de assistir à Terra se desfazendo por causa de desastres naturais foi saber que trinta anos antes, quando eu estava na escola, muito se falava sobre aquecimento global. Depois, acompanhei as mesmas discussões sendo negadas e cada vez menos pessoas acreditando que era um problema real. O Jorge de oito anos ficou ansioso quando a professora da quarta série disse que precisávamos cuidar do planeta se quiséssemos que nossos netos tivessem um lugar para morar, mas na época havia o pensamento de que ainda havia tempo para resolver aqueles problemas. Três décadas depois, eu não tivera sequer filhos e o fim da Terra já estava decretado.
Os foguetes começaram a ser construídos alguns anos antes dos desastres naturais se tornarem mais frequentes. E com “frequentes” me refiro a no mínimo um desastre por mês em alguma parte do globo. Eu costumava me indignar com o fato de não investirem a mesma quantidade de dinheiro para preservarmos o único planeta no qual a vida era garantida. Em vez disso, investiam em exploração espacial. Super legal, exceto que… não. Mas ao mesmo tempo, costumava achar aquelas notícias ridículas. Bilionários que tinham tanto dinheiro que nem conseguia compreender direito, sempre esquecendo com quantos milhões se forma um bilhão — quem dirá 100 bilhões, 150 bilhões… Na minha cabeça, eles só estavam tentando mostrar para o mundo como eram ricos, não pensei que conseguiriam sucesso. Mas foram eles que começaram a ir embora.
A corrida espacial foi contra a natureza, não mais entre nações. Fenômenos naturais pareciam querer destruir tudo antes que qualquer alternativa de salvação fosse construída. Como um recado dizendo “bom, vocês não quiseram cuidar do que tinham, agora não terão mais nada”. As periferias foram as áreas mais afetadas. Desemprego, fome, violência; tudo isso também foi aumentando. E não tínhamos como nos reerguer. Mas essa não é uma história de como a Terra acabou, e sim de como roubamos uma das naves.
Eu nunca tinha segurado um revólver até então. Dani falou que a ideia era apenas assustar, mas que talvez precisássemos usar de fato.
— Se algum bilionário filho da puta tentar nos atrapalhar, você atira — disse ela. — Nos seguranças que não quiserem se juntar a nós também, nem todos ficarão do nosso lado.
O fato é que não queríamos matar ninguém, mas faríamos isso caso fosse necessário. A ideia era pegar uma carona para fora da atmosfera. Os foguetes, pelo que víamos nas notícias, iriam para uma base espacial construída na Lua e de lá para as colônias de Marte. Não sabíamos o que fazer quando chegássemos na Lua, mas era um problema para ser resolvido depois. Talvez conseguíssemos convencê-los a nos deixar viver em uma das colônias. Gustavo achava que conseguia convencer a tripulação operária da nave a se juntar a nós. Com uma quantidade de pessoas suficientes conseguiríamos organizar uma rebelião. Não sabíamos o número exato de trabalhadores, mas aqueles que pagaram pelos foguetes não eram quem estava pegando pesado para terraformar Marte e manter a limpeza das naves, por exemplo. Os bilionários levaram alguns de nós porque precisavam do nosso povo para trabalhar.
E não julgo quem aceitou ir nessas condições. Quando a única coisa que te resta é uma oferta para continuar vivo, você se agarra a ela não importa o que aconteça.
Entrar não foi fácil, mesmo com os contatos de Gustavo, pois não podíamos fazer isso muito antes do foguete decolar. E não podíamos errar o cálculo e esperar demais para atacar. Um dos guardas na entrada da pista de decolagem era nosso comparsa, assim como outros dois do lado de dentro. Ele nos ajudou a derrubar seu colega.
— Precisamos correr! — alertou ele.
Nós três seguimos ele e lideramos um grupo de quinze pessoas torcendo para que nosso peso não ultrapassasse a capacidade da nave. Entramos com a contagem regressiva em curso, tarde demais para cancelarem o processo de decolagem. A segurança dentro da nave era mais escassa. Tudo que os patrocinadores das naves temiam e desprezavam ficaria para trás na Terra. A partir dali, havia a chance de construir novas sociedades, no modelo que desejassem. Mas o que sairia de novo naquele bando de homens ricos com suas famílias mantendo pessoas iguais a mim em posições submissas? Então, por não haver tanta segurança. Dani e Gustavo conseguiram impedir qualquer chance de nos neutralizarem. E os outros dois guardas cúmplices que embarcaram junto com a tripulação foram uma grande ajuda.
Tivemos que agrupar em um canto todos os reféns. Enquanto Dani e eu fazíamos isso, ouvi Gustavo na sala de controle gritando com o piloto:
— Você vai manter a gente na rota! Direto pra Lua.
— Tudo certo aqui? — perguntou ele, voltando para perto de nós.
— Sim — respondi com a voz um pouco trêmula, a mão que segurava o revólver começava a suar.
Rostos apavorados encaravam nosso grupo. Algumas pessoas soluçavam, outras se abraçavam. Gustavo começou a fazer seu discurso ao lado de Dani, explicando nossa motivação e o que queríamos. Talvez por causa da adrenalina, ele não conseguiu ficar parado e começou a andar entre os reféns. Aproveitando que ele estava com a arma abaixada, dois velhos brancos bilionários tentaram atacá-lo. Eles se levantaram repentinamente de lados opostos. Gustavo foi rápido e atirou no mais próximo e eu atirei no outro, por reflexo.
— Esse tipo de coisa não precisa acontecer — disse Gustavo, berrando para ser ouvido em meio aos gritos que surgiram por causa dos disparos. — O que queremos aqui é uma chance de viver nas colônias. Mas vamos atirar caso não colaborem.
Gustavo continuou o discurso. Olhando para as poças de sangue se formando no chão, lembrei dele dizendo, em uma das nossas reuniões de planejamento, que o universo não sentiria falta de alguns bilionários. Que, na verdade, estaríamos melhor sem eles. Por isso entramos naquela nave, por isso fizemos dela nossa chance em direção a um mundo de possibilidades e avançamos ofegantes e ainda receosos sobre as próximas etapas. Não havia para onde voltar, de qualquer forma. A Terra e seus habitantes seriam apenas lembranças — ou talvez dessem um jeito de sobreviver e construir algo novo em meio aos escombros. Por quanto tempo? Essa é sempre a questão. Por isso decidimos arriscar e pegar aquela estrada em direção ao futuro. Eles fizeram de tudo para abandonar o máximo de nós, mas não estávamos a fim de morrer. Veríamos o amanhã.
* Waldson Souza é escritor. Formado em Letras e mestre em Literatura pela UnB, pesquisa sobre afrofuturismo e literatura brasileira contemporânea.