Os esports devem movimentar receita de US $1,1 bilhão no final de 2021, um crescimento de 14,5% em comparação ao ano anterior. Mas, por mais que cresça, o mercado continua com o estigma de ser extremamente tóxico e cheio de preconceitos.
Os problemas envolvem jogadores da comunidade, profissionais da área como pro players, comentaristas, streamers e influenciadores digitais que têm reproduzindo cada vez mais atitudes problemáticas.
Radiação alta in-game
Uma pesquisa realizada pela da Anti-Defamation League (ADL), em parceria com a Newzoo, revela que houve crescimento de casos de assédios em jogos online. Cerca de 81% dos jogadores norte-americanos, entre 18 a 45 anos, relataram ter sofrido alguma forma de assédio em jogos em 2020 — um aumento em relação a 74% registrado em 2019. Além disso, 53% dos jogadores online que sofreram assédio relataram que foram alvejados por causa de sua raça/etnia, religião, capacidade física ou mental (PCD), gênero ou orientação sexual.
Apesar do foco da pesquisa ser centrado nos Estados Unidos, é possível ver movimento similar no Brasil.
Em junho deste ano, os esports brasileiros ficaram por casos de racismo e transfobia por parte dos jogadores e influenciadores digitais. O streamer Hernan “Hastad” foi acusado de injúria racial durante uma transmissão ao vivo de Valorant e acabou por perder patrocínios e ser suspenso permanentemente da Copa Rakin. O ex-ciberatleta do Corinthians, Danilo Avelar, também reproduziu uma fala racista em uma partida de Counter Strike: Global Offensive (CSGO) e teve o seu contrato rescindido pela equipe.
Um dos casos que mais chamou a atenção, no entanto, envolveu personalidades do cenário de Free Fire, battle royale que tem se tornado um dos jogos competitivos mais populares alcançando 1 bilhão de downloads na Play Store. Pedro ‘Buxexa’, então streamer da Fluxo, fez comentários transfóbicos — referindo-se de forma indireta à instagrammer trans Marcella Pantaleão – durante uma live que jogava ao lado do amigo e, também influencer, Wellington ‘Racha’.
Por conta do episódio, Buxexa teve seu desligamento do time e a Garena, desenvolvedora do jogo, anunciou que ambos os influenciadores não estão mais no programa de parceria. Os dois streamers se pronunciaram com pedidos de desculpas, sendo que Buxexa afirma que tudo foi uma “zoeira” e que não foi “na má intenção”.
A psicóloga especializada em esports Natália Zakalski acredita que isso é reflexo da sociedade. Nos esports, os casos chamam a atenção porque os envolvidos têm muita exposição. “Quando é anônimo, você pode perpetuar diversos preconceitos que não sofrerá grandes consequências, mas quando é uma pessoa pública com visibilidade você acaba exposto”.
Pedro “Buxexa”, por exemplo, tem 3,4 milhões de seguidores no Instagram e Wellington “Racha” 1,6 milhões.
Barbara Gutierrez é criadora de conteúdos e Luiz Queiroga, consultor em diversidade. Ambos têm experiência na cobertura jornalística do meio e já presenciaram diversos episódios de preconceito por parte da comunidade de esporte eletrônico. Em entrevista ao Bitniks, eles falam sobre o aumento dos recentes casos de denúncias no ambiente virtual.
Para Gutierrez sempre houve preconceitos em esports, mas mais pessoas estão tomando conhecimento e se manifestando contra tais atitudes que, por muitos anos, foram tratadas como normais. “Cada vez mais a gente está tendo noção do que está acontecendo, jogando holofotes em cima disso e mostrando que é errado”.
O caso de Buxexa, em específico, tomou proporções que “estouraram a bolha” do nicho por ele ter atacado uma influencer que não tinha conhecimento dos streamers e que sofreu diversos ataques, mensagens de ódio e ameaças em suas redes sociais.
Em entrevista à Claudia, Pantaleão disse que ignorou os ataques que chegavam nas redes sociais após se manifestar contra os comentários. “Eu estou recebendo hate por me defender e falar sobre algo que me fere. Até quando nós, que somos vítimas, seremos tachadas como culpadas?”.
Queiroga ressalta a importância de vozes que são de fora do meio cobrarem, pois dá maior visibilidade e pode mudar a atitude do acusado. “Quando a denúncia vem de dentro, o barulho fica tímido. Quando a pessoa que se mostra ativista dentro do esport e consegue romper a bolha de uma pessoa de fora, aí que a gente consegue ver toda uma mobilização de quem não sabe sobre o joguinho, mas sabe o que é racismo, transfobia, machismo e capacitismo e vão cair em cima responsabilizando”.
Presente intoxicado
O mercado de esportes eletrônicos não é o único a ter essa mancha. Games, de forma geral, têm extensa reputação ligada a preconceitos e ao mal comportamento por parte de jogadores. Nos últimos anos, casos de assédio dentro da Ubisoft e da Blizzard, que foram denunciadas por funcionários, revelam que o problema está nas raízes do mercado.
Gutierrez enxerga esse retrato como consequência do passado, em que as empresas eram composta por pouca diversidade em uma época em que os preconceitos eram normalizados, seja em uma forma estereotipada ou mal representada, e que os jogos são o microcosmo da sociedade que tem discriminação e intolerância em outros campos.
“É muito preocupante que a gente não tenha ídolos que fomentem senso crítico, que nos tragam reflexões sociais.” –
Luiz Queiroga, jornalista e consultor em diversidade
Queiroga acrescenta também que, em sua maioria, o perfil das personalidades da área não enxergam a relação de jogos com outros assuntos da sociedade como política, comportamento, meio ambiente, pautas sociais, etc. “Tem o discurso de ‘minha live é um refúgio’, fica 10, 15 horas, 24 horas em live. Se você parar para pensar, são 24 horas de total rejeição da realidade. É muito preocupante que a gente não tenha ídolos que fomentem senso crítico, que nos tragam reflexões sociais”.
Zakalski concorda com esse padrão de comportamento e acrescenta que muitos encaram como um “recorte específico” da realidade. “Há a ideia de que nosso mundinho é muito deslocado do social, mas não é — a gente é um produto do nosso meio”.
Quando casos como de Hernan “Hastad”, Danilo Avelar, Wellington “Racha” e tantos outros vão parar na imprensa, é preciso olhar a atitude das empresas envolvidas. Tanto Gutierrez quanto Queiroga concordam que o indivíduo têm responsabilidade, mas que os times, desenvolvedoras e campeonatos também são responsáveis e devem conscientizar — e não apenas desligar o “cancelado”.
“Não acho que o cancelamento seja certo. Acho que precisamos conversar cada vez mais sobre o que as pessoas fazem e o que elas entendem. Porque existe uma clara falta de acesso à informação”, diz Gutierrez.
Zakalski aponta também que o cancelamento não é o melhor caminho pois, dependendo do caso, pode gerar um efeito contrário. “Se essa pessoa for cancelada, ela não vai entender o que aconteceu e vai continuar a fazer, com muita raiva, e vai perpetuar cada vez mais esse preconceito”.
Já Queiroga diz que falta responsabilidade nas lideranças de empresas de jogos, que não permitem que funcionários discutam publicamente sobre discurso de ódio e política. “Começa ali em cima esse controle de discurso que vai se estendendo para questões básicas de humanidade”.
Lugar seguro para todos
Afinal, é possível desintoxicar esse cenário de esports? A Anti-Defamation League, em seu relatório, também analisou as experiências positivas de jogadores online. Foi constatado que, mesmo com o ambiente tóxico, 95% dos adultos tiveram experiências sociais positivas enquanto jogavam, sendo que 86% ajudaram outros jogadores, 83% fizeram amigos e 83% sentiram que pertenciam a uma comunidade.
Todos os entrevistados afirmam que o melhor caminho para um ecossistema mais amistoso é a conscientização e uma preparação dos jogadores, streamers e influenciadores para evitar futuros problemas.
A organização americana pontua que pode haver progresso por meio de três bases: as empresas de jogos desenvolverem um ambiente saudável in-game com políticas contra o discurso de ódio e ferramentas de moderação mais aprimoradas para monitorar e moderar bate-papo em texto e áudio. A sociedade civil apoiando trabalhos, estudos acadêmicos, e ONGs que ajudam a combater preconceitos e o governo cumprindo leis que protejam vítimas de crimes de ódio e pressionam por maior transparência e responsabilidade as desenvolvedoras em relação ao ódio e assédio online.
Para Queiroga, é importante as empresas também investirem em capacitar os profissionais em aspectos sociais. “Se você trabalha e investe em conscientização, o cenário muda na linha de frente”.
Zakalski acredita ser fundamental a psicologia também auxiliar o atleta a desconstruir preconceitos. “É importante para a pessoa entender que isso também é prejudicial para ela, que se limita quando traz esses preconceitos”.
No caso das vítimas de abusos, Gutierrez diz que é importante denunciar e levar à Justiça, falar com os coletivos de esports focados em minorias e que dão orientações jurídicas e psicológicas. “Quando você passa por algo traumático, precisa muito da ajuda de alguém que dê esse colo, pois você fica sem chão, não entende o que está acontecendo”.
Mobilização é a palavra para gerar impacto e que a internet pode ser uma aliada, usada de forma ponderada. “De forma mobilizada, esse barulho na internet, enquanto corre na Justiça, vai ter um impacto. Fará com que aquele problema seja mais discutido. A imprensa vai ter formas de trabalhar com isso, os influencers vão poder tomar partido a partir de algo bem melhor exposto e mobilizado”, diz Queiroga.