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Por que, nos hospitais, brasileiros têm mais chance de morrer com Covid-19?

Letalidade Covid

Arte: Lindon Johnson

Enquanto alguns países já flexibilizam o uso de máscaras e realizam eventos com um grande número de pessoas, o Brasil ainda parece longe do fim da pandemia de Covid-19. Entre as principais disparidades nos números em relação ao resto do mundo, uma das que mais assustam é a letalidade hospitalar. Um estudo publicado na revista Lancet Respiratory Medicine em janeiro deste ano analisou 250 mil mortes pela doença no país entre fevereiro e agosto de 2020 e revelou que a taxa de mortalidade em UTIs era de 59%, enquanto que entre os pacientes intubados, o número chegava a 80% — e não houve sinais de redução no decorrer de 2020.  

Os dados foram coletados da base SIVEP-Gripe, que originalmente foi criada para monitorar a síndrome respiratória aguda grave (SRAG ou SARS, em inglês), conforme explica Fernando Bozza, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e um dos autores do estudo. “Quem trabalha com vigilância desses tipos de doenças já vem alertando há alguns anos a possibilidade de termos uma pandemia de doença respiratória. Por isso, já existia esse sistema de vigilância nacional.”

Passado mais de um ano desde o início da doença no Brasil, Bozza conta que já foram analisados mais de 1 milhão de casos. O novo estudo já foi submetido para publicação e os resultados não são nada promissores, já que, ao contrário de outros países, todas as taxas de mortalidade – hospitalar, em UTI e intubados – aumentaram.

A pesquisa é mais um lembrete de que a Covid-19 é uma doença grave e não deve ser subestimada. No início da pandemia, muitos países apresentavam altas taxas de letalidade hospitalar, principalmente devido à falta de conhecimento sobre o vírus e à sobrecarga repentina dos sistemas de saúde. A diferença é que muitos conseguiram reduzir essa mortalidade dos pacientes com o tempo. Então, por que os números continuam a crescer incessantemente no Brasil? Segundo especialistas, isso é reflexo da necessidade urgente de investimentos em saúde e estratégias capazes de preparar melhor o país para crises sanitárias.

Por que a mortalidade hospitalar de Covid-19 é tão alta no Brasil? 

Considerando o número de casos globais, incluindo os quadros leves que não resultam em hospitalização, alguns estudos indicam que a mortalidade da Covid-19 gira em torno de 1%. “A letalidade da Covid-19 não é alta se formos falar da doença em si. Existem doenças bem mais letais, como a ebola. O grande problema da pandemia é que ela se espalha muito rápido e quando o paciente é internado, acaba tendo um tempo prolongado de hospitalização, o que resulta em um colapso do sistema de saúde”, explica Gustavo Lenci Marques, especialista em cardiologia e clínica médica, doutor em medicina interna e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

O problema é que quando o quadro se torna grave, essa taxa pode disparar, atingindo até 80% em caso de intubação, como mostra o estudo da Lancet. “Quando o paciente chega no hospital, já é uma questão grave”, ressalta Ricardo Parolin Schnekenberg, doutorando em neurociências clínicas na Universidade de Oxford. A morte do ator Paulo Gustavo também mostra a gravidade da doença, aponta Fernando Bozza, da Fiocruz. “Ele era jovem, sem comorbidades e recebeu a assistência necessária. Ainda assim, apesar de todos os esforços, ele morreu. Então, a doença não é apenas uma gripezinha. Ela tem uma letalidade e uma gravidade maior do que outras doenças respiratórias agudas como influenza, por exemplo.”

Por outro lado, Bozza afirma que um ponto importante a ser ressaltado é que apesar dos números assustarem, são poucos os países que contam com um sistema de saúde e de vigilância nacional como o Brasil. Portanto, não há muitos exemplos de estudos tão amplos como o que foi publicado na Lancet, e é graças ao Sistema Único de Saúde (SUS) que não estamos em uma situação ainda pior.

“Embora a mortalidade seja alta, o Brasil tem um sistema de saúde que impede que as pessoas, de uma forma geral, morram na rua, como a gente viu cenas no Equador ou estamos vendo na Índia. De fato, a mortalidade é alta, a doença é grave, o país não se preparou para a pandemia e não foram incorporadas na prática as evidências científicas que têm sido geradas ao longo desse ano. E isso tudo faz com que essa mortalidade seja alta. Mas, por outro lado, por exemplo, se você for comparar com a Índia, não se sabe qual é a mortalidade.

O artigo da Lancet ainda destaca um aspecto importante ao analisar as mortes por Covid-19 no Brasil – a doença não afeta igualmente a todos. “Se um homem negro, analfabeto, que mora no Nordeste for hospitalizado, ele tem cinco vezes mais chances de morrer que um homem branco, de nível superior, que mora no Sul ou Sudeste. Ou seja, há inequidades sociais também em relação a essa mortalidade”, diz Bozza. Os dados analisados no estudo são nacionais e o pesquisador da Fiocruz explica que é difícil comparar as taxas entre hospitais públicos e privados por diferentes razões:

Os hospitais recebem um registro chamado CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), que permite identificarmos qual estabelecimento notificou. O problema é que muitas vezes a notificação é feita por uma Secretaria, então o CNES que aparece não é do hospital, mas da Secretaria. O segundo ponto é que às vezes se trata de uma Santa Casa, por exemplo, que não é pública; ela é filantrópica, mas atende SUS.

Para Ricardo Schnekenberg, da Universidade de Oxford, uma das diferenças “mais gritantes” ao olhar para o Brasil é o número de pacientes “salváveis”. “Nós deveríamos estar salvando quase todos os jovens porque eles têm reserva fisiológica para conseguir sobreviver, mas o estudo mostra que as mortalidades entre essas faixas etárias também são altíssimas”. De fato, um levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU) do ano passado mostrou que o Brasil lidera o ranking mundial de vítimas da Covid-19 com menos de 20 anos de idade, enquanto que 1,3 mil bebês de até um ano já morreram pela doença.

Bozza aponta que outro fator extremamente preocupante é o fato de não conseguirmos reduzir as taxas de mortalidade hospitalar mesmo um ano após a pandemia. O Reino Unido é um dos poucos a reunir dados nacionais como o Brasil, mas a diferença é que houve um declínio nos números com o passar do tempo. “Por que esses países conseguiram reduzir a mortalidade e nós não? Os valores de mortalidade são altos de uma maneira geral — na primeira série que o Reino Unido publicou, a mortalidade dos pacientes ventilados era 69%, o que não é uma mortalidade baixa. Mas, por outro lado, eles conseguiram, ao longo do tempo, reduzir essa taxa. Por que, no Brasil, os números são tão altos e, em vez de diminuir, eles só aumentam?”, questiona Bozza. 

Sem margem para erros 

Gustavo Marques, professor da UFPR e da PUCPR, explica que “já é esperado que o paciente intubado tenha uma letalidade maior porque ele apresenta um quadro mais grave. A pessoa só é intubada quando já está em uma situação extrema; ela não consegue respirar sozinha e, por isso, precisa do ventilador mecânico”. O problema é que a demora em procurar ajuda médica pode piorar a condição do paciente e, consequentemente, aumentar o risco de morte. Os motivos para essa busca tardia por atendimento vão desde o medo de contrair a Covid-19 em hospitais lotados até uma interpretação errônea dos dados de mortalidade hospitalar – a ideia de que se a chance de morrer ao ser intubado é de 80%, a solução seria não ir ao hospital e, portanto, evitar a intubação.


Schnekenberg pontua que os casos graves da Covid-19 requerem o máximo de cuidado desde os primeiros sintomas para evitar um desfecho trágico. “O Brasil nunca tratou adequadamente doenças graves, mesmo antes da pandemia. A Covid é uma doença que demanda um cuidado ótimo desde o momento em que se liga para uma ambulância até a chegada na UTI e assim por diante. Não há margem para erros. É diferente de outras doenças em que uma falha talvez não impacte tanto a letalidade.”

A diferença com outros países já pode ser observada logo que o paciente chega ao hospital e não há recursos  e materiais necessários para ajudar a impedir a evolução da doença. O cateter nasal de alto fluxo e a ventilação não-invasiva, por exemplo, poderiam evitar a necessidade de intubação. O problema é que esses equipamentos são caros e, portanto, são raros os hospitais que possuem. “Quando o paciente é eventualmente sedado e intubado, a complexidade aumenta absurdamente e é necessária uma equipe maior. Fora isso, caso ocorra qualquer acidente, como alguém tropeçar em um cabo, ele pode morrer”, explica Schnekenberg.

Marques conta que a simples disponibilização de materiais também não é suficiente. Segundo ele, muitos médicos não foram treinados para utilizar adequadamente um ventilador mecânico, o que pode representar um risco para o paciente.

Bruno Besen, médico intensivista e coordenador de uma UTI do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP), afirma que o problema não é de agora. Ele conta que, principalmente no caso do sistema público, os profissionais já trabalhavam em uma condição de subfinanciamento, com “RH no limite” e equipes sobrecarregadas.

Quando veio a pandemia e a maioria dos hospitais chegou a 300% da sua capacidade, foi necessário contratar ou realocar pessoas dentro do hospital que não tinham qualificações para trabalhar em terapia intensiva. Isso tem sido muito comum e, sem dúvida, resulta em mais eventos de qualidade e segurança no atendimento do paciente, porque a UTI é um ambiente muito complexo. É a mesma coisa que eu determinar que um médico sem especialização em anestesia vai começar a aplicar anestesia em todo mundo. Isso traz um impacto muito grande na qualidade.

Fernando Bozza, da Fiocruz, também ressalta que o problema da sobrecarga do sistema de saúde não se limita apenas à falta de leitos, mas de profissionais, e que “depois de um ano, essas equipes também estão muito desgastadas”. Segundo Besen, esse esgotamento fez com que muitos profissionais considerassem, inclusive, deixar a área de terapia intensiva. “E quando eu falo profissionais, não são só médicos, mas enfermeiros, farmacêuticos, clínicos, fisioterapeutas…porque a carga de trabalho foi muito grande para todos. Todo mundo trabalhou muito mais do que estava acostumado.”

Isso tudo é reflexo da falta de investimentos na área da saúde que o Brasil já enfrentava, acumulada com uma má gestão da pandemia. Em meio a uma crise sanitária, tempo e dinheiro são os recursos mais preciosos e, certamente, não conseguimos gerir nenhum dos dois de forma adequada, conforme aponta Bozza:

O país perdeu a oportunidade de discutir coisas que funcionam — boas práticas, planejamento, incorporação de novas evidências científicas, investimento em estudos — e passou o ano discutindo práticas que sabidamente não funcionam e que talvez sejam até maléficas para os pacientes. Esses dados são resultados de tudo isso, desses múltiplos fatores. Já faltava leito antes e, durante a epidemia, obviamente faltou ainda mais, mas o problema não são apenas os leitos; é equipe qualificada, treinada e que possa seguir recomendações – algo que só agora está sendo discutido. As primeiras recomendações do Ministério da Saúde para o tratamento de pacientes com Covid grave começaram a sair em maio de 2021. […] A estratégia organizada pelo país até então foi prescrever um kit Covid para as pessoas que procuravam assistência médica e mandá-las para casa.

Como diminuir a alta taxa de letalidade hospitalar da Covid?

Este ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) começou a aprovar o uso emergencial de medicamentos para tratar a Covid-19, incluindo o remdesivir e o coquetel Regn-CoV2. O uso é recomendado em pacientes que já estão hospitalizados e há algumas restrições. Além disso, no caso do remdesivir, “ele pode reduzir o tempo de internação, mas não muda a mortalidade”, explica Bruno Besen, do HCFMUSP.

Em uma pandemia, temos que pensar no custo-efetividade, porque o recurso é escasso; não podemos gastar dinheiro em algo que não vai ter a efetividade desejada e que não traga um bom retorno desse investimento. E o remdesivir cai nesse grupo. Ele reduz um ou dois dias o tempo de internação, mas não muda a mortalidade hospitalar. Tanto que a própria OMS [Organização Mundial da Saúde] não recomenda para o tratamento de Covid-19. E é um medicamento muito caro, então faz muito mais sentido o Brasil investir em vacina e prevenção do que gastar com esse medicamento.

Uma autorização emitida pela Anvisa, no entanto, não significa que um medicamento passa a ser utilizado obrigatoriamente nos hospitais. Besen pontua que a decisão técnica é responsabilidade da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). “A Anvisa apenas diz que o medicamento funciona, mas quem decide se vale a pena pagar por esse medicamento no SUS, se faz sentido ele estar em uma estratégia do sistema de saúde, é a Conitec”. No caso, a comissão não recomenda o remdesivir para tratar hospitalizações pelo coronavírus.

Gustavo Marques, professor da UFPR e da PUCPR, lembra que outro medicamento em discussão é o tocilizumab. Em seu canal no YouTube ele tem, inclusive, um vídeo em que discute exatamente a eficácia da droga em reduzir a mortalidade por Covid-19. Assim como as outras drogas que receberam autorização da Anvisa, há algumas restrições em seu uso “Não é para sair receitando tocilizumab para todo mundo. Tem um perfil muito específico de paciente. Se você der para o paciente errado, você pode até piorar o quadro dele.”

Entre tantos estudos e recomendações controversas, Marques e Besen apontam que o corticoide foi um dos principais avanços no tratamento de Covid-19. “Vários estudos publicados no ano passado mostraram que o corticoide, sim, reduzia a mortalidade em pacientes internados que precisavam de oxigênio. Ele é um medicamento barato, amplamente disponível e que faz todo o sentido utilizar do ponto de vista de saúde pública”, diz Besen.

O uso desses medicamentos, no entanto, representa apenas uma pequena ajuda para tentar atender ao volume massivo de pacientes. O ideal seria ter mais profissionais qualificados para cuidar desses casos graves da melhor forma possível. Fernando Bozza, da Fiocruz, sugere duas medidas: a primeira delas seria oferecer treinamentos à distância e dissemar informações e recomendações de forma mais ampla para capacitar quem trabalha com esse tipo de atendimento. Além disso, é necessário reestruturar as equipes, de modo que sempre haja um especialista em UTI responsável por orientar um determinado número de médicos.

“Alguns hospitais contam com várias especialistas enquanto outros não têm nenhum. Então, é importante criar equipes coordenadas por especialistas. A gente viu nos hospitais de campanha que foram contratadas pessoas muito jovens e que, apesar se serem muito dedicadas e dispostas a ajudar durante a epidemia, tinham outra especialidade; eram cirurgiões plásticos, ortopedista que estavam atendendo pacientes de Covid. É preciso criar essa estrutura para que cada equipe tenha um especialista que oriente, que garanta essas boas práticas.”

Besen concorda que investir em educação é o ideal pensando a longo prazo. O problema é que trazer mais profissionais para a área de medicina intensiva pode não ser uma tarefa fácil, principalmente após a pandemia. “A residência de terapia intensiva já era considerada uma área prioritária para o Ministério da Saúde por haver escassez de intensivistas. Isso já era um problema conhecido. A dificuldade é que a área não é muito bem vista pelas pessoas; muita gente foge um pouco disso pensando na qualidade de vida.”

Se formar pessoas leva tempo e nem sempre é algo simples, existe alguma solução a curto prazo? A resposta é o que temos observado em países que conseguiram reduzir não apenas o número de mortes, como de casos também: medidas de distanciamento social e vacinação em massa. “Nâo tem como mudar questões estruturais a curto prazo. A única coisa que dá para fazer é segurar a demanda, apostando todas as fichas na prevenção e controle da transmissão. Com menos pacientes chegando na emergência, mesmo que ela não seja a melhor, a pessoa é rapidamente transferida para receber o tratamento adequado”, diz Ricardo Schnekenberg, da Universidade de Oxford.

Para Gustavo Marques, a chave é acelerar o programa de vacinação no Brasil.  “Quanto antes tivermos uma vacinação maciça da população, menor a taxa de transmissibilidade. Consequentemente, os leitos começam a ser desocupados e você não tem toda essa sobrecarga de profissionais. Muitas vezes, temos algumas distrações, outras discussões que não deveriam ser prioridade. Agora, a prioridade precisa ser o programa de vacinação.” 

Segundo Bruno Besen, as medidas de prevenção fazem ainda mais sentindo quando se trata de uma doença transmissível, como é o caso da Covid-19, e que, teoricamente, poderia ser controlada para evitar internações e a sobrecarga dos hospitais:

A curto prazo, a única medida eficaz seria reduzir a contaminação da população. Uma vez que você aumenta muito a capacidade do serviço, além do que ele estava acostumado, e conta com recurso humano sem a qualificação técnica necessária ou em uma quantidade insuficiente, isso vai ter um impacto direto em piores resultados. Então, não basta ter ventilador, leito de UTI, monitor; é preciso ter recurso humano qualificado. E tudo bem que agora podemos estar pensando em formar mais profissionais, mas a melhor solução é que as pessoas não cheguem à UTI para que eu precise cuidar só de quem não tem Covid-19. Por ser uma doença transmissível, a gente conseguiria controlar com medidas de saúde pública — o que faz muito mais sentido do que tratar milhares de pacientes.