A Nintendo tem um legado com jogos e personagens icônicos que revolucionaram o mercado de entretenimento, mas é melhor pensar duas vezes antes de baixar uma versão emulada do jogo ou colocar o Mario em um fan-game. Na verdade, é melhor pensar dez mil vezes antes de usar qualquer propriedade da Nintendo em qualquer lugar.
A empresa japonesa tem um extenso histórico de processos em cima de pessoas e sites que usam imagens, sons ou qualquer elemento que envolva as franquias que estão sob seu guarda-chuva. A Nintendo tem fama de ser ferrenha defensora dos seus direitos. Talvez até demais.
O que são emuladores
Antes de tudo, é preciso entender que, tecnicamente, o emulador não é ilegal. Emulador é apenas um software que reproduz as funções de um determinado ambiente digital para permitir a execução de outros softwares sobre ele.
As próprias empresas de jogos utilizam emuladores, a Microsoft fez emulação no Xbox One para rodar jogos do modelo anterior, o Xbox 360. Ou mesmo a Nintendo que utilizou um software que simula jogos antigos para o lançamento da coletânea ‘Super Mario 3D All-Stars’.
O problema é quando há a divulgação, hospedagem e distribuição do conteúdo desautorizado pela empresa detentora dos direitos de uso, como são os casos de sites de ROMs (Read-Only Memory, um tipo de memória que permite apenas leitura dos arquivos, que não podem ser alterados).
Em maio, a Nintendo ganhou um processo contra o site ROMUniverse, que hospedava jogos piratas da empresa. A ação foi feita em 2019 e só neste ano o tribunal decidiu sentenciar o dono do site por violação de direitos autorais com uma multa de US$ 2,1 milhões.
A maioria dos sites dessa natureza disponibilizam gratuitamente os jogos piratas, porém no caso, o ROMUniverse lucrava em cima de propagandas e disponibilizava uma conta premium, em que usuários poderiam pagar para ter acesso ilimitado de downloads dos jogos piratas.
A Nintendo e o debate da propriedade intelectual
Então, a Nintendo está certa em processar esses sites? Na letra fria da lei, sim. É o que explica César Peduti Filho, advogado especializado em propriedade industrial em entrevista ao Bitniks. “Existe um conjunto de direitos que são garantidos pela lei brasileira e os tratados internacionais de Propriedade Industrial que garantem o uso exclusivo do jogo eletrônico criado por ela [a empresa]”.
No site da Nintendo há uma página exclusiva sobre propriedade intelectual, em que lembra que a empresa “detém os direitos de propriedade intelectual dos seus produtos, que incluem direitos de autor, marcas comerciais, patentes e direitos sobre desenhos”.
Mesmo que a maioria dos sites de ROMs não lucrem com os jogos, Peduti entende que a Nintendo entra com ação judicial pelo direito de não divulgar. “O titular tem o direito de não fazer o uso da propriedade. E não é porque ele não faz que outros estão livre para fazer o uso.”
Anderson do Patrocínio, advogado que estuda a relação entre política e jogos na Universidade Federal do ABC (UFABC), observa que a Nintendo também processa sites que disponibilizam indisponíveis em outra plataforma — simplesmente por saber que as propriedades têm valor comercial. “As empresas entram justamente porque elas querem coibir o acesso sem que haja uma contraprestação de valores porque é onde mora o potencial comercial dos jogos.”
Tanto o Brasil quanto outros países possuem legislação própria para tipificar e aplicar normas e imposições a respeito da proteção de produção ou processo de conhecimento, sejam materiais ou não.
Emulação e preservação
Se por um lado, os emuladores são mal vistos por empresas e por quem combate a pirataria, há aqueles que os veem com bons olhos no campo da preservação.
Não importa o quão bem guardado um material possa ficar, cartuchos, arcades, consoles e controles são vítimas do tempo e irão deteriorar. Muitos jogos, se não forem bem preservados, podem cair no esquecimento.
Nesse caso, os emuladores são uma alternativa para preservar esses títulos que não foram relançados para os consoles mais modernos ou nunca chegaram a ser lançados na época de seu desenvolvimento.
Frank Cifaldi, diretor da Video Game History Foundation (Fundação da História dos Videogames), é um dos defensores da ideia de que os emuladores são a alternativa quando as empresas de games não se interessam em conservar os jogos. E que até essas empresas se beneficiam dos emuladores e sites que os disponibilizam.
Em 2016, durante a Game Developers Conference (Conferência de Desenvolvedores de Jogos), Cifaldi citou o caso do Virtual Console, sistema que a Nintendo lançou que emula os jogos antigos — como o Super Mario Bros. de NES — em consoles mais modernos como Wii e Wii U.
Na palestra, ele revelou que, ao olhar o código da versão de Super Mario Bros. no Virtual Console, é possível encontrar uma linha que só existe por jogos que foram convertidos para ROM, que tiveram o conteúdo transferido do cartucho para um computador. Ou seja: a Nintendo lançou o “jogo pirata” que ela mesma perdeu e alguém preservou.
A Nintendo baixou uma ROM em algum dos sites que ela procurou fechar e vendeu de volta para o público. . “Dê aos consumidores uma alternativa [de ter acesso ao jogo] e você elimina muitas das empresas de pirataria”, afirma o diretor sobre os problemas com a emulação.
Assim como Cifaldi, Anderson também é um entusiasta dos emuladores e acredita que eles conseguem ser uma ferramenta acessível com enorme carga histórica. “Se por um lado você tem um argumento do potencial comercial de determinados jogos, de outro tem uma fração importante de um material histórico que, se não fosse pela emulação, nunca mais teria acesso”.
Mesmo aqueles contra a pirataria, há os que entendem que a relevância dos emuladores e ROMs.
Rodrigo Coelho é criador de conteúdo voltado para Nintendo e foi um dos responsáveis pela campanha #Nintendo Brasil, que incentiva a empresa a localizar os jogos para português do Brasil.
Em entrevista ao Bitniks, ele conta que é contra a pirataria por acreditar que a prática boicota a indústria, mas entende a importância ao fazer emulação de jogos, pois de alguma forma, é uma maneira de entender como um jogo funciona e sustenta uma comunidade. “Não acho que deva demonizar [o emulador], é uma tecnologia muito importante que é utilizada para coisas boas também”.
A zona cinzenta da pirataria com a Nintendo
Discutir emuladores é, de alguma forma, entrar no assunto da pirataria e da legalidade. Por lei é crime e, recentemente, a Polícia Federal tem realizado operações para combater sites e TVs que fazem transmissões ilegais.
No entanto, é preciso admitir que a pirataria facilitou o acesso de camadas menos privilegiadas da sociedade, ainda mais se tratando do Brasil, um dos países que mais consome conteúdo ilegal. Quem nunca teve contato com os CDs piratas de PlayStation 2 ou com “consoles” que vinham com diversos jogos de Super Nintendo.
Patrocínio se considera um exemplo de alguém que, sem a pirataria e a emulação, não teria acesso ao videogame na proporção e impacto que teve. “O videogame não pode ser um produto que exclua. Independente do jogo ser mais artístico ou de entretenimento de massa, ele deve incluir, agregar e trazer debate, reflexão e diversão”.
Outras empresas do ramo também já entraram com processos contra site de emuladores como a Sony e a Microsoft, mas Coelho acredita que a Nintendo vai mais adiante por ser uma empresa que possui um laço forte com os jogos retrôs e que até hoje desenvolvem continuidade para franquias como Mario, Metroid, Pokémon e entre outras.
Vitor Vilela é engenheiro de software e hacker ROM de jogos SNES. Ele tem criado patches para jogos rodarem em tela cheia, seu mais recente trabalho foi com Super Mario World. Ele acha certo a Nintendo derrubar sites piratas, apesar da preocupação de saírem do ar conteúdos que não são ilegais. “A maior preocupação é a Nintendo começar a derrubar conteúdo que não tem qualquer direito autoral, como o código fonte dos ROM hacks, mods ou vídeos”. Explica.
Questionado se tem receio de sofrer algum processo, VIlela afirma que cria essas extensões e não utiliza nenhum material ou conteúdo autoral, mas há uma chance de a Nintendo solicitar a retirada por entender que atrapalha os negócios. “Nesse caso não há muito o que fazer, não vale muito a pena a gente recorrer ao judiciário contra uma empresa gigante pois os resultados podem ser bem imprevisíveis”.
Além dos emuladores, a Nintendo já pediu a retirada de games criados por fãs mas inspirados em suas franquias. Alguns poucos lucravam, mas a maioria era distribuído gratuitamente.
Existe uma solução?
Mergulhar no assunto da emulação é se emaranhar nos fios que vão do jurídico até a moralidade em retirar sites que carregam incontáveis acervos históricos dos jogos. Para os quatro entrevistados, perguntei se há uma solução e se é possível que ambos os lados saiam ganhando.
Coelho acredita que é difícil. ”Você derruba um site desses e surge mais três, a internet é uma hidra”. Mas ele acredita que a melhor forma no caso da Nintendo é conscientizar e oferecer um serviço melhor para os jogadores.
Já Vilela se contenta com as leis existentes, mas acredita que com o tempo o assunto vai ser melhor debatido. “Ainda estamos amadurecendo juridicamente dentro do universo tecnológico. Somente recentemente começaram a surgir leis de proteção de dados e contra crimes digitais, por exemplo. Creio que é uma questão de tempo até chegarmos a um consenso na parte de proteção intelectual e direitos autorais.”
Peduti acredita que os sites de ROM devem ser punidos pois lucram com os dados das pessoas que cadastram, chegando a violar e fazer o uso indevido e monetizar com a venda de anúncios.”Não tenho dúvida de que há uma atividade comercial e há um risco por trás da disponibilização de jogos em emuladores ‘gratuitos “.
O advogado é categórico e diz que apenas comprando legalmente os produtos é possível incentivar o mercado para que funcionários trabalhem com melhores equipamentos e serviços. “Se o mercado saudosista de games antigos valoriza tais games, as pessoas deveriam estar preocupadas em preservar os direitos dessas empresas. Somente com a preservação dos direitos que a empresa vai continuar motivada a investir no desenvolvimento de novos jogos”.
Patrócinio vê que há possibilidade de acordos, desde que haja interesse das empresas em oferecer parte desse material com o argumento de preservação histórica para a comunidade a preço mais justos e modestos.
O advogado acredita que ao analisar casos jurídicos, é preciso ver também os aspectos sociais. “Não tem como estudar a letra fria da lei, sem a leitura social do fato e do fundamento do que está acontecendo.”