A pandemia de Covid-19 mudou a educação de todos. Mas, os estudantes de áreas da saúde, sofreram um pouco mais. A convivência, a experiência do dia a dia e o chamado ‘mão na massa’ de quem estará nas próximas linhas de frente, aconteceram de um jeito não-habitual, já que as aulas práticas presenciais durante esse período deram lugar às plataformas de ensino à distância (EAD).
O professor e diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, Rui Alberto Ferriani, explica que os cursos de saúde têm um comportamento diferente dos outros, já que eles necessitam de atividade presencial. “Todas as aulas que são teóricas e podem ser online, são bem desenvolvidas. Contudo, a área de saúde não pode prescindir de atividades presenciais, não existe curso de saúde à distância”, disse ao Bitniks.
Ainda que haja desagrado por parte de alguns estudantes, o Ministério da Educação (MEC), em 2019, publicou uma portaria que autoriza as universidades federais e particulares a oferecerem cursos presenciais com 40% das aulas à distância.
Mesmo assim, Nicole de Micy, aluna do quinto ano de medicina da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) disse que as aulas remotas são ‘mais longas e cansativas. “O maior impacto que sinto é na hora de tirar dúvidas. Numa aula gravada, por exemplo, não tem a possibilidade de perguntar em tempo real para seguir o raciocínio da aula. Depois de um tempo, aquilo não faz mais sentido”, explica.
Isso pode ser ainda mais intensificado quando os alunos estão no final da faculdade. Carolina Reese, aluna do oitavo e último semestre da graduação de fisioterapia na Universidade Paulista (Unip), conta que a potencialização dos sentimentos foi a pior parte. “Por estar no último ano, entregando o Trabalho de Conclusão de Curso, sinto que não tivemos apoio da instituição. Dessa forma, a gente acaba se cobrando muito mais. Na realidade foi muito desgastante”, disse a aluna.
Entretanto, Marília Ancona-Lopez, vice-Reitora de Graduação da Unip, relatou ao Bitniks que todos foram pegos de surpresa (com a pandemia), e mesmo assim a universidade conseguiu atender às necessidades. “Foi tudo muito rápido. Nós imaginávamos que duraria apenas 15 dias, mas vimos que não teria jeito e adaptamos as aulas para o modelo remoto”, conta.
Volta às aulas (ou quase)
No segundo semestre de 2020, o Governo de São Paulo autorizou a volta às aulas presenciais dos cursos da área da saúde, mesmo com as medidas de isolamento adotadas no estado. A maioria das universidades apostaram em modelos híbridos, ou seja, parte das aulas presenciais (de preferência as práticas) e parte das aulas remotas.
Ancona-Lopez esclarece que para que essa volta fosse possível, a Unip teve que investir em infraestrutura e laboratórios que respeitassem o distanciamento, além de uma equipe de limpeza que atua na higienização dos ambientes, para atender as dezenas de alunos que retomaram as atividades.
Na FMRP, que tem cerca de 1380 alunos do curso da saúde, Ferriani conta que a universidade investiu em laboratórios de simulação, compraram macas, manequins adicionais na intenção de criar de tentar ambientes de simulação seguros para dar continuidade às aulas práticas. “A gente usou o anfiteatro da universidade, e os professores faziam as atividades com grupos de dois ou três alunos”, conta.
Entretanto, há certo receio do diretor com os cenários atuais. Segundo Ferriani, antes a universidade tinha um cenário clínico para atividade eletiva (escolhida pelos estudantes), e esse cenário se transformou, grande parte, em ações voltadas à Covid-19. “Nossos estudantes precisam se inserir nesses ambientes, já que estão numa fase de formação, precisam conhecer a realidade da pandemia. Só que ao mesmo tempo, é preciso preservar a segurança do paciente no contato com os alunos, e vice-versa”, explica o diretor da FMRP.
De Micy acredita que não é possível abrir mão da formação completa. Ela diz que “todas as vivências que teremos nesse momento de pandemia, serão as vivências que encontramos no mundo lá fora quando nos formarmos. É algo que a gente escolheu, teremos que viver com isso”, destaca. No entanto, ela se mostra receosa, assim como Ferriani, sobre a exposição de alguns alunos, principalmente aqueles que estão nos primeiros anos da graduação.
Esse temor é válido, já que apesar de os estudantes do último ano dos cursos nas áreas de saúde poderem ser vacinados em São Paulo, muitos ainda não receberam qualquer dose da vacina.
Reese e outros colegas também ouvidos pela reportagem disseram que perderam muito conteúdo nas aulas práticas. Segundo Aline Lira, outra estudante de fisioterapia da Unip, as aulas presenciais acontecem somente uma vez por semana, o restante está tudo EAD. “Era pra gente estar fazendo um acompanhamento próximo aos pacientes”, destacou.
Ancona-Lopez, contudo, diz que isso não afeta na prática as disciplinas, já que, de acordo com ela, “de qualquer forma os alunos do último ano irão adquirir experiência prática na universidade, que está funcionando de forma híbrida. E em segundo momento, irão aperfeiçoar quando entrarem para vida profissional”, completou.
Allan Carlos e Beatriz, estudantes do penúltimo ano (oitavo semestre) de psicologia da Unip, sentem que houve perda que não dá para quantifica: a da convivência. “A falta de interação com os colegas foi a pior parte, nas aulas online todo mundo fecha a câmera e a única pessoa que fala é o professor”, relatou Allan.
Outro ponto que os alunos destacam é sobre o modelo de aula remota. De acordo com Beatriz, ela já participou de aulas com cerca de 500 alunos na mesma plataforma. “Fica quase impossível tirar uma dúvida”, explica.
O diretor-executivo do Semesp, Excelência a Serviço do Ensino Superior Rodrigo Capelato, justificou o fenômeno ao G1 dizendo que universidades perderam muitos alunos e que, em alguns casos, foi necessário juntar turmas. “É uma situação bastante delicada, porque você teve perdas de alunos, gerou perda de sustentabilidade, as escolas tiveram que trabalhar com turmas um pouco maiores e isso no formato remoto prejudica mesmo a interação” afirmou.
A informação vai ao encontro de pesquisa feita pelo DataFolha, que indica que cerca de 650 mil estudantes do ensino superior deixaram o curso no ano passado. A maioria deles revelou que não tinha dinheiro para pagar a faculdade ou que precisavam completar a renda familiar. Outros justificaram o abandono por terem ficado sem aula e tiveram dificuldade com a educação à distância.
Todavia, Ancona-Lopez explicou que esse sistema EAD funciona, mesmo que a demanda de alunos seja alta. “As aulas sempre ficam gravadas para que o aluno não perca esse conteúdo, ele pode eventualmente assistir mais de uma vez, em qualquer dia ou hora. Nós utilizamos a aula em tempo real para tentar criar uma rotina de estudo”, esclarece.
Ainda segundo ela, “não dá para quantificar o impacto que a pandemia vai ter na formação desses profissionais. Sabemos que no ensino fundamental o aprendizado foi muito impactado, mas falta uma pesquisa que exponha esse cenário da graduação”, argumenta.
O futuro dos futuros médicos
Ferriani também acredita que não há como medir as consequências da pandemia a longo prazo na formação desses profissionais. Mas para ele, “a perda é real, mas não é só o ensino. Se você for ver, o ensino online substitui (a teoria), mas há todo um histórico de motivação do estudante, do convívio no campus. Essa é uma perda que eu não consigo mensurar”, afirma.
Apesar do cenário caótico que esses estudantes enfrentam, muitos mostram coragem. Mais de cem mil alunos se inscreveram no programa “Brasil Conta Comigo”, iniciativa do MEC e do Ministério da Saúde, que incentiva os estudantes dessas áreas a atuarem no combate ao coronavírus. De Micy, Beatriz, Allan e Aline, e tantos outros estudantes espalhados pelo país, de cursos diferentes em universidades diferentes, têm isso em comum: a vontade de colocar em prática tudo aquilo que aprenderam.