A internet é um lugar que propõe debates e dissemina temas importantes para a sociedade, um deles é sobre gênero — um conjunto de representações e comportamentos construídos a partir da diferença entre os corpos, que servem como indicadores culturais da identidade pessoal e social de alguém.
Em maio de 2021, Demi Lovato, estrela da música e da televisão, declarou publicamente que é uma pessoa não binária. “Eu passei por um trabalho de cura e reflexão e, com isso, tive a revelação de que me identifico como pessoa não binária”, disse em vídeo publicado no Twitter. Assim como elu, Bárbara Paz também se sente assim: em uma entrevista para o podcast Almasculina, a personalidade se descreveu como uma pessoa inquieta. “Uma mulher, um homem, não binária. Descobri que sou não binária há pouco tempo”, disse no episódio que foi ao ar em maio.
Mas o que significa isso? Segundo o manual de consultoria de diversidade da Diversity Bbox, o termo não binário é usado para descrever pessoas cuja identidade de gênero não é de homem ou de mulher. Também representa quem transita entre os gêneros, é uma combinação de gêneros ou está além. Segundo uma pesquisa publicada na revista científica Nature em janeiro deste ano, 1,19% dos adultos brasileiros se identificam dessa forma.
A comunicação entra em pauta com a necessidade de pensar em uma linguagem inclusiva para além dos pronomes ele e ela. É a chamada linguagem neutra ou não binária. “Assegurar isso como prática é viabilizar que se torne real a existência de todos os corpos”, diz o psicólogo Carú de Paula, ao Bitniks. “Se há uma vida fora da norma existente, precisamos garantir que ela seja respeitada em todos os sentidos. Quando isso é reconhecido na fala, gera saúde mental.” Isso porque é a partir desse reconhecimento que se pensa em políticas públicas, desenvolvimento de saúde e garantias para essas pessoas.
A linguagem neutra também permite um novo leque de possibilidades para os pequenos. “Se, em uma aula de português na escola, por exemplo, uma criança se separa com uma realidade não binária, ela sabe que pode viver a vida em sua plenitude de formas diferentes para além do masculino e feminino”, completa Carú.
Um português sexista
O português usa pronomes e artigos para definir o gênero das pessoas a quem estamos nos referindo. Mas na história da língua, isso nem sempre foi assim. “No latim, de onde deriva o português, não era necessário o uso de pronomes e nem de identificação de gênero nas palavras”, explica o linguista Danniel Carvalho. “Mas na mudança dele para as outras línguas românicas, como o italiano, o francês, o espanhol e a nossa, houve a necessidade de inclusão de novos elementos.”
Segundo o especialista, fatores sociais e políticos provavelmente interferiram nesse processo. Um deles pode ter sido o fato da dominação da escrita pela Igreja Católica na Idade média, que transmitiu seus aspectos conservadores para a linguagem.
Mas hoje, a busca pela igualdade de gênero possibilitou novas discussões sobre o assunto. “Se levarmos em conta as identidades travestis e as não binárias, a língua acaba não os contemplando. Então passamos a pensar sobre como remediar esse problema.” Primeiro, se discutiu algumas terminações neutras como o @ ou o X. No entanto, isso não é acessível para pessoas com deficiência visual, já que alguns leitores tecnológicos não entendem as palavras escritas dessa forma. Além disso, surgiu a necessidade de vocalizar essas terminações. Foi aí que houve a sugestão de inserir o artigo “e” no final das palavras — amigo, por exemplo, vira amigue — e a criação de pronomes como ile e elu.
Para Carvalho, a maior dificuldade da linguagem não binária, assim como outras linguagens não preconceituosas, é que ela desafia o poder dominante. E Carú concorda com isso: “A língua faz parte de um sistema que existe para manter uma estrutura patriarcal da nossa sociedade.” Isso quer dizer que ainda há um tabu muito grande em se difundir algo que fuja da dicotomia do Adão e da Eva. Isso gera um desconforto na maior parte da população e, principalmente, naqueles que ditam as regras.
Isso se reflete no Projeto de Lei 5248/20, que proíbe o uso da linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas no ensino da língua portuguesa no ensino básico e superior. A proposta, escrita pelo deputado Guilherme Derrite (PP-SP), inclui a vedação em documentos oficiais dos entes federados, em editais de concursos públicos, assim como em ações culturais, esportivas, sociais ou publicitárias que percebam verba pública de qualquer natureza. Segundo Derrite, seu intuito é “determinar que o aprendizado da língua portuguesa seja feito de acordo com a norma culta, com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), com o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) e com a grafia fixada no tratado internacional vinculativo do Acordo Ortográfico de Língua Portuguesa”.
No mundo afora
Assim como no Brasil, outros países do mundo estão tendo esse debate — porém, de forma mais aberta e avançada. Em Portugal, expressões neutras e inclusivas já podem ser usadas em certidões e registros civis por recomendação do governo.
Já na Argentina, a Faculdade de Ciências Sociais de Buenos Aires aprovou o uso da linguagem neutra institucionalmente em 2019. O documento, publicado no site oficial da instituição diz que “para que a igualdade jurídica se traduza em igualdade efetiva, é necessária uma profunda transformação nas práticas sociais”.
Em inglês, tanto o britânico Oxford Dictionary quanto a editora norte-americana Merriam-Webster reconhecem o pronome “they”, no singular, como a maneira de fazer referência a pessoas não binárias. A palavra foi escolhida como a palavra do ano, em 2019, por esse último. “Embora as pesquisas geralmente sejam motivadas por eventos no noticiário, o dicionário também é um recurso primário para obter informações sobre o próprio idioma, e a mudança no uso do ‘they’ tem sido objeto de crescentes estudos e comentários nos últimos anos. As buscas por seu significado aumentaram 313% em 2019 em relação ao ano anterior”, afirmou a publicação inglesa.
Afinal, como ser inclusivo através da fala?
Carvalho reflete que não é necessário mudar toda a língua para ser inclusivo. “A gente não precisa criar expressões ou adotar uma forma que dificultariam a acessibilidade. O que podemos fazer é evitar determinadas expressões”, afirma. Ou seja, ao invés de falar “alunos e alunas”, é possível usar palavras que neutralizam as marcas de gênero, como “estudantes”.
Evitar classificar os membros da comunidade de acordo com gênero também é possível. Que tal usar “corpo docente” ao invés de “professores”? “É um exercício difícil e que exige atenção, mas precisamos sair da zona de conforto para fazer qualquer tipo de mudança. A própria língua oferece essas alternativas. É só pensar quais palavras você conhece que não dividem as pessoas em masculino e feminino”, conclui.
Perguntar como uma pessoa prefere ser chamada pode ser outra saída, no entanto, ouvir o outro com atenção é a melhor forma de identificar. “No encontro com uma pessoa, o mais importante é a escuta. Sair do piloto automático é essencial. É preciso de uma vigilância de si porque nós somos os reprodutores da norma. Evitar disso é ideal para fazer mudanças efetivas”, diz Carú.