A primeira e única vez que estive a bordo de um avião foi por conta de um evento promocional, em 2017. O voo foi de São Paulo ao Rio de Janeiro, deu voltas pelo Cristo Redentor e retornou à capital paulista. A viagem “bate e volta” do aeroporto de Congonhas durou pouco mais de uma hora, mas o tempo foi mais que o suficiente para me deixar fascinado com a noção de estar sobre as nuvens.
Quase exatos quatro anos depois, pude repetir esta jornada (e também o que senti naquele momento) ao jogar Microsoft Flight Simulator, um dos lançamentos para Xbox Series X/S que mais aguardei neste ano. Como o nome dá a entender, o game faz parte de uma série de simuladores de voo, mas sua escala e nível de fidelidade é sem precedentes, capaz de conquistar quem não joga videogame e, principalmente, quem nunca pilotou um avião.
Réplica fiel em Microsoft Flight Simulator
À primeira vista, o jogo parece ser composto somente por uma aeronave sobrevoando o planeta virtual do Google Earth, mas basta chegar perto do solo e você nota a fidelidade de detalhes – e vê que é mais complexo do que parece. De fato, os desenvolvedores ‘mapearam’ o planeta Terra inteiro por meio da fotogrametria, só que isso foi somado a mapas de altura e imagens de satélite, resultando na construção de boa parte do mapa. Inteligência artificial toma conta de tratar essas imagens, remover sombras e nuvens, fazer correção de cores e detectar tipos diferentes de árvores, gerando modelos tridimensionais. O resultado é que você consegue voar por qualquer canto do planeta em uma escala 1:1.
Os desenvolvedores do Asobo Studio, o mesmo de A Plague Tale e alguns games da Disney/Pixar, porém, logo notaram que o maior obstáculo seria o peso dos arquivos. Na nova geração de consoles, 4K/HDR e texturas realistas de 510 milhões de quilômetros quadrados pesariam algo absurdo: 2,5 petabytes de dados, coisa que somente 10 mil computadores conseguem processar. A solução? Fazer streaming dos arquivos de forma imperceptível ao usuário.
Infelizmente esta função é necessária, caso contrário as árvores ficam chapadas e o jogo não funciona propriamente. Uma camada extra de realismo se dá quando você descobre que pode ativar condições climáticas, tráfego aéreo e fusos-horários respectivos em sincronia com a realidade.
Entendendo toda a tecnologia por trás do game, fica mais fácil explicar a dimensão de Flight Simulator e como ele se destaca de outros simuladores mais “limitados” à venda hoje.
Vivemos numa simulação
Flight Simulator teve seu lançamento há menos de um ano para PC, plataforma prioritária para quem quer adquirir joysticks e outros apetrechos que melhoram a experiência do jogador imerso dentro da cabine virtual. Admito que precisei me acostumar com combinações inusitadas de botões do Xbox. Sorte que, assim como as “aulas de voo” disponíveis no game, é só questão de se habituar aos controles.
O seu interesse dita sua profundidade: quem quer aprender cada comando específico pode se tornar expert em poucas horas; quem só quiser passar por cima da própria casa pode traçar uma rota e deixar a nave no piloto automático.
Assim como a versão de PC, no videogame da Microsoft você pode adquirir expansões (algumas gratuitas) para gradualmente construir seu “mundo” mais fiel, o que vem carregado de uma enorme quantidade de gigabytes para seu console.
Por padrão, o jogo vem com meia dúzia de locais modelados com alta fidelidade: Nápoles (Itália), Gizé (Egito), Bora Bora (Polinésia), Monte Evereste (Nepal), Nova York (EUA) e Rio de Janeiro. Recomendo os pacotes gratuitos de Tóquio, Reino Unido e a atualização que combina França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Quem viu as 7 maravilhas do mundo no Google Earth/Street View não sabe o que é sobrevoar arquipélagos e belezas naturais a bordo de um avião virtual. O bom é o game indicar os potenciais pontos de interesse, caso você ative essa função, para poder direcionar seu passeio evitando se guiar pelo mapa.
Ao passear por São Paulo, senti falta de pontos turísticos como o Obelisco do Ibirapuera. Pelo menos a Avenida Paulista está lá, com os mesmos problemas que a Times Square nova-yorkina: ruas acidentadas, carros pixelizados que vão de um lado a outro e texturas preenchidas pela I.A. do sistema. Lá de cima isso não faz diferença.
Claramente não demorei a “refazer” meu trajeto de Congonhas até o Cristo Redentor e foi justo aí que senti o potencial escapista de Flight Simulator. Tentar encontrar sua casa pode ser divertido, mas passear o mundo e saber que você levaria aquele tempo exato para fazer o trajeto na vida real é algo sem precedentes.
No passado, tive algumas oportunidades de testar games em realidade virtual, porém, nunca tive a sensação de estar completamente imerso no universo ali criado, seja Resident Evil VII ou um game de Star Wars. Um nivel de ceticismo instintivo pesa bastante para evitar me conectar ao jogo. Pela primeira vez, à frente de uma televisão (display menos “limitador” que óculos VR), senti no Flight Simulator essa dimensão extra.
Por incrível que pareça, estar no controle de um avião e poder ir de um aeroporto de Tóquio até o Monte Fuji torna-se uma experiência palpável. É o tempo real. Com isso, suas capacidades de multitask enquanto piloto são colocadas à prova, ainda que o jogo não tenha objetivos concretos como outros simuladores. No máximo você tem as provas de aviação no modo de tutorial, mas no “mundo aberto” é você que guia seu destino – literalmente, você pode pousar em qualquer pista improvisada. Afinal, são mais de 37 mil aeroportos para decolar/pousar.
Microsoft Flight Simulator é jogo ou não?
Se você estava no lado “gamer” do YouTube na última década, com certeza esbarrou com vídeos de simulators mais engraçados que te colocam em profissões pouco comuns, como My Summer Car (mecânico de carros finlandeses), Surgeon Simulator (cirurgião) e House Flipper (pedreiro/designer de interiores).
Digitalmente influenciado, cerca de cinco anos atrás comecei a dar uma chance aos simuladores mais “sérios”, como Bus Simulator e Farming Simulator para PC e consoles. A depender da edição (e ano de lançamento), em ambos você pode customizar sua experiência para que consiga equilibrar diversão e imersão. Na época, voltar de ônibus para casa foi quase esquisito – e imagino que o mesmo aconteceria caso eu viajasse hoje de avião, depois de Flight Simulator.
Entre vídeos aleatórios do YouTube, encontrei um piloto reagindo ao quão fiel o Flight Simulator atual representa uma aeronave A320. Com a maestria do piloto, girando a câmera e selecionando botões específicos no cockpit, comecei a me questionar se, com tamanha dedicação e lendo os manuais certos, o quanto eu poderia aprender sobre controles reais de voo com este simulador.
Os jogos mais bizarros não deixam dúvida. Eles possuem missões, níveis e pontuações de diversos tipos. Agora, por mais que seja uma réplica do mundo real, Flight Simulator deveria ser considerado um “jogo”? Ele seria o resultado da gamificação de simuladores reais?
Independente de como você considerá-lo enquanto desfruta ou joga, Flight Simulator não é perfeito. Por este e outros motivos, ele é uma cópia do nosso mundo – uma fotografia, um instante, um simulacro. Casas são construídas e demolidas todos os dias; desastres naturais resultam em acidentes geográficos. Atualizações no game podem acontecer com certa frequência, mas sabemos que a Microsoft provavelmente deve demorar um longo tempo para lançar mais um título da série com tamanha fidelidade e dedicação.
Parcialmente por desinteresse (e por outras prioridades financeiras), nunca mais viajei. Agora, tenho mais vontade que nunca.