O Projeto de Lei (PL) 490 que tramita no Congresso desde 2007 pode impactar a vida, sobrevivência e direito de vários povos indígenas. O texto sugere uma série de alterações nas regras de demarcação de terras indígenas e em outras questões envolvendo o Estatuto do Índio. Hoje demarcação dessas terras, como sugere o artigo 231 da Constituição Federal, compete exclusivamente à União. A delimitação acontece por meio de um processo administrativo da Fundação Nacional do Índio – Funai. Ainda segundo a Constituição, não é preciso provar a data de posse da terra, já que os indígenas são povos originários.
De um lado a bancada ruralista defende uma das alterações chamada tese ‘Marco Temporal’, que sugere que só serão consideradas terras indígenas os locais ocupados pelos povos até o dia 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. Por outro lado, os indígenas ‘tentam explicar’ com base na tese do ‘Indigenato’, que a história dos povos não começou em 1988 e que, mesmo assim, a Constituição garante o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Além disso, o PL também defende outras alterações que poderão ter impacto no modo de vida dos povos indígenas. O texto prevê exclusão de áreas de garimpo de dentro das terras indígenas e a possibilidade de fazer contato forçado com indígenas isolados sob a alegação de que isso seria ‘utilidade pública’.
Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA) disse ao Bitniks em entrevista por telefone, que isso é um risco para essas populações. Segundo ela, “essas comunidades não têm memória imunológica. Qualquer gripe, por exemplo, pode dizimar o grupo todo. É muito perigoso não respeitar o modelo desses povos”.
Para os indigenistas, lideranças indígenas e o próprio Ministério Público Federal (MPF) a tese do marco temporal é inconstitucional, já que ela sugere legalizar e legitimar toda violência a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição. E mais do que isso: a tese ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não possuíam autonomia para lutar por seus direitos.
Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) disse em entrevista ao Bitniks que “a tese do marco temporal esquece toda violência praticada pelo colonizador, violência praticada na ditadura militar, onde houve remoções forçadas, comunidades deslocada para dar espaço à construção de grandes empreendimentos hidrelétricos, barragem. Todo esse impacto seria esquecido se porventura se marco temporal fosse aprovado”.
Diante desse cenário de alterações que dificultariam a demarcação das terras indígenas, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que inclui o julgamento do marco temporal, está hoje sob julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e será decretado constitucional ou não pela corte. A votação iria acontecer no dia 30 de junho, mas foi adiada para 25 de agosto, quando o supremo volta do recesso.
Supremo Tribunal Federal e as Terras Indígenas
Em 2019, o STF atendeu a um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Funai e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da terra índigena Ibirama-Laklanõ, reduzida ao longo do século XX. A corte reconheceu, por unanimidade, a ‘repercussão geral’ do caso. Ou seja, a decisão do STF será aplicada em outras situações envolvendo terras indígenas – o que é o caso do marco temporal. Ao admitir a repercussão geral, a corte também admite que é preciso definir o tema.
Trabalhando com a hipótese de votação inconstitucional do STF, Batista explica que mesmo assim, o PL 490 pode continuar tramitando, já que os poderes são independentes. Gustavo Alcântara, Procurador da República em Santarém, Pará, disse ao Bitniks que o julgamento do marco é “extremamente relevante porque vários grupos que estão hoje fora de suas terras por conta de um processo histórico de violência, de esbulho, estarão prejudicados se o Supremo vier convalidar os atos ilícitos que ocorreram no passado”. Segundo Alcântara, o julgamento é a única forma de garantir que esses grupos estejam novamente de posse plena de seus territórios com condições de se desenvolver culturalmente e socialmente’.
Tuxá explica que esse julgamento é histórico, porque pode “destravar os processos de demarcações que estão paralisados, esperando um posicionamento do STF em torno da política indigenista”. De acordo com a Comissão Indigenista Missionário, cerca de 310 terras indígenas estão estagnadas em alguma parte do processo de demarcação.
O que está em jogo
Não é de hoje que as terras indígenas têm sido alvo de invasões. As buscas pelo garimpo, mineração ilegal e desmatamento geram uma série de conflitos nas regiões. Caso o STF considere constitucional a tese do marco temporal, os povos indígenas ficarão sem seu direito básico, que é o direito à terra. Alcântara destaca que “os indígenas que naquele grau máximo de vulnerabilidade hoje, sem território, sem saúde, sem educação, sem alimentação adequada, irão permanecer dessa forma”.
Tuxá destaca o impacto além dos povos indígenas: a tese poderá trazer efeito socioambiental. Para ele, “uma vez as terras indígenas sendo abertas para o agronegócio, para exploração, grandes empreendimentos, tudo isso vai ser sentido diretamente e primeiramente pelos povos indígenas, mas consequentemente isso será sentido por toda a sociedade”. Segundo o coordenador executivo da Apib, vai haver aumento de queimadas, um aumento do desmatamento, do aquecimento global e mudanças climáticas. Será um impacto para toda a humanidade. Além do PL 490, Tuxá cita a chamada “Lei da Grilagem”, que pode permitir que terras públicas desmatadas ilegalmente se tornem propriedade de quem as ocupou, como outra luta dos povos indígenas.
Recentemente, indígenas fizeram diversas manifestações contrárias ao PL 490 em várias capitais brasileiras. Para Batista, é de extrema importância a mobilização da sociedade para dar suporte a esta luta. “Uma das principais formas de apoiar, é mandar e-mail aos deputados demonstrando a contrariedade ao PL, demonstrando nas redes sociais, e apoiar a mobilização dos próprios povos indígenas”, disse a advogada do ISA.
A discussão abre brecha para qual modelo de sociedade nós teremos, segundo Alcântara. De um lado, ele aponta um “modelo em que admite o ódio, a violência, o esbulho de terras e o risco a sobrevivência dos povos indígenas, ou se é aquela sociedade que a Constituição previu: justa e igualitária que usa o bem de todos sem exceção”, finaliza o Procurador.