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Como chips no cérebro vão mudar nossa relação com as máquinas

Sondas neurais

Arte: Lindon Johnson

Imaginar que um dia o nosso cérebro será capaz de controlar objetos e interfaces com o poder da mente não é mais coisa de filme de ficção científica. Na verdade, isso já está acontecendo graças a pesquisas científicas no mundo todo. Não para nos transformar em super humanos (pelo menos neste primeiro momento), mas para facilitar tarefas que, por si só, já são bastante simples — abrir um aplicativo no celular, bater uma foto, entre outras. Para quem tem alguma deficiência física, as chamadas sondas neurais podem ir além e auxiliar no comando de próteses, embora os métodos atuais para alcançar esse objetivo ainda sejam um tanto invasivos.

Fato é que o tema já atraiu atenção do CEO da Tesla, Elon Musk. Além da montadora de carros e da SpaceX, para foguetes, o bilionário financia a Neuralink, uma startup que surgiu em 2016 com planos ambiciosos de estreitar a integração do cérebro humano com as máquinas. As primeiras demonstrações do que essa tecnologia cerebral será capaz de fazer ainda são limitadas, mas nem por isso deixam de impressionar.

Decodificando o cérebro

O conceito por trás de interfaces cérebro-máquina não é recente. No final da década de 1940, o matemático estadunidense Norbert Wiener propôs a ideia de “cibernética”: sistemas, sejam eles mecânicos, elétricos ou biológicos, que podem ser controlados por meio de uma determinada informação. A tese ganhou força com o avanço das comunicações (e, sim, é deste conceito de cibernética que partiu toda nossa noção de ciberespaço).

As interfaces cérebro-máquina podem se traduzir de inúmeras formas. Desde um capacete externo, sem métodos invasivos, até dispositivos minúsculos implantados diretamente no tecido cerebral. O que permanece igual é o objetivo: captar os sinais, principalmente os elétricos, da atividade cerebral e direcioná-los para um ponto de controle, que pode ser a interface de um celular, uma prótese ou qualquer outro mecanismo que seja capaz de interpretar e receber corretamente aquele sinal vindo do cérebro.

Além de decodificar os sinais cerebrais, muitas sondas passaram a ter como função secundária estimular a atividade do nosso cérebro. No entanto, decodificar essas informações dá um baita trabalho, especialmente porque bilhões de processos acontecem ali.

“A gente consegue extrair bastante coisa, mas estamos muito longe de saber o que uma pessoa está pensando. Usando algumas técnicas, conseguimos extrair informações de como o cérebro funciona. Porém, precisamos distinguir como cada uma delas está sendo traduzida”, explica Gabriela Castellano, docente do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) do Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN). Castellano integra o grupo de neurofísica da instituição, que tem como foco de pesquisa o estudo de dados cerebrais provenientes de diferentes técnicas, além do desenvolvimento de novos métodos para a obtenção desses dados (como sondas neurais e novos aparelhos para espectroscopia óptica).

No caso de uma prótese, por exemplo, a pesquisadora afirma que o cérebro precisa pensar em comandos pré-estabelecidos, que por sua vez são enviados para um equipamento e traduzidos na forma de comando. “Para enviar um comando para uma prótese, temos que fazer com que o paciente gere sinais cerebrais específicos. Por isso, ele pensa em coisas bem específicas, como o movimento da mão direita ou esquerda, ou no movimento do braço, porque coisas assim são mais fáceis de detectar”, completa.

Os desafios da Neuralink e os chips no cérebro

A Neuralink surgiu em 2016, na Califórnia, como uma startup focada em neurociência e pesquisa médica, para ajudar pacientes em tratamentos por meio de chips implantados. Esses chips seriam capazes de captar os sinais elétricos emitidos pelos neurônios e traduzi-los para que então pudessem ser interpretados por um computador. Até então, a ideia do chip era bastante segmentada: pacientes com lesões graves no cérebro ou que perderam os movimentos devido a um derrame.

Não demorou muito para que Elon Musk ampliasse o potencial da Neuralink, que desde então tem se apresentado como uma empresa que visa democratizar a inteligência artificial por meio da simbiose entre máquina e humano. Nos primeiros comunicados, Musk foi categórico em descrever a tecnologia como uma forma de sobrevivência e adaptação de humanos com as máquinas. Musk está no grupo de pessoas que afirmam que a inteligência artificial um dia será maior do que a humana. Lembra daquele ditado “se não pode com ela, junte-se a ela”? É mais ou menos por aí.

O resultado dessa expansão da Neuralink veio em 2019, quando Musk revelou a criação de um microchip implantado na parte de trás do ouvido e que, teoricamente, poderia captar os sinais elétricos emitidos pelo cérebro. Batizada de N1, a primeira versão do chip é pequena mesmo: tem 4 mm por 4 mm. Apesar do tamanho reduzido, ele comporta 1.024 eletrodos colocados em cabos flexíveis mais finos ainda, cada um medindo cerca de 20% da espessura de um fio de cabelo. Esses fios, por sua vez, podem detectar a atividade de neurônios do cérebro humano. Para efeito de comparação, implantes neurais usados atualmente no tratamento de doenças, como Parkinson, possuem apenas 10 eletrodos.

O material dos componentes é um aspecto fundamental no desenvolvimento das sondas neurais. Segundo a Neuralink, as sondas são compostas principalmente por poli-imida, um material biocompatível, acompanhado por um condutor de ouro ou platina.

Outro ponto destacado por Musk é que, diferente dos métodos atuais, o chip N1 é “instalado” no corpo do paciente por um processo bem menos invasivo. Sim, ainda é um processo cirúrgico e, portanto, apresenta seus riscos. Contudo, a Neuralink criou um robô-cirurgião extremamente preciso que, controlado por um médico, pode implantar os cabos flexíveis no tecido cerebral sem causar danos ao paciente. A startup diz que o processo é tão seguro que a pessoa toma apenas uma anestesia local, não precisa raspar o cabelo e poderia ter alta do hospital no mesmo dia, já que o robô faz um furinho na pele e no crânio para inserir os fios, que por sua vez ficam ligados à base principal atrás da orelha. Todo o procedimento demoraria no máximo 45 minutos.

Cerca de um ano depois de mostrar o N1, a companhia apresentou uma evolução do protótipo. Ele mantém os mesmos 1.024 eletrodos, mas sua principal mudança está no design: em vez de conectar os cabos flexíveis a uma base atrás da orelha, o implante agora fica inteiramente colado na parte superior do crânio e tem o tamanho de uma moeda (23 mm x 8mm). O funcionamento também parece não ter passado por grandes alterações, uma vez que o objetivo é receber informações e, a longo prazo, estimular os neurônios.

Todos os comandos acontecem sem a dependência de fios ou cabos conectados em aparelhos externos. Ou seja, a transmissão é feita sem fio.

Ratos, porcos e agora macacos já receberam o chip da Neuralink. Os testes ainda são bem limitados, mas já mostraram ser possível estimular os animais a interagir com objetos no ambiente (no caso dos porcos) e controlar interfaces apenas com a atividade cerebral (macacos).

Macaco com Neuralink consegue controlar videogame

Ainda são controles básicos, em partes porque os eletrodos do chip N1 ficam posicionados no córtex — camada mais superficial do cérebro — e apenas uma quantidade de neurônios pode ser estimulada; algo entre 1 mil e 10 mil deles, o que é pouco, se levar em consideração que milhões de processos acontecem em nosso cérebro. Futuramente, a Neuralink espera ser possível usar os eletrodos para melhorar a vida de pessoas com distúrbios neurológicos, como doença de Parkinson e Alzheimer, e transtornos como autismo ou depressão. E quem sabe auxiliar no controle de próteses ou devolver os movimentos de um paraplégico, caso os fiozinhos do N1 penetrem mais fundo no cérebro.

O desafio disso tudo? O próprio cérebro. Por menos intrusivo que o chip da Neuralink promete ser, o cérebro é um órgão inteligente capaz de corroer qualquer item externo inserido em seu interior ou superfície. Logo, o chip antigo teria que ser removido e trocado por um novo de tempos em tempos

“Além de decodificar o que bilhões de neurônios do cérebro estão dizendo, os maiores desafios [no desenvolvimento das sondas] envolvem as técnicas, porque extrair o sinal desses neurônios é bastante difícil. Podemos colocar um eletrodo no escalpo da pessoa para captar sinais do cérebro e fazer com que esses sinais cheguem bem atenuados a uma prótese, por exemplo. Também podemos implantar um eletrodo diretamente no cérebro, e aí a informação é muito mais limpa, o que permite direcionar melhor o sinal de neurônios específicos. Em contrapartida, este segundo método exige uma cirurgia para abrir a cabeça do paciente e colocar o eletrodo lá dentro. E o cérebro reconhece aquele eletrodo como algo que está atacando ele, até começar a criar uma cicatriz em volta, fazendo com que o sinal do eletrodo perca intensidade”, diz Castellano.

De acordo com a Neuralink, a remoção do chip N1 é tão simples quanto o implante, e já foi comprovado que macacos que tiveram o componente extraído do cérebro não apresentaram sequelas mesmo semanas após a remoção. Mesmo assim, os desafios permanecem e precisam ser acompanhados continuamente. “De um lado, se precisamos fazer uma cirurgia de inserção, ideal é encontrarmos materiais que sejam melhores aceitos pelo organismo e não gerem perda de sinal. Do outro, podemos usar mecanismos externos que, embora dispensem procedimentos cirúrgicos, têm um sinal cerebral que é mais ruidoso e mais difícil de ser interpretado”, completa.

Pesquisas brasileiras não ficam atrás

A neurociência brasileira figura entre as que mais se destacam no estudo do cérebro humano. Um dos centros mais proeminentes é o BRAINN — Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia, também conhecido como Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (CEPID BRAINN)—, sediado na Unicamp, em Campinas, e apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

O BRAINN é fruto de um trabalho conjunto entre pesquisadores da Unicamp e de outras instituições brasileiras, e tem várias linhas de estudo envolvendo o cérebro. Uma delas é a criação de sondas neurais capazes de registrar e estimular atividades elétricas do sistema nervoso. E mais: facilitar o desenvolvimento dessas sondas para que, daqui alguns anos, a tecnologia seja barateada e facilite a fabricação nacional de peças que podem ajudar no tratamento de doenças.

Além de Castellano, outro trabalho do corpo multidisciplinar do Instituto é a linha de pesquisa de Roberto Panepucci, professor, pesquisador do Centro de Tecnologia da Informação (CTI) Renato Archer e coordenador de Transferência de Tecnologia do BRAINN. Panepucci tem como especialidade a parte de fabricação de dispositivos, em escala micro e nano, usados em sondas neurais, além de circuitos integrados fotônicos (que recebem a luz e enviam para um fim específico).

Panepucci, em conjunto com a pesquisadora Vanessa Gomes, pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e que faz parte do esforço do CTI no âmbito do projeto BRAINN, reforçam o que contamos anteriormente: os materiais usados nas sondas precisam ser os mais maleáveis e adaptáveis possíveis. Seguindo por esse caminho, Gomes, que é especialista em microssistemas e nanoeletrônicos, conta que uma das principais linhas de pesquisa é no uso do grafeno.

“Um aspecto das sondas neurais é que elas precisam ter uma tolerância maior do organismo. Como são ferramentas para investigar o funcionamento do cérebro, quanto menor for a rejeição, melhor. O grafeno se destaca devido suas propriedades de interface. Além disso, ele é transparente opticamente, tem uma condutividade elétrica muito alta e se mostrou respostas positivas na aplicação tanto para registro quanto para estimulação elétrica das células. Também teve resposta de impedância satisfatória e em testes de biocompatibilidade”, diz.

Rickson Coelho Mesquita é cientista e professor do Instituto de Física da Unicamp desde 2011, e também está envolvido com pesquisas do BRAINN, estas focadas em métodos ópticos aplicados ao estudo do cérebro. Sua tese de doutorado foi a primeira a utilizar métodos de espectroscopia no infravermelho próximo para aplicações em neurociências no Brasil, que visa usar a luz, particularmente a luz infravermelho, para entender como o cérebro funciona. A grosso modo: ao refletir a luz infravermelho sob o córtex, parte dessa luz é absorvida pelas moléculas de hemoglobina (que transporta oxigênio pelo organismo) e a outra parte carrega informações sobre o quanto de luz foi absorvido lá dentro.

Ao monitorar a quantidade de luz “devolvida” por essas moléculas, Mesquita afirma ser possível descobrir como elas variam e, consequentemente, quais regiões do cérebro funcionam na região monitorada. As informações coletadas em uma determinada área do cérebro, embora sejam muito pequenas, podem então ser usadas como parâmetro médico e, eventualmente, no controle de dispositivos, como próteses, órteses e cadeiras de rodas.

“Também é possível modular o cérebro em certas atividades. Por exemplo, quando algumas pessoas têm déficit de atenção, eu posso monitorar a região do cérebro responsável pela atenção e usar essa informação [capturada pela luz infravermelho que reflete e volta] para ensinar a melhorarem sua atenção. Ou ainda, usar essa informação da luz que volta como um comando de computador para dispositivos externos. É muito similar ao que aconteceu na Copa do Mundo de Futebol de 2014 com o trabalho do Miguel Nicolelis e o exoesqueleto. O que foi feito ali é exatamente o que estamos fazendo com luz, mas usando eletroencefalografia (EEG), medindo o sinal eletrofisiológico com eletrodos”, explica.

Esse, inclusive, é um dos episódios de maior repercussão mundial para a neurociência brasileira. O exoesqueleto, apelidado de BRA-Santos Dumont 1, foi controlado por Juliano Pinto, que na época tinha 29 anos e era paciente paraplégico da AACD. Neste caso, o controle do exoesqueleto aconteceu por meio de uma touca de EEG que interpretava sinais do cérebro de Juliano, permitindo que ele fosse o responsável pelo pontapé inicial da Copa.

De acordo com o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, tudo seguiu um roteiro bem planejado e dependia que fatores externos, como o clima, ajudassem na apresentação — que sim, foi bastante curta, mas mostrou do que a ciência brasileira é possível.

“Foi uma pressão enorme. Tínhamos data e hora, e uma audiência de 1,2 bilhão de pessoas assistindo ao vivo. Se um transistor do EEG queimasse, se chovesse ou se houvesse uma ventania muito forte, os planos seriam frustrados. Foi um esforço coletivo mundial: 150 pessoas de 25 países colaboraram sem receber nada (com exceção dos estudantes) para produzir algo que não existia — um robô controlado diretamente pela mente humana”, conta.

Nicolelis ainda revela os efeitos da touca de EEG e do exoesqueleto após a exibição na Copa de 2014. O neurocientista diz que, um mês após o evento, os pacientes que fizeram uso contínuo do equipamento apresentaram recuperação de lesões medulares completas. “Alguns deles recuperaram movimentos voluntários abaixo das pernas. Pacientes paraplégicos crônicos também apresentaram sensibilidade nos membros inferiores. Ao seguirmos esses pacientes por mais de dois anos e meio, acompanhamos sua migração de um quadro irreversível para paraplegia incompleta ou parcial”, explica.

Por falta de verbas no Brasil, Nicolelis afirma que o projeto teve de ser interrompido. No entanto, toda a infraestrutura usada na época foi implementada no sistema ambulatorial do Instituto Santos Dumont, em Macaíba, no Rio Grande do Norte.

O futuro dos chips cerebrais

Apesar de não fazerem previsões de futurologia, os cientistas se mostram animados com avanços no campo das sondas neurais. Ao mesmo tempo, demonstram uma certa preocupação sobre a forma como o entendimento do cérebro levanta questões relacionadas à privacidade, biohacking e segurança da informação.

“As coisas estão evoluindo em uma velocidade rápida e exponencial. Quando você pisca já em alguma coisa nova acontecendo. Eu acredito que a tendência é sim que as interfaces evoluam significativamente. Talvez não ao ponto de ser possível controlar tudo com um dispositivo implantado na sua cabeça. Mas cada vez mais você poderá comandar coisas de formas mais simples. Em algum momento, talvez você consiga comandar o celular com o cérebro, mas pode ser que isso demore um tempo para acontecer até o lançamento de interfaces mais comerciais”, diz Gabriela Castellano.

Roberto Panepucci e Vanessa Gomes acreditam que também será fundamental produzir essas sondas em escala industrial. “Hoje já é possível produzir milhares de sondas muito rapidamente e por um custo menor”, contam.

“É uma área que permite explorar o cérebro e refletir sobre outros aspectos que não são apenas tecnológicos. Tem toda uma área de pesquisa neuroética que envolve o sigilo e privacidade da atividade neural humana. E acho que o maior desafio é as pessoas entenderem que não é só uma tecnologia: tem todo o lado humano e filosófico por trás disso, que prevê assegurar a privacidade. Ninguém quer transformar o ser humano em um híbrido. As interfaces precisam ser mantidas sob o controle da mente humana”, completa Miguel Nicolelis.